"É mais difícil ser mulher do que homem num cargo público"

Rosário Farmhouse é desde novembro a presidente da Comissão Nacional de Proteção das Crianças e Jovens. E teve logo de intervir, contra o programa<em> Supernanny</em>. Dirigiu o Serviço de Jesuítas aos Refugiados e o Alto Comissariado para as Migrações. Diz que teve boas bases:o curso de Antropologia. Também sempre se inquietou com as injustiças. Prestes a completar 50 anos, promete uma festa com a família e os amigos, "para celebrar a vida".
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Tem gerido instituições, mas estudou Antropologia, de que forma é que ao curso a tem ajudado.
A antropologia dá-nos toda uma experiência de relacionamento e de conhecimento intercultural que depois nos ajuda a compreender estes tempos, cada vez mais globais. As bases do meu curso, porque uma licenciatura é apenas uma licença para continuar a estudar, como dizia um professor meu, foram essenciais para o trabalho que vim a desenvolver. E, depois, sempre tive uma grande apetência para querer um mundo justo onde todos tivessem as mesmas oportunidades. Lembro-me de ser muito nova e ficar muito chocada quando via realidades muito diferentes da minha por questões de oportunidade, sempre me questionei sobre isso. "Porque é que eu consigo e aquela pessoa não consegue se tem a mesma idade?"

Com que idade?
Desde muito nova, estava no 3.º ciclo [ensino básico], anos 80. Coincidiu com a vinda de muitas pessoas no pós-25 de abril [dos países de língua portuguesa] e eu vivo numa freguesia [Loures] muito intercultural, que teve um boom gigante nessa altura. Passou a haver mais escolas e uma diversidade que se tornou uma constante e isso sempre me desafiou, sempre foi muito fascinante. Apaixonava-me pelas diferentes formas de estar dos meus colegas, que vinham de diferentes realidades e, ao mesmo tempo, preocupada com todo o envolvimento, porque isso criou bolsas de pobreza.

Era esse o curso que queria?
Quando acabei o 12.º ano, não tinha uma ideia sobre o que é que ia fazer, gostava de muita coisa, sempre fui muito eclética. Entrei no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas e a minha intenção era fazer os dois primeiros anos, que eram comuns, e seguir Comunicação Social, mas apaixonei-me pela Antropologia. Gostei muito de conhecer outras culturas, outras formas de estar, de pensar e de celebrar, e não quis mudar.

E acabou a ocupar-se de grupos mais vulneráveis da sociedade: os imigrantes e as crianças e jovens em risco.
Agora, que começo a refletir sobre o que está para trás, vejo que sempre sofri de uma inquietude e de querer justiça. Claro que, quando crescemos, vamos percebendo que as coisas são mais complexas do que parecem, mas desde pequena que era bastante interventiva, nas aulas queria intervir a toda a hora. Depois, tive que aprender a gerir as minhas frustrações. Essa inquietude, esse questionar, foi-me acompanhando no meu trabalho, independentemente da área. Sempre fui assim, tenho de perceber bem o motivo e a antropologia traz isso, o tentar perceber porquê.

Essa inquietação reflete-se nas opções políticas, tem sido nomeada por governos do PS, fez parte da lista de António Costa às autárquicas de 2007?
No Alto Comissariado para as Migrações fui reconduzida por Passos Coelho, mas é verdade, tem havido alguma coincidência na minha vida nessa área. Identifico-me mais com algumas áreas, mas acima de tudo quero ser correta, tentar mudar a realidade para melhor e se estiver ao meu alcance. Temos o dever de ser interventivos politicamente, uns optam por filiação política, é uma opção pessoal, na verdade, sinto-me uma cidadã livre. Não devemos ficar conformados quando não concordam connosco, devemos tentar perceber porque não concordam e fazer ouvir a nossa voz.

Acabava de assumir a presidência da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças (CNPDPCJ)e apanhou com toda a polémica do programa Supernanny, foi uma entrada de leão?
Foi, quase uma praxe. Fiquei surpreendida pela forma como iam abordar a temática, fiquei chocada. O programa ainda não tinha sido exibido, soubemos na sexta-feira anterior através das promoções, ficámos preocupados e também chegaram reclamações, sinalizações por parte de alguns familiares de crianças que entravam no programa. E isso fez-nos atuar de imediato, porque estavam a ser violados os direitos das crianças. Contactámos a SIC para que o programa fosse retirado, mandámos um comunicado para a ERC (Entidade Reguladora para a Comunicação Social), fizemos várias diligências, mas acabou por ser exibido. E ver o programa só reforçou a nossa posição.

Teria feito o mesmo agora?
Não podia ser de outra maneira. Perante esta violação dos direitos da criança, não poderíamos ficar indiferentes. Nenhum outro programa tinha ido tão longe, humilhado e exposto a criança daquela maneira negativa. A criança não tinha a noção do impacto que as imagens estavam a ter e atuámos no quadro das nossas competências.

Os dois primeiros programas foram exibidos, o tribunal permitiu a exibição do terceiro, embora o Ministério Público tenha recorrido, valeu a pena?
Claro e vamos esperar pela decisão final. Temos de exercer as nossas competências no superior interesse da criança. Esta é uma missão muito desafiante, tão apaixonante quanto desafiante, ainda estamos em fase de reorganização, ainda não temos os recursos de que precisamos, quer humanos quer técnicos, mas estou muito otimista em trazer para a luz do dia as crianças e jovens pela positiva.

Também tem tido um trabalho muito ligado à Igreja
Tive toda uma educação católica, muito ligada a movimentos católicos, seja na paróquia, seja através das Cáritas, que foi o meu primeiro emprego. O meu vínculo profissional é com a Companhia de Jesus, os padres jesuítas, tenho uma enorme admiração pelo trabalho que fazem, e que tem ajudado a construir a minha identidade. O padre Arrupe, que fundou o Serviço de Jesuítas aos Refugiados nos anos 1980, dizia "estar onde há mais falta e mais ninguém está", frase com que me sinto muito tocada. Não identifico os desafios profissionais apenas como um trabalho, uma representação política, mas como uma missão.

Seis anos envolvida com a temática dos imigrantes, desde novembro com as das crianças e jovens, podemos dizer que um cargo é mais difícil do que o outro?
São duas áreas desafiantes. A Comissão Nacional tem uma abrangência maior, estamos a falar de todas as crianças e jovens, naturalmente que tem uma vertente preventiva e projetiva, mas na preventiva estamos a falar de todas as crianças e jovens em Portugal. Tem 309 comissões locais e, por isso, diria que a comissão é mais abrangente e mais exigente. Falamos de um assunto muito sensível, muito complexo, há sempre um escrutínio por parte das famílias e da sociedade em geral, é um trabalho que tem de ser feito com todo o rigor e atenção. É feito por muitas pessoas, de uma forma invisível mas muito empenhada e nem sempre reconhecida.

Fez tudo o que queria no Alto Comissariado para as Migrações (ACM)?
Tenho a sorte de ser sempre muito feliz por onde passo. Um cargo público tem sempre algumas frustrações, a rapidez com que gostaríamos de fazer as coisas e nem sempre o conseguimos, mas enquanto lá estive tentei fazer o melhor. O que gostaria de ter feito, e não foi possível por questões orçamentais, seria mudar as instalações do ACM que está dividido em dois edifícios. Esteve prevista a mudança para um único edifício, era um projeto muito interessante, que ia ter uma resposta muito mais abrangente e com melhores condições físicas, mas não foi possível.

Como vê a forma como a Europa está a reagir a este fluxo de refugiados?
Sinto um retrocesso de valores a nível europeu que não esperava. Depois da Segunda Guerra Mundial houve um período em que os direitos humanos eram fundamentais e respeitados no seu máximo, havia valores, a fundação da Comissão Europeia é disso um exemplo. Há valores que pensávamos imputáveis e que em alguns países da Europa estão a ser postos em causa, a ser guardados na gaveta, e isso é preocupante. A Europa está a demitir-se um pouco das suas responsabilidades e a dividir-se. Houve um retrocesso.

Um retrocesso também em outras áreas?
A questão dos migrantes é central, mas tem também que ver com questões económicas; o estarmos a mudar de paradigma. Devíamos partir do pressuposto de que juntos podemos mais, juntos conseguimos criar oportunidades para que todos possam ter dignidade, e está a acontecer o contrário. O paradigma de agora é cada um por si e não sentir a responsabilidade de ajudar outro país. Estamos numa Europa - que deitou abaixo muros - que está a construir muros, o que tem que ver com esta dificuldade de não haver valores comuns, de estarmos a fortalecer valores mais egoístas, mais individualistas.

Onde coloca Portugal?
Portugal tem sido exemplar na questão dos refugiados e da imigração, continua a ser um país que quer apostar nos valores. Há caminho por fazer, porque os tempos são desafiantes e há novas formas de obter e passar a informação.

Quais são as prioridades nesse caminho?
Temos de ajudar as crianças e os jovens a triar a informação que lhes chega, a perceber o que é essencial e o que é supérfluo. As próprias famílias, que estão confusas com tantas formas de comunicação e novas formas de educação. Encontramos ainda crianças e jovens que ficam em perigo por haver alguma incapacidade por parte dos pais e cuidadores em educar uma criança neste século, com tantos desafios e complexidades. Temos de apostar na prevenção e nos direitos da criança, enquanto ser autónomo. Têm direitos que devem ser respeitados, nomeadamente o direito a brincar e o direito a ser amado. Preocupamo-nos com as questões materiais e, quando perguntamos às crianças o que é que gostaram mais nas férias, dizem ter estado com a mãe ou o pai a fazer um bolo ou a ver um filme. O tempo que damos é muito importante e as crianças valorizam muito isso.

Não são esses os direitos que mais preocupam a comissão.
Certo, mas na área da promoção dos direitos e prevenção dos maus-tratos tentamos valorizar estes direitos fundamentais, que é o direito a ser amado, a brincar, à família. As crianças sinalizadas são vítimas de maus-tratos e são casos graves, têm de ser tratadas pelos meios próprios, mas para tentar evitar que existam mais casos graves temos de apostar na prevenção.

As condições económicas fazem diferença?
Não, os maus-tratos são transversais a todas as classes sociais. Naturalmente, que muitas vezes as questões económicas são fatores de risco. Os maus-tratos podem ser diferentes, psicológicos, invisíveis, e que muitas vezes só se sabem quando trazem consequências físicas, mas não tem que ver com classes sociais.

Tanto no ACM como na CNPCJ sucedeu sempre a homens, pensou nisso?
Não, mas reconheço que é muito mais difícil ser-se mulher do que um homem num cargo público, é mais exigente.

É por isso que não há mais mulheres em cargos de poder?

Fez-se um grande caminho, agora há especificidades que podem parecer fúteis, mas que fazem toda a diferença. Num cargo público, muito exposto, a sociedade é mais exigente para com as mulheres, não em termos de competências técnicas, mas em termos de competências pessoais e físicas.

Diz que as crianças brincam pouco, os seus filhos brincaram?
Tive essa preocupação mas se voltasse atrás poderia ter melhorado alguma coisa, é sempre assim. Mas os meus filhos ficavam zangados porque os outros tinham atividades e eles não. Há atividades que acho muito importantes e há outras que são uma violência. Há crianças que têm um horário tão apertado que é tão exigente para as crianças como para as famílias, a não ser que se tenha uma família alargada.

É o seu caso?
Sim, tenho essa sorte. Os meus pais sempre foram um grande apoio na minha vida profissional, até pela proximidade geográfica. Os meus filhos brincaram e espero que ainda brinquem. Gosto de criar momentos para fazer atividades, jogos, por exemplo, nas férias. No meu caso, com filhos crescidos, começo a ficar com a síndrome do ninho vazio dos mais velhos [dois rapazes, de 23 e 20 anos respetivamente. A mais nova é uma rapariga, de 13]. Já é difícil juntar todos e fazer os programas que se idealizam para férias, mas há que aproveitar todos os bocadinhos.

O que faz nos tempos livres?
Gosto de ler, de fazer puzzles.

Puzzles com muitas peças?
A minha média são 1500 a 2000, muitas mais cansa. Os meus tempos livres são o oposto do que faço no dia-a-dia, são coisas muito paradas e isoladas: puzzles, sudoku, ler.

E quando completa o puzzle faz um quadro?
Não (ri-se), desmancho, meto numa caixa, também dou. Tenho umas placas para poder transportar o puzzle - senão não há mesa para se comer -, monto, há momentos em que os faço com os meus filhos, depois de estar pronto fica ali um ou dois dias para ver, desfaço e meto numa caixa. Também gosto de bordar, mas há muito tempo que não faço, com óculos não é muito prático. Gosto imenso de viajar e estar com amigos, de conviver com pessoas de diferentes culturas.

De onde vem o apelido Farmhouse?
Do meu bisavô, que era irlandês. Vai terminar agora porque os meus filhos já não o têm.

Qual é a marca que gostaria de deixar nos organismos por onde passa?
Qualquer coisa entre o amor e o rigor, uma marca de proximidade, mas que equilibra o amor com o rigor. Gosto de estar próximo e conhecer com quem trabalho. Com 309 comissões locais é impossível estar com todas, mas tento sempre esse equilíbrio.

Quanto tempo espera estar à frente da comissão?
Seis anos, diria que é o período ideal. Estive 12 no JRS, mas foram em momentos diferentes, nos primeiros anos estava nos serviços de retaguarda. Estive seis anos no Alto Comissariado, três no Colégio São João de Brito, aqui, logo se vê. Não gosto de partir para as coisas com a ideia de que vou ficar muito tempo porque isso leva-nos a acomodar. É preciso tempo para podermos fazer caminho, por isso, acho que seis anos é um bom período. É importante mudarmos enquanto pessoas, é importante começar de novo.

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