Foi uma simples fuga de informação, mas alarmante. Alarmante por duas razões: por ter origem no Supremo Tribunal dos Estados Unidos e por dizer respeito a uma possível recusa do direito ao aborto. E ser, para já, um simples esboço escrito pelo juiz Samuel Alito não descansa muito os defensores do direito ao aborto na América, que todas as sondagens mostram ser uma maioria dos americanos..Os juízes conservadores, nomeados vitaliciamente por presidentes republicanos, estão em maioria de seis para três e, mesmo que um deles - o presidente do Supremo Tribunal, John Roberts - acabe por se juntar aos progressistas (é uma incógnita), isso pouca diferença faria na rescisão do Roe vs. Wade, a decisão que desde 1973 reconhece o direito à interrupção voluntária da gravidez em todos os Estados Unidos..A avançar esta revisão do direito ao aborto, os Estados Unidos estariam a afastar-se da Europa num tema que é suposto unir o Ocidente em termos de direitos, nomeadamente de as mulheres disporem do seu corpo. Aliás, mostraria um estranho reforço do fosso moral e legal entre os dois lados do Atlântico, pois juntar-se-ia à questão da pena de morte - legal na América, proibida na União Europeia..Mas há fortes hipóteses de serem as próprias mulheres na América apoiantes do Partido Republicano, conservadoras na questão económica, mas progressistas na defesa do seu direito de escolher, a serem o grande obstáculo à mudança em princípio planeada pelo Supremo Tribunal, ou pelo menos por um dos seus juízes. Haver eleições intercalares neste ano pode, aliás, potenciar essa oposição e fazer políticos republicanos moderados entrar na discussão, para esta polémica não beneficiar automaticamente o Partido Democrata, do presidente Joe Biden..Mas mesmo que o esboço agora revelado se transforme em decisão, e que o Supremo Tribunal dos Estados Unidos (equivalente ao nosso Constitucional) proíba o aborto a nível federal, a situação pode ser contrariada em boa parte graças ao federalismo, pois muitos estados, nomeadamente os da Costa Oeste, incluindo a Califórnia, e ainda Nova Iorque mais os da Nova Inglaterra, manteriam os direitos atuais das mulheres, apesar de isso só servir para mostrar como os americanos estão fortemente divididos a nível da sociedade. E não precisam de mais motivos para se enfrentarem uns aos outros..Diretor adjunto do Diário de Notícias