Nem pandemia nem terrorismo travam o Papa na terra de Abraão

Francisco cumpre o sonho de João Paulo II, que há mais de 20 anos não visitou a planície de Ur por motivos políticos. Na agenda, um histórico encontro com o líder dos xiitas iraquianos.
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Nem a pandemia de covid-19 nem a ameaça terrorista são obstáculos à visita do Papa Francisco à planície de Ur, no Iraque, onde nasceu Abraão, o pai das três principais religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo), e ao encontro histórico com o líder dos xiitas iraquianos, o grande ayatollah Sayyid Ali Al-Husayni Al-Sistani, em Najaf. A viagem, rodeada de medidas de segurança, decorre entre amanhã e segunda-feira.

"A razão principal pela qual o Papa viaja é sempre encontrar a comunidade cristã destes países, que é o que vai acontecer", contou ao DN a jornalista da Rádio Renascença Aura Miguel, que já acompanhou os líderes da Igreja Católica em mais de uma centena de viagens, mas desta vez, por causa da covid-19, seguirá Francisco à distância e não no avião papal. "Mas esta é uma visita muito desejada, já desde os tempos de João Paulo II, e ganha maior urgência no pontificado de Francisco, que tem sido dedicado a aprofundar o diálogo inter-religioso", acrescentou.

Por causa da pandemia (tem havido uma média de quatro mil novos casos diários), o contacto entre o Papa e os cristãos será reduzido. Nas celebrações que estão previstas só podem participar cem pessoas. A exceção será na missa de domingo no estádio em Erbil, no Curdistão iraquiano. Apesar de ter capacidade para 30 mil pessoas, só dez mil podem estar presentes e no final de fevereiro estavam inscritas apenas 4500. Francisco, de 84 anos, defendeu a visita, mesmo que a maioria dos cristãos do país só o vejam pela televisão. "Vão ver que o Papa está no país deles. Eu sou o pastor das pessoas que estão a sofrer", afirmou o argentino.

A visita ao Iraque é especialmente importante pelo simbolismo de o Papa poder fazer um encontro inter-religioso na planície de Ur. "Essa planície foi onde nasceu Abraão, o pai das três religiões monoteístas", lembra Aura Miguel.

"João Paulo II, para o Jubileu do ano 2000, tinha planeado três viagens importantes relacionadas com a aliança de Deus com o homem. A primeira seria a Ur, por causa de Abraão, a segunda ao monte Sinai, por Moisés, e a terceira a Jerusalém, por Jesus", contou. "Ele não foi ao Iraque por questões políticas. Saddam Hussein queria usar a viagem com interesses de propaganda, os EUA também se opuseram, e ele acabou por não ter condições para ir", acrescenta. A viagem tão desejada será agora possível para um Papa que tem dedicado parte do seu pontificado a aprofundar o diálogo inter-religioso, sobretudo com o islão.

Francisco foi em 2018 à Universidade de Al-Azhar, no Cairo, "o coração intelectual, teológico, do mundo sunita", num contexto muito difícil de atentados contra a Igreja Copta. "Além de homenagear os cristãos que morreram", o Papa "abriu caminhos mais profundos para o diálogo, a paz e a fraternidade" com o seu discurso, explica a jornalista. O diálogo com o mundo sunita culminou na viagem que fez em 2019 a Abu Dhabi, na qual assinou, com o reitor da Al-Azhar, o xeque Ahmed al-Tayib, o documento sobre a fraternidade humana, citado várias vezes depois na sua encíclica Fratelli tutti.

"A viagem ao Iraque é mais uma etapa que vai ajudar a consolidar este percurso de diálogo com o islão, mas com uma novidade: no Iraque não são sunitas, mas xiitas", explica Aura Miguel. E, neste aspeto, o ponto alto será o encontro com o ayatollah Al-Sistani, de 90 anos, na manhã de sábado, em Najaf. "Segundo os especialistas, o sonho do Papa seria que ele assinasse o documento de Abu Dhabi. Mas do lado do ayatollah já disseram que ele não vai assinar coisa nenhuma. Contudo, só o facto de receber o Papa já é importante", disse a jornalista.

Mas o encontro com Al-Sistani não deverá agradar a todos os xiitas, nomeadamente ao líder supremo iraniano, Ali Khamenei. As escolas de Najaf e Qom têm visões distintas, sendo que Al-Sistani raramente interfere em questões políticas iraquianas. Quando o faz, tem um peso enorme: em 2014, lançou uma fatwa contra o Estado Islâmico que levou muitos xiitas a juntarem-se às milícias para combater o grupo terrorista e, em 2019, em plenos protestos contra o governo, o seu sermão levou à demissão do então primeiro-ministro.

Apesar de a ameaça do Estado Islâmico parecer já estar controlada, há grupos apoiados por Teerão que operam no Iraque. Entre eles as Forças de Mobilização Popular, uma poderosa coligação paramilitar financiada e armada pelo Irão, que os EUA dizem ser responsável por vários ataques com rockets.

A segurança da visita é garantida pelas autoridades locais, tendo sido destacadas dez mil pessoas para este trabalho. O Papa irá viajar num carro blindado e não num papamóvel aberto.

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