Um quarto dos incêndios não são sequer investigados
Messias Fernandes é o dono disto tudo. Todas as manhãs, quando sai de sua casa na aldeia de Outeiro da Vinha, em Seia, e percorre as estradas do Parque Natural da Serra da Estrela, o homem sabe que todo aquele território é dele e dele apenas. É, afinal, o único guarda-florestal que existe nas terras que se estendem de Seia a Gouveia - uma das mais importantes manchas de biodiversidade do país e uma das regiões mais fustigadas pelos incêndios na última década.
A parte mais importante do seu trabalho é esta: investigar as causas dos fogos. "As pessoas pensam que é uma competência da Polícia Judiciária, mas não é assim. O apuramento da origem do incêndio é da responsabilidade da Guarda Florestal e só quando nós percebemos que ele pode constituir crime de dolo é que chamamos a PJ." Em média, há na sua zona de ação centena e meia de incêndios por ano. "Mas a verdade é que estou aqui sozinho a olhar por esta serra toda. Então nunca consigo investigar mais de 50 fogos por ano. Os restantes não são sequer escrutinados, não sabemos se foram de origem criminosa, ou negligente, ou o que quer que seja."
Um quarto dos incêndios que ocorrem no país nunca chegam a ser investigados por ninguém. Em 2017, diz o relatório anual do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), houve 17 557 fogos em Portugal continental. Mas quando se compara este número com o Relatório Nacional de Segurança Interna, verifica-se que houve apenas 13 108 inquéritos para investigação. Ou seja, a origem de 4449 incêndios - 25,4% do total de ocorrências - nunca chegou a ser escrutinada.
Messias acredita que é em primeiro lugar esta falta de guardas-florestais que está a pôr a floresta em perigo. "Se não conseguimos investigar, permitimos que eventuais criminosos reincidam. Acho muito bem que se reforcem os meios de vigilância e combate, mas não podem continuar a deixar-me aqui sozinho a tomar conta desta serra toda."
A 6 de novembro do ano passado, durante a discussão do Orçamento do Estado para 2018, o ministro da Administração Interna anunciou a contratação de 200 novos guardas-florestais para reforçar o atual corpo de 307 agentes. "A contratação acontecerá no início do ano, para que estes homens estejam no terreno a partir de abril", disse então Eduardo Cabrita. "É o renascimento de uma estrutura que está a ser objeto de um claro processo de esvaziamento."
O anúncio foi feito, sim. Mas o concurso nunca chegou a abrir. O MAI diz agora ao DN que " foi iniciado um processo legislativo e abertas negociações entre o governo e os sindicatos, que ainda estão a decorrer." No final do passado mês de julho, os guardas-florestais fizeram uma greve de três dias, exigindo a contratação de novos agentes. Segundo a Federação dos Trabalhadores em Funções Públicas e Sociais, houve uma adesão entre os 50% e os 70%.
"Não há qualquer perspetiva de quando poderemos abrir o concurso", diz o representante sindical Rui Raposo. "A única certeza que podemos ter é que, mesmo que o ministro decida avançar amanhã, estes homens terão de passar por um processo de formação e nunca estarão prontos para ir para o terreno antes do final do ano. Há questões remuneratórias e salariais em cima da mesa, sim, mas há urgência em relação à presença destes investigadores na floresta portuguesa que está a ser ignorada de uma forma que não se compreende."
Foi o atual primeiro-ministro, António Costa, que, em 2006, extinguiu o Corpo Nacional da Guarda Florestal quando era ministro da Administração Interna de José Sócrates. Os 317 agentes que sobraram (dez deles, entretanto, reformaram-se) foram integrados no Serviço de Proteção da Natureza e do Ambiente (SEPNA) da GNR, um efetivo que o governo reforçou neste ano com cem elementos. Estas equipas cumprem trabalho de prevenção, vigilância e deteção de incêndios florestais, mas não investigam as causas dos incêndios. Essa é uma competência da Guarda Florestal. Mas há pouca polícia para tanto fogo.
Miguel Moura tem 39 anos, entrou no último concurso que a Guarda Florestal abriu para receber agentes, em 2004. "Passaram-se 14 anos e há uma deterioração inexplicável dos recursos, humanos e materiais. Sabe uma boa metáfora para o que aconteceu à nossa profissão? É andar pela mata e ver as casas de pedra que durante anos foram um símbolo da nossa presença. Hoje estão quase todas a cair aos pedaços."
Depois do desmantelamento do corpo policial em 2006, o governo insistiu sempre que a Guarda Florestal não voltaria a ter novos agentes. Em agosto de 2016, já com o atual governo em funções, essa ideia foi reforçada por Jorge Gomes, na altura secretário de Estado da Administração Interna. "Não faz qualquer sentido reverter a extinção da carreira dos guardas-florestais." Mas, com os incêndios de 2017, o executivo recuou. Ou, pelo menos, disse que ia recuar.
"É de uma urgência imperativa que se retomem as contratações", insiste Miguel Moura. "Em todo o distrito do Porto, que é onde estou colocado, somos apenas quatro agentes." Além das falhas na investigação aos incêndios, o guarda-florestal queixa-se também da falta de fiscalização que existe hoje sobre as áreas de replantação. "O governo proibiu que crescesse a mancha de eucalipto no país e nós devíamos estar a controlar se de facto não há novas áreas a serem colonizadas. Mas não controlamos. Não temos como."
Quando entrou no corpo da Guarda Florestal, em 2004, Miguel foi destacado para Amarante. "A nossa sede ficava no parque florestal, mesmo às portas do Marão." Hoje, tem a seu cargo três concelhos: Felgueiras, Lousada e Paços de Ferreira. "Desde que fomos integrados no SEPNA, o nosso comando fica no quartel da GNR de Felgueiras, mesmo no centro da cidade. Para chegar à floresta tenho de fazer no mínimo 30 quilómetros. Agora diga-me lá: como é que eu vou proteger as árvores se me obrigam a estar longe delas?"
Quando confrontado com o facto de um quarto dos incêndios não serem investigados e com a promessa que não foi cumprida de reforçar a Guarda Florestal, o Ministério da Administração Interna respondeu que, no combate no terreno, Portugal tinha neste ano "o maior dispositivo de sempre". Há neste ano mais 1027 bombeiros, mais 250 viaturas e mais sete meios aéreos para combater o fogo do que havia em 2017. "O que está em causa também não é apenas a resposta imediata ao fogo, é tudo o que está a jusante e a montante", diz Rui Raposo. "É a vigilância da floresta e a investigação criminal do fogo."
Apesar de haver um reforço da vigia nos corpos policiais, as coisas não têm corrido tão bem nas matas públicas. A 15 de maio, o ICNF - que está sob a tutela do Ministério da Agricultura - abriu um concurso para 90 assistentes operacionais para as florestas do Estado, em dez concelhos do país. Ofereciam um ano de contrato e o salário mínimo. Mas só 61 dessas vagas foram preenchidas.
São estes assistentes operacionais que fazem as ações de silvicultura das matas e a gestão de combustíveis. Acompanham as queimadas dos privados para evitar propagações de fogo, mantêm as faixas e os mosaicos combustíveis da floresta. E também têm funções de vigilância, sensibilização do público e auxiliam a Proteção Civil na primeira resposta ao fogo e nas operações de rescaldo.
Em Arouca havia cinco vagas, mas ninguém concorreu. Na Marinha Grande o ICNF precisava de 35 homens, mas só conseguiu contratar oito. Falta gente para cuidar das matas na Figueira da Foz e na Nazaré. O DN perguntou ao Ministério da Agricultura se estas vagas que ficaram por preencher punham em causa a segurança das matas públicas e se havia novo concurso em preparação. Até ao fecho desta edição, o ministério de Capoulas Santos não conseguiu responder.