O edifício impunha-se à vista de quem chegava à cidade por mar. Na colina que ainda não era a do Castelo, um imponente paredão de 16 metros e os pátios em socalco na colina eram o cartão-de-visita para quem aportava à Felicitas Iulia Olisipo - a Lisboa romana. Era a fachada sul daquele que seria à época o mais imponente edifício da cidade: o teatro.."Era um cartão-de-visita, com um fim propagandístico claro. Quem chegava sabia que estava a chegar ao império romano", diz Lídia Fernandes, arqueóloga e coordenadora do Museu de Lisboa - Teatro Romano. O complexo teria capacidade para cerca de quatro mil espetadores, o que aponta para uma cidade com uma considerável relevância: "Hoje em dia acredita-se que seria bastante mais importante do que aquilo que se pensava até há uma década.".Olisipo terá atingido uma dimensão considerável. Embora não seja fácil apurar um número, até por ser uma "cidade portuária com uma população muito oscilante", Lídia Fernandes diz que teria uma população "seguramente acima das 20 mil pessoas, possivelmente abaixo das 50 mil". Pelas bancadas construídas no declive da colina terão passado muitos dos "lisboetas" da altura: o teatro romano abria portas a toda a gente, da elite aos escravos, ainda que lá dentro os espaços segregassem as várias camadas sociais..Quase dois mil anos depois da sua construção, o teatro é hoje um dos vestígios mais preservados e mais estudados da cidade romana. Onde a Rua da Saudade se cruza com a Rua de São Mamede, na freguesia de Santa Maria Maior, não muito longe da Sé de Lisboa - que viria a ser construída cerca de mil anos mais tarde -, as ruínas do teatro mostram ainda os degraus inferiores das bancadas, talhados na rocha, e a orchestra, uma área semicircular onde se sentava a elite. No museu, do outro lado da Rua de São Mamede, é possível observar elementos arquitetónicos que pertenceram ao teatro, a estrutura do post scaenium (o grande muro de suporte na fachada sul), mas também vestígios de estruturas anteriores e posteriores..O que resta do teatro romano entrou recentemente em processo de classificação como monumento nacional, uma avaliação que é feita pela Direção-Geral do Património Cultural e que vai, depois, a Conselho de Ministros. O objetivo passa por reclassificar e ampliar o espaço abrangido. Isto porque o Teatro Romano está classificado como imóvel de interesse público desde 1967 - três anos após ter sido redescoberto pelo arqueólogo Fernando de Almeida, guiado por um livro escrito 150 anos antes..Desenterrado e enterrado outra vez.O Teatro Romano de Lisboa terá sido construído no tempo do imperador Augusto e renovado no ano 57, já no tempo de Nero. Esteve em funcionamento até ao século V, sendo progressivamente abandonado, ao que se julga ultrapassado pelos tempos, substituído na preferência das populações por outros focos de lazer e entretenimento..Sepultado durante séculos, foi descoberto em 1798, durante as obras de reconstrução que se sucederam ao terramoto de 1755. Informado da descoberta, o arquiteto italiano Francisco Xavier Fabri seria o responsável pelas primeiras escavações no local, sendo também da sua autoria um desenho aguarelado que deixou para a posteridade uma imagem do teatro naquela altura. A notícia do achado foi levada ao rei, houve várias preleções sobre o assunto na Academia das Ciências, mas a vontade do arquiteto de preservar as ruínas - escreveu numa carta que mandou parar duas vezes as obras "no sítio aonde se descobrio parte do antigo Teatro" - não levou a melhor sobre o afã de reconstrução da cidade dizimada pelo terramoto. O teatro romano de Lisboa voltou a ficar enterrado sob o edificado da cidade. E num estado bastante mais danificado, dado que muito do que ali existia foi usado para a reconstrução. Lídia Fernandes fala numa "destruição significativa": "As estruturas mais bem preservadas são as que se situavam a um nível mais profundo. As situadas a um nível mais alto, que era o caso das bancadas, sofreram um processo de desmantelamento e reaproveitamento das estruturas.".O teatro voltou a desaparecer, mas a sua descoberta ficou impressa. Em 1815 um latinista, Luís António de Azevedo - amigo de Francisco Xavier Fabri - edita em livro as descobertas do arquiteto italiano. Com o passar dos séculos os desenhos de Fabri desaparecem (seriam reencontrados nos anos 70 do século XX na Academia de Belas-Artes) e "perde-se a ideia de que havia um teatro romano na cidade", explica Lídia Fernandes. Será este pequeno livro - de que o museu possui dois exemplares - a manter a memória da existência do complexo romano..E chegamos aos anos 60 do século XX. O arqueólogo Fernando de Almeida conhecia esta publicação e um dia, ao passar na Rua de São Mamede, viu aberto o piso térreo de um edifício que tinha sofrido um incêndio. Entrou e não precisou de procurar muito por sinais do teatro romano: as abóbadas do teto do rés-do-chão assentavam em duas colunas romanas. "Fernando de Almeida acha - e com toda a razão - que estava em cima do teatro romano. Pediu à câmara um subsídio para realizar uma escavação arqueológica. Essa sondagem coincidiu exatamente com a parte central do teatro", conta a coordenadora do museu. Em 1964 o edifício volta a ser resgatado ao subsolo da cidade. A partir desse primeiro momento, a arqueóloga Irisalva Moita começa a dirigir os trabalhos de escavação e desenha uma planta provável da área que seria ocupada pelo teatro, propondo à câmara que comprasse os sete imóveis que se situavam por cima. E a câmara compra os sete imóveis com o objetivo de os demolir..Em 1989 é criado o gabinete técnico do teatro e novas escavações em dois edifícios que davam para a Rua da Saudade revelam parte das bancadas. Já partir de 2001 novos trabalhos identificam o muro de suporte da fachada e de contenção da encosta. É também nesta altura que é criado o museu do teatro..Da colina do Castelo, que haveria de ser um palco privilegiado também da Lisboa islâmica e da cidade cristã medieval, pode dizer-se que não há pedra que se levante que não revele um vestígio arqueológico. Já em 2019, num edifício privado próximo do teatro, foram descobertos vestígios atribuídos a um templo romano, a primeira descoberta deste género na cidade..Os vestígios de Felicitas Iulia Olisipo.Há vários vestígios em Lisboa de construções da época romana, alguns não visitáveis Eis três exemplos de edifícios já identificados que assumiram grande relevância na cidade..As termas dos Cássios. Na Rua das Pedras Negras estão os vestígios de um balneário público que datará de finais do século I ou do século II - é, portanto, contemporâneo do teatro. A existência destas termas, com uma dimensão considerável, é conhecida desde 1791, pela mão de D. Tomás Caetano de Bem, que relata a descoberta das ruínas, 20 anos antes, durante as obras de construção do atual Palácio dos Condes de Penafiel. O manuscrito transcreve uma inscrição do ano 336 d.C. onde se lia "Termas dos Cássios. Reconstruídas desde os alicerces, a mandado de Numério Albano, varão muito ilustre, governador da província da Lusitânia"..O circo. Era uma das construções mais marcantes das cidades romanas e Lisboa também tinha um circo, onde se realizavam as corridas. Embora não haja vestígios visíveis, a construção (que teria mais de 300 metros) já foi identificada, a sete metros de profundidade, por debaixo da Praça D. Pedro IV. Em 1994, quando se realizaram as obras para o prolongamento da rede de metropolitano, a zona do Rossio foi escavada, revelando vestígios da parte central do complexo, a chamada spina..Galerias romanas. São, provavelmente, o vestígio romano mais reconhecido pelos lisboetas, embora inacessíveis durante quase todo o ano. As galerias romanas da Baixa terão sido construídas entre o século I a.C. e o século I d.C. São oito galerias abobadadas que se estendem por cerca de 40 metros - apenas uma parte de um criptopórtico, uma infraestrutura arquitetónica que visava dar suporte a uma plataforma horizontal (sobre a qual se erguiam habitualmente edifícios públicos) em zonas de forte declive e reduzida estabilidade..Casa dos Bicos.Na reconstituição feita pelo Museu de Lisboa - Teatro Romano é possível identificar o local onde hoje se situa a Casa dos Bicos, no Campo das Cebolas, que guarda ainda a memória do tempo dos romanos. No edifício há um núcleo arqueológico com vestígios de vários tanques de salga de peixe, que terão sido desativados em meados do século III. A descoberta destes tanques (cetariae) tem sido recorrente na cidade, provando que a transformação de pescado seria uma importantíssima atividade económica..O teatro.Estima-se que o teatro ocupava uma área de cerca de três mil metros quadrados Além do espaço de representação propriamente dito, onde se encenavam os clássicos gregos e romanos, o edifício do teatro incluía, no lado sul, vários pórticos, espaços de acesso público destinados a confraternizar e onde a assistência podia aguardar o início dos espetáculos..O fórum.É o edifício que se situa acima do teatro (no canto superior direito da imagem que faz a reconstituição provável do teatro e da sua envolvente urbana). Qualquer urbe romana tinha um fórum, o centro administrativo e religioso da cidade - o centro de toda a vida pública. Em Lisboa não foram, até agora, encontrados vestígios deste complexo, mas uma das hipóteses tida como provável é que se situasse a norte do teatro. Não há, no entanto, consenso sobre a localização..A decoração do teatro.A estrutura semicircular do teatro romano adaptou-se ao declive topográfico da colina. Só a pedra sobreviveu até aos dias de hoje, mas sabe-se que elementos arquitetónicos como as bases, fustes e capitéis das colunas, eram estucados e pintados.