Dombrovskis e o bloqueio à bazuca europeia: "Atraso nos fundos viria no pior momento possível"
Com 104 328 visitantes registados, de 168 países, foram várias as intervenções ontem na Web Summit a indicar que muito talento está a voltar ao "velho continente" e dinheiro para investir em tecnologia não vai faltar. Para Cristina Fonseca, cofundadora da Talkdesk e da Indico (fundo que investe em startups), a Europa "é o sítio onde muitos já querem estar". A investidora admitiu que a pandemia acelerou o regresso "dos muitos talentos europeus que foram para os EUA e ajudaram os gigantes tecnológicos a evoluir". "Agora estão a voltar para Portugal e para a Europa e isso é entusiasmante, vão ajudar a tornar a Europa o continente para se estar nos próximos tempos".
Noutra intervenção, mais tarde, o investidor norte-americano, Tim Draper, deixou o aviso: "Silicon Valley não está morta", mas a saída de grandes negócios e empreendedores da Califórnia para outros pontos do globo deveria ser uma chamada de atenção para os governantes.
Os atrativos da Europa, e de Portugal, também fizeram parte da conversa entre Carlos Moedas, o ex-comissário europeu e atual administrador da Gulbenkian, e Daniela Braga, fundadora da empresa portuguesa DefinedCrowd.
Carlos Moedas revelou mesmo que esteve reunido recentemente com a empreendedora (a DefinedCrowd tem soluções de linguagem que alimentam sistemas de inteligência artificial e desperta a cobiça de gigantes tecnológicos) e ficou entusiasmado com a perspetiva de criar um hub de inteligência artificial no país, uma ideia que admite estar focado em concretizar.
"A Daniela falou nisso e faz todo o sentido em avançar, porque temos quatro ou cinco empresas importantes nessa área e muito talento espalhado pelo mundo que nos pode ajudar a criar um hub significativo no país", explicou.
Nem a propósito, o antigo secretário de Estado das Finanças português, Ricardo Mourinho Félix, agora vice-presidente do Banco Europeu de Investimento (BEI), anunciou a criação de um fundo para a inteligência artificial com 150 milhões de euros. "A Web Summit é o espaço para mostrarmos como continuamos a apoiar o investimento em tecnologia, mesmo em alturas especiais como esta [pandemia]", disse o responsável.
O novo fundo de IA vai ajudar tecnologias também de blockchain, internet das coisas e robótica. "Não podemos ficar para trás a nível global", disse Mourinho Félix, que destacou ainda o investimento em tecnologia quântica e cibersegurança, e a necessidade de apoiar as startups europeias.
Mas se a Europa é o sítio para se estar, são vários os países do espaço europeu a concorrer entre si pela captação de talento. O primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, que marcou presença ontem na cimeira, não se fez rogado e falou durante alguns minutos diretamente para os participantes da Web Summit para os convidar a investir e trabalhar em Espanha.
"Temos um grande desafio pela frente nestes tempos de pandemia que só vieram acelerar a necessidade de apostar numa sociedade mais digitalizada e no empreendedorismo como forma de recuperar a nossa economia", disse o líder do governo espanhol, acrescentando que "a tecnologia pode desbloquear o sucesso".
O empreendedorismo e a inovação são assim apontados como a receita "para trazer muitos empregos, duradouros e de qualidade", além de ajudarem "a promover o conhecimento". A meta é aumentar o investimento em startups para aproximar Espanha da Alemanha e França, com a promessa de "incentivos fiscais".
Ontem na cimeira esteve também mais um peso-pesado da Comissão Europeia, o vice-presidente Valdis Dombrovskis, que não fugiu ao problema do momento: os obstáculos criados pela Hungria e Polónia à libertação de fundos europeus para a recuperação da crise criada com a pandemia.
Dombrovskis sublinhou que a União Europeia precisa de encontrar uma solução para contornar o bloqueio à chamada "bazuca' europeia.
Em conferência de imprensa o dirigente avançou que a Comissão "prefere ficar com o Plano A", e que "qualquer alternativa representaria problemas substanciais e atrasos substanciais no programa de recuperação".
Atraso que "aconteceria no pior momento possível, com a Europa numa crise grave e numa altura em que todos os Estados-membros estão em situação de recessão".
O vice-presidente destacou ainda que estão a decorrer trabalhos com a presidência alemã "para encontrar uma solução" até ao próximo Conselho Europeu.
O responsável abordou também o tema dos impostos digitais - algo que pautou muitas das intervenções de dirigentes europeus no primeiro dia da conferência. A Europa está comprometida a "continuar a trabalhar no quadro principal da OCDE", que tenta chegar a um acordo multilateral na reforma dos impostos. "A economia digital está a atravessar fronteiras e é importante garantir que existe um sistema eficaz", afirmou.
"Esperamos chegar a um acordo internacional", explicou, mas que num momento em que o processo de discussão foi adiado novamente, com a esperança de chegar a um acordo em meados de 2021, a Europa está preparada para avançar com uma solução a nível europeu.
Nick Clegg, antigo vice primeiro-ministro do Reino Unido que agora é responsável pela área de Global Affairs do Facebook, assumindo-se como "um dos poucos britânicos que ainda acredita" no projeto europeu, disse temer que a União Europeia esteja demasiado focada na regulação da indústria. "A questão não é se a regulação da UE é boa ou não mas se é capaz de desviar as atenções do funcionamento de um mercado digital único", apontou.
Para Nick Clegg, a questão da dimensão do mercado europeu poderá mesmo ser a justificação para a ausência de tecnológicas que se comparem às que surgiram no mercado norte-americano e chinês. Nesses países, diz Clegg, há uma possibilidade para crescimento devido à grande dimensão do mercado interno.
Sobre o tema das eleições e discurso político em plataformas como a rede social criada por Mark Zuckerberg, Clegg reconhece que há "um debate totalmente legítimo a ter com empresas como o Facebook, os dados que recolhem, como os usam", mas também recorda um tempo "antes de o tech clash se instalar em que tudo o que os engenheiros faziam era aplaudido e ovacionado" - quase como se Silicon Valley fosse resolver todos os problemas da sociedade.
Já Mike Schroepfer, chief technology officer (CTO) do Facebook,questionado pelo Dinheiro Vivo sobre o documentário da Netflix, Social Dilema, que coloca antigos responsáveis da tecnológica a criticarem o modelo de negócio da plataforma, mostrando que os anúncios personalizados estão a levar os algoritmos a potenciar conteúdos que provocam maior divisão e radicalismo entre pessoas, admitiu que o assunto foi falado dentro do Facebook e espera que as novas ferramentas tecnológicas ajudem a limitar de forma mais clara o problema do discurso de ódio na plataforma. "Para mim não é assim tão óbvio que o nosso modelo económico esteja ligado ao discurso polarizado e radical", explicou.
O responsável disse também que boa parte do negócio em publicidade do Facebook vem dos pequenos negócios. "Há negócios pequenos que se tornaram verdadeiramente globais graças ao Facebook e se não tiveram as nossas ferramentas de publicidade vão ter muitos problemas para encontrar tanto negócio, ou seja, a nossa publicidade impacta a vida de muitas pessoas a nível global", explica.
Deixou ainda a indicação que é esse modelo económico "que permite dar gratuitamente às pessoas os serviços do Facebook, incluindo os serviços de mensagens e videochamadas do WhatsApp ao Messenger ".
O fundador do Zoom, Eric Yuan, explicou como a covid impulsionou a empresa. "Antes da pandemia nunca tínhamos pensado num crescimento deste género", admitiu. A plataforma não nasceu de um dia para o outro, diz Yuan, e o crescimento devido à pandemia trouxe novos desafios à empresa, que em 90 dias teve de reformular os parâmetros de segurança para os utilizadores, reforçando o número de colaboradores. Só neste ano, o Zoom já contratou mil pessoas, elevando o número de trabalhadores para 2800.
Olhando para a frente, o líder do Zoom antecipa como poderão ser as videoconferências do futuro: "será possível sentir um aperto de mão, o cheiro de um café ou ter tradução simultânea graças à inteligência artificial, quase como se as pessoas estivessem no mesmo espaço". Algo deste género será "possível daqui a 10 ou 15 anos", prevê.
José Mourinho recebeu da Web Summit o prémio "Innovation in Sport", com a entrega a ser feita a partir de Lisboa para Londres por António Costa (com mil participantes a assistir). O primeiro-ministro, a falar inglês, destacou os níveis de excelência do técnico. "Inclui tecnologia e conhecimento científico na profissão e tornou-se num dos treinadores mais inovadores e com mais títulos a nível mundial, com 25 troféus importantes já ganhos".
José Mourinho, a partir de Londres, agradeceu e mostrou-se "orgulhoso por ter a Web Summit em Portugal".
Já o vencedor português do Festival da Eurovisão da Canção, Salvador Sobral, que também por lá passou, respondeu a algumas perguntas dos participantes, e confessou que, embora já tenha feito muitos duetos com músicos relevantes, mantém um sonho vivo. "Ainda me falta cantar com o Stevie Wonder, gostava muito e, se estivesse vivo, também com o Ray Charles".
Coube a Tedros Ghebreyesus, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde encerrar o dia dois da Web Summit, numa pequena apresentação de cinco minutos, onde falou da importância da inovação para combater a pandemia.
Começou por agradecer a António Costa, como líder do país anfitrião do evento, e admitiu que "numa pandemia sem precedentes nos tempos recentes, precisamos de inovação para procurar melhores diagnósticos, terapias e soluções escaláveis que salvam vidas".
O responsável pediu ainda cooperação e partilha de conhecimento entre os países, para que a ciência e tecnologia ajudem a combater o vírus. "Guardem o poder da inovação para a saúde", disse, e terminou com um português "obrigado".