A âncora de Portugal
O homem na televisão quer dizer-nos coisas, mas, antes disso (e depois disso), quer que sejamos nós a dizer coisas a ele. Onde é que estamos? O que é que andamos a fazer? Temo-nos portado bem? Lavámos bem as mãos antes de coçar o nariz? Respostas incorrectas a estas perguntas podem levar o homem na televisão a mudar a sua atitude. Ou não. Ele não quer mudar. Só o fará se as circunstâncias o exigirem. Só o fará se a isso o obrigarmos.
É bom que os portugueses percebam, diz o homem na televisão. Não o diz com impaciência; apenas com a resignada suspeita de que os seus piores receios se confirmem: que os portugueses podem não perceber, ou não querer perceber. Em tempos remotos, o homem na televisão partilhou essas insuficiências: os mesmos défices cognitivos, os mesmos instintos subversivos; em tempos, também ele não percebia, ou não queria perceber. Tudo isso faz parte do passado. Hoje, o homem na televisão já percebeu tudo o que há para ser percebido. Não adianta discutir com o homem na televisão. Não por impossibilidade prática (é pelo menos teoricamente possível que o homem na televisão nos consiga ouvir), mas porque discordar ou concordar connosco não são opções viáveis para ele. O homem na televisão não debate, nem pondera, nem refuta. Limita-se a recitar solenemente os princípios imutáveis deste Universo - um universo de cuja arquitectura ele é o principal intérprete conceptual, desde as altas constelações ao mais humilde grão de areia. O homem na televisão não afirma ter criado o Universo; talvez tenha contribuído para desenhar os seus sistemas invisíveis e organogramas secretos, mas é tão impotente como nós para lhe adivinhar o destino. Sente, no entanto, um respeito profundo pelos processos em curso, mesmo quando atraiçoam as suas melhores intenções.
O homem na televisão não odeia esta incerteza - como poderia ele guardar rancores de um Universo que decidiu fornecer-lhe dimensões tão proporcionais, e bronzeá-lo com tamanha generosidade geométrica? Mas sabe que a turbulência do Universo nos assusta, e isso entristece-o: uma tristeza lúcida e paternal, mas não menos triste por isso. O homem na televisão está preocupado connosco, e uma das coisas que o preocupam é a nossa preocupação. O homem na televisão não quer ver-nos assustados nem preocupados, ou pelo menos não quer ver-nos demasiado preocupados. Alguma preocupação é compreensível, e até desejável. O importante é que saibamos preocupar-nos de forma adulta - com moderação e responsabilidade. Educar-nos nesse sentido é um dos objectivos do homem na televisão. Respirem fundo, diz-nos. Vamos manter-nos serenos e corajosos. Eis algumas palavras que rimam.
Diga não à multidão. Crescer faz doer, e doer aprender. Não pensemos em desistir, mas sim em resistir. O homem na televisão sabe que as rimas consoantes são uma arma poderosa, que deve ser usada com parcimónia e apenas para praticar o Bem. Ao som da sua voz, todos os fonemas se igualam a partir da vogal tónica, como girassóis curvados pelo vento. As propriedades ansiolíticas desse instrumento não se esgotam aqui. O homem na televisão tem ao seu dispor múltiplos recursos vocais para nos tranquilizar, como uma benzodiazepina gigante enfeitada com um nó de Windsor. Por vezes garante-nos que "estamos todos no mesmo barco". Por vezes promete-nos que "vamos sair desta noite escura e encontrar o Verão português mais luminoso de sempre". Noutras alturas limita-se a fitar-nos num silêncio intenso, antes de distribuir alguns pedaços de Cultura. A Cultura pode ser Shakespeare, ou Sérgio Godinho, ou a fotografia de um malmequer no Facebook com a hasthag #saudade; a origem não importa: o que importa é que a Cultura seja identificável pela sua característica mais importante, que é uma instantânea função paliativa. O homem na televisão emite as suas citações no modesto barítono de quem sabe que também ele, um dia, poderá ser citado (quando um Futuro em crise procurar conforto no nosso Presente): em manuais escolares, em posts no Instagram, em telefilmes sobre jornalistas heróicos.
Outros humanos poderiam sentir orgulho ao contemplar tal hipótese, mas o homem na televisão não se alimenta de emoções efémeras. A vida é uma textura de momentos, e a sua experiência e profissionalismo prepararam-no para todas as contingências. Quando é preciso ser um homem íntegro a ler o teleponto de forma íntegra, enquanto supervisiona o tráfego intenso de directos da Feira de Santarém e resumos da Liga Europa, então, por Júpiter, é isso que ele é. Mas quando os eixos se realinham, e o Universo clama por algo diferente, o homem na televisão também se sabe representante de uma outra nobre tradição, fiel depositário de uma chama sagrada. O espaço que ocupa é um património universal, com um panteão de precursores ilustres. A modéstia condena-o a comparar-se apenas aos ícones menores, como Walter Cronkite ou Edward Murrow, mas o seu conhecimento enciclopédico permite-lhe vislumbrar os ombros dos gigantes nos quais se apoia. Por certo, durante a Guerra do Peloponeso, havia um Tucídides a fitar com ternura os cidadãos de Atenas, explicando-lhes que temos de ser uns para os outros, um dia de cada vez, todos juntos - enquanto erguia uma sobrancelha e tentava lembrar-se de palavras que rimassem com "esperança". Por cada minissurto medieval de peste bubónica, havia um qualquer Zurara ou Fernão Lopes a dirigir-se à plateia no Terreiro do Paço, garantindo-lhes que não precisavam realmente de um ursinho. É nessa exaltada continuidade temporal que se move o homem na televisão.
Tenham noção, exorta. É tudo o que nos pede, e o pedido é irrecusável. Quando o homem na televisão a pronuncia, a palavra "noção" tem 11 tiles e 14 cedilhas. A sua "noção" ocupa um parágrafo inteiro. A sua "noção" podia sair em fascículos. Enquanto fala de "noção", o homem na televisão está a agarrar pelo pescoço todas as coisas que não são noção. Flectindo um bíceps moreno, mantém a falta de noção encostada à parede, a uma distância segura, longe dele, e longe de nós.
Ao sair da sua boca, a "noção" fragmenta-se em mil gotículas, um aguaceiro de poemas a flutuar invisivelmente, direito a nós. Nesse aerossol patriótico, discernimos a obediente alma de Portugal: uma montagem de bandeiras a drapejar em câmara lenta, ao som de António Zambujo. Sabemos que não estamos sozinhos, e que a distância é um caminho que só a união etcetera.
O homem na televisão continua a dizer coisas, muitas coisas diferentes que são todas a mesma coisa: provas para sustentar a sua tese mais ampla, de que, apesar de Ser Difícil, no final Vai Correr Tudo Bem, se não o desiludirmos. Até lá, a nossa disciplina vai ser fastidiosamente mantida e periodicamente inspeccionada. O homem da televisão aceitou ser a nossa âncora, por pura obrigação solidária, e não vai prescindir do seu maior potencial metafórico: manter-nos quietos no mesmo sítio, a olhar para ele.
Escreve de acordo com a antiga ortografia