Herdeira política de Marielle queixa-se à ONU após ameaças de morte
Antes da noite de 14 de março de 2018, aquela em que Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes foram executados no centro do Rio de Janeiro, a então deputada estadual Talíria Petrone já era ameaçada de morte, como relatou ao DN dias após o assassinato da principal parceira política, colega de partido e amiga. A partir de então passou a encarar as ameaças de outra forma. E hoje, já deputada federal, na sequência do aumento desses ataques, acha que é seu dever pedir à ONU para que provoque o governo brasileiro a reagir.
"Como se as ameaças anteriores à minha vida não fossem suficientes, alguns dias após o nascimento da minha filha, recebi novas ameaças. Em junho de 2020, a linha telefónica "Disque Denúncia" da Polícia do Rio de Janeiro noticiou à Câmara dos Deputados que havia cinco gravações de pessoas falando sobre a minha morte", revelou em entrevista ao correspondente na ONU do portal UOL.
"Tenho recebido ameaças contra a minha vida desde a minha primeira eleição em 2016 para a Câmara Municipal de Niterói, no estado do Rio de Janeiro, e, no início, não percebi como este tipo de intimidação poderia ser grave. Entretanto, após o assassinato da minha companheira e amiga Marielle Franco, eleita no mesmo ano, percebi que o perigo era real", rematou.
"Somos o país que mais mata defensores e defensoras de direitos humanos no mundo. Tentar cercear o mandato de uma parlamentar eleita é um frontal ataque à democracia", disse a deputada federal de 34 anos ao DN.
E de onde partem as ameaças de que a polícia fala? Talíria, 34 anos, filha de professora e de músico e ex-voleibolista profissional do Ribeirense, clube da Ilha do Pico, nos Açores, não sabe ao certo mas tem a certeza que vêm dos poderes instituídos com os quais vem lidando.
"Não sabemos bem de onde vêm essas ameaças, a sua motivação, mas vêm porque o mandato incomoda poderes instituídos. Desde a minha entrada na vida pública eu sou ameaçada. Mas agora entrou num nível muito grande. E eu jamais obtive alguma resposta dos governos estadual e federal".
"O nosso mandato funda-se no compromisso muito profundo com o povo e numa defesa incansável dos direitos humanos e isso significa, por exemplo, denunciar a relação que o governo do Rio de Janeiro tem com as favelas: é inadmissível que tantos jovens negros sejam executados pelas armas do estado", diz.
Destaquedestaque"Somos o país que mais mata defensores e defensoras de direitos humanos no mundo"
"Significa também", prossegue a deputada do PSOL, partido mais à esquerda do parlamento brasileiro, "denunciar as milícias, que dominam o território diverso do Rio também com o braço do estado".
"Significa ainda denunciar o autoritarismo do governo federal", completa.
"Nesse sentido, optamos por fazer denúncia à ONU para que as autoridades internacionais provoquem o Brasil a responder como andam as investigações em relação aos riscos à minha vida mas também em termos mais gerais - a vereadora Marielle Franco foi executada num crime político há mais de dois anos e o governo brasileiro ainda não deu resposta ao povo".
Segundo Talíria, "há um crescimento enorme da violência política, em especial contra as mulheres negras e os parlamentares, e as mulheres negras, em especial, devem ter o direito de exercer plenamente os seus mandatos".
A carreira política de Talíria Petrone começou depois da experiência desportiva nos Açores: a deputada sentiu que o seu futuro não passava pelo desporto mas por dar aulas, nomeadamente no complexo de favelas da Maré, no Rio, onde conheceu Marielle.
"Era uma irmã de política, de vida, de luta e de alma", dizia ao DN dias após a morte da amiga.
"E agora, quem vai me dar coragem, quem vai chorar comigo dores tão parecidas e entender exatamente tudo o que explode no peito?", perguntava-se ela nas redes sociais após o crime cometido, segundo a polícia, pelos ex-polícias Ronnie Lessa e Élcio Queiroz a mando ainda não se sabe de quem.
A deputada admite que teve momentos de desconsolo no início da vida política ao ser chamada de "preta nojenta" e de "vagabunda", de ouvir "mas que cabelo é esse?" e de ser mandada "de volta para a senzala" nas redes sociais. "Mas a Marielle sempre chegava, me dava um tapa nas costas e dizia "bora negona, a vida é dura baby" para me fortalecer.
Outro quadro do PSOL, o ex-deputado Jean Wyllys, também abandonou o Brasil após ameaças de morte. "O [ex-presidente do Uruguai] Pepe Mujica, quando soube que eu estava ameaçado de morte, falou para mim: 'Rapaz, se cuide. Os mártires não são heróis'. E é isso: eu não quero sacrificar-me", disse na ocasião.
Wyllys saiu do país 19 dias após a posse de Jair Bolsonaro. "O presidente que sempre me difamou, que sempre me insultou de maneira aberta, que sempre utilizou de homofobia contra mim. Esse ambiente não é seguro para mim", afirmou.
Durante a votação do impeachment de Dilma Rousseff, dois anos antes, Wyllys cuspiu em Bolsonaro após insulto homofóbico do então deputado de extrema-direita.