Neste seu livro, que diz ser um balanço de uma geração para as gerações que vieram a seguir, o general fala de pessimismo e de realismo. Pergunto: para um homem como o senhor, que hoje faz 83 anos, que tem uma longa vida de militar e de intervenção pública, que combateu em África e serviu em Timor, que foi governador de Macau, que foi vice-chefe do Estado-Maior do Exército, quando olha para Portugal prestes a celebrar 50 anos de democracia, sente-se pessimista? Estou pessimista no sentido que penso que poderíamos estar melhor. Quer dizer, quando me dizem que estamos muito melhor do que em 1974, é evidente que o país era um país pobre. Salazar deixa como herança um país pobre, e Marcelo Caetano não consegue fazer aquilo que pensou que podia fazer..Portanto, não questiona que o país está melhor do que antes. A questão é quanto melhor poderia estar? O que digo é que houve erros que se fizeram, coisas que se fizeram mal e outras que não se fizeram. Portanto, é isso, é a minha tristeza. Até porque, em termos familiares e pessoais e profissionais, não tenho razões de queixa. Até em termos de saúde, não tenho, mas custa-me viver num país com tantas limitações, com tantos problemas e que agora, ultimamente, são diários, não é?.No livro deixa a ideia que sente que quem governa, quem tem governado, não tem um projeto nacional? Acho isso exatamente. Não têm um projeto para o país e não sabem o que é o Estado. E não percebem o que vai ser a evolução do mundo..Mas não estamos a falar só de quem governa neste momento, estamos a falar de quem tem governado nas últimos décadas? Sim. Ao longo das décadas. Não têm percebido, estão muito agarrados a determinados problemas sensíveis, como é evidente o orçamento, essas coisas, os dinheiros, as dívidas, tudo, mas falta-lhes a visão de futuro e de perceber o futuro do mundo, o futuro da Europa e o que é que podemos ser aí dentro..Não estamos a falar da economia crescer mais do que tem sido regra, estamos a falar do quê? Estamos a falar de mais do que isso..Não é só economia, é que Portugal corre o risco de desaparecer, não nas fronteiras administrativas, mas na capacidade de tomar as decisões todas. E, portanto, isso tem de se resolver, até porque dentro da União Europeia há países que têm situações de favor, quase. O Luxemburgo, a Irlanda e a Holanda têm o sistema fiscal e o sistema orçamental a beneficiá-los. Nós não somos beneficiados por isso. Devia haver uma revisão das regras para pôr todos os países em igualdade..Mas considera que a adesão à União Europeia foi positiva? Não havia alternativa, sequer..Para Portugal ter mais sucesso dentro da União Europeia, a União Europeia tem de ser mais justa? A União Europeia, tinha de ter regras mais justas, mais equilibradas, o que é difícil, para poder ser a tal potência União Europeia que não existe. Porque, agora, alargando o âmbito, o que está em causa é uma nova ordem mundial, a ordem mundial em que nós estamos a viver, que tenho chamado mais do que uma vez o remanescente da ordem mundial de 1945. Remanescente, porque caiu o Muro de Berlim, acabou a União Soviética, depois nunca mais se mexeu nisto. E ficou só uma superpotência ou hiperpotência, os Estados Unidos dominaram, até certo ponto. E conheci a China muito, muito, muito pobre, mas agora é uma competidora..A China agora é a grande rival dos Estados Unidos? A nova ordem mundial é a China e os Estados Unidos..Já voltaremos à nova ordem mundial. Acha que Portugal tem de ser mais do que é dentro da União Europeia? Portugal tem de ser mais exigente, é isso que está a dizer? Há pormenores, há aspetos da governação que não conheço, não tenho os elementos todos. E, cada vez, admito, é mais difícil governar, até porque, agora, quando as pessoas fazem comparações com o passado, não se pode comparar um primeiro-ministro, hoje, dentro da União Europeia, com um primeiro-ministro, como era o Salazar, que decidia quase sozinho. Portanto, o primeiro-ministro é também ministro dos Negócios Estrangeiros e tem uma série de coisas a coordenar lá fora. Portanto, aí é um processo mais complicado de governar. Mas tem de se ter uma ideia, tem de se saber escolher as pessoas, têm de se responsabilizar por isso e tem que se jogar esse jogo que é difícil, porque a Europa de hoje é o resultado do final de 500 anos de história de globalização. A primeira globalização é portuguesa. Pedro Álvares Cabral faz a primeira viagem em que se toca quatro continentes. Sobre Vasco da Gama, o historiador Arnold Toynbee até diz que a história se divide em antes de Vasco da Gama e depois de Vasco da Gama, o que é uma coisa espantosa..A Europa, neste momento, já não é o centro do mundo, perdeu os impérios e tem de se adaptar a uma nova dimensão? Perdeu os impérios, sim, mas uma coisa é a realidade e outra coisa é a cabeça. Não perdeu a importância cultural, são tudo restos de impérios. A França, a Inglaterra, a Alemanha, a Rússia, etc..Mas Portugal, que tardou a descolonizar, até lidou bem com o fim do império. Reinventou-se..Portugal lidou o melhor possível com o fim do império. Como disse na apresentação do livro, Portugal lidou bem com a mudança. E foi muito importante o general Eanes, não sozinho, mas foi muito importante sem dúvida nenhuma. Foi fundamental para a construção da democracia. Aliás, no lançamento do livro, Viriato Soromenho-Marques disse que as personalidades importantes para a criação desta Terceira República foram o general Ramalho Eanes, Mário Soares e Sá Carneiro..O general Eanes conseguiu não só ser um homem decisivo nessa época pós-revolucionária, em que depois é eleito Presidente da República, mas continua hoje a ser muito admirado pelo seu caráter ético..O general Eanes tem um comportamento muito ético, mas não significa que não tenha cometido erros. Aquela decisão dos governos de iniciativa presidencial foi um erro, a criação do PRD foi um erro. Ainda assim, é mais perdoável o governo de iniciativa presencial do que o PRD. São erros políticos, mas não erros de caráter. Ele procurava fazer bem e é verdadeiramente um democrata..Portugal tem falta de qualidade na classe política? Ou seja, os melhores portugueses não se sentem atraídos para a política? Muitas das polémicas que temos têm a ver com a incapacidade da classe política para atrair os melhores? Os primeiros governos constitucionais depois do 25 de Abril tinham gente de mais qualidade do que a que existe agora. E porquê? Porque agora muitos dos melhores ou são afastados dos partidos ou afastam-se. Portanto, até a escolha, o espaço de escolha, é muito mais reduzido. Mais reduzido e faltam pessoas de qualidade..No seu caso, sei que foi convidado em dada altura a aderir ao PS e ao PSD, mas nunca entrou na política partidária. Não sentia, como militar que serviu o país, que houvesse outra forma de servir o país? Não, aí sou muito realista. Nunca aumentei o meu vencimento em Macau quando fui governador durante quatro anos. Na altura, já tinha três filhas com 10 anos, sete anos e outra com meses, andei sempre a saltitar de um lado para o outro. Fui para Macau com 34 anos e vim com 39. Não tinha a carreira consolidada, tinha de fazer a minha carreira..Governador de Macau não é promoção dentro da carreira militar? É como se fosse uma paragem? Podia ser, se tivesse corrido mal, mas correu bem. E no meu livro sobre Macau conto o que é que se fez e muito. Aliás, tive um esgotamento por excesso de trabalho. Mas a vida partidária nunca me interessou..Quando o presidente Jorge Sampaio é eleito e o desafia para chefe da Casa Militar, não aceitou. Porquê? Arrepende-se? Ainda não sei porquê, mas arrependo-me. Estou muito arrependido, acho que foi um erro, ele ficou triste e não percebeu a minha decisão. Mas, sim, foi um erro..Diz que a classe política podia ter mais qualidade, mas também é verdade que os portugueses cada vez se abstêm mais, cada vez estão menos envolvidos na política, cada vez parece que estão menos crentes no processo da democracia, no sentido que ela é complexa e tem de ser exercida e defendida todas os dias. Está também desanimado com os portugueses? Os portugueses aproveitam-se da situação. Face ao mundo e aos exemplos que vêm de cima, que não são bons, não são os melhores, as pessoas querem-se aproveitar de tudo. Um exemplo ético, como é o caso do general Eanes, é algo que fica como uma referência, mas são poucos. O general Eanes saiu da presidência em 1986, mas ainda hoje não foi esquecido o seu comportamento ético..Estou-me a lembrar daquela comunicação ao país que o general Eanes fez durante a pandemia, em que diz na televisão, com uma seriedade que ninguém questiona, que se houvesse um momento em que alguém jovem precisasse de ventilação ele diria para tirarem a dele porque já viveu muito. Uma das suas teses do livro é a questão da disciplina social, em que dá o exemplo de países democráticos como a Coreia do Sul ou o Japão, em que as liberdades individuais não significam que não haja disciplina social. O senhor diz que os portugueses e os europeus em geral estão a falhar nessa parte. Mas no caso da pandemia até não foi verdade. Os portugueses aceitaram o confinamento, a vacina, etc. Mas o que é esta disciplina social que está a falhar na Europa? É o excesso de individualismo. Um governante, um regime que queira encarar a situação de dificuldades que existem, como a crise climática, como as pandemias, etc., e tem de impor regras, tem dificuldades que isso seja aceite pela população. Há uma contestação quase por haver, porque sim. Com o atual governo de maioria absoluta do Partido Socialista, toda a gente está a contestar tudo..Qual é para si o papel dos militares na sociedade? É verdade que agora há uma guerra na Europa, que obrigou Portugal também a ter uma posição mais forte e a estar mais consciente que precisa de mostrar à NATO que investe em Defesa. Mas os portugueses têm muito a ilusão de que estamos num mundo seguro e que não há ameaças e que gastar dinheiro na Defesa é um mau gasto. É um erro? É um erro, porque os portugueses convenceram-se que acabando a guerra do Ultramar, o resto era tudo paz. Agora o que acontece é que o Estado em si tem três grandes responsabilidades: desenvolvimento, bem-estar e segurança. E por vezes parece que os governantes não pensam na segurança. E a segurança não é só segurança externa, é interna, é a segurança do território, são também os incêndios. Os incêndios de 2017 foram uma tragédia e não foram piores porque foi o próprio Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que fez força nesse sentido. A segurança do território, hoje, na área do clima, é uma coisa muito importante também. E mais, não pode - como já vi escrito - haver um conceito estratégico de segurança interna e outro conceito estratégico de segurança externa. Não, tem de haver um conceito estratégico de segurança e defesa que é distribuído por executantes que fazem os seus trabalhos, mas têm de ser coordenados. Não pode, por exemplo, haver uma segurança para as florestas que não seja integrada numa segurança conjunta..E os portugueses têm de ter consciência de que sem investimento das Forças Armadas é uma utopia pensar que podemos proteger a Zona Económica Exclusiva? É espantoso isso. Essa história do alargamento da Zona Económica Exclusiva, que será das maiores do mundo, é um processo que anda há muitos anos a ser trabalhado, mas não sei neste momento como é que está nas Nações Unidas. Um dia, na Sociedade de Geografia de Lisboa, assisti a uma conferência sobre o tema e estava lá o secretário de Estado do Mar, que era licenciado em Economia e era oficial de Marinha na Reserva. E perguntei-lhe, "então e os meios?", ao que ele me respondeu "depois vê-se". Não pode ser, as coisas têm de ser feitas simultaneamente. Temos de tratar dos meios porque a nossa área é tão grande, tão grande. Com esta questão do que se passou com o navio Mondego, na Madeira, vieram ao de cima uma série de problemas que as chefias militares têm conhecimento, que têm chamado à atenção do poder político, têm chamado à atenção do governo, mas não é feito nada para resolver..Mesmo esta ideia, que a NATO já exigia há muito, do compromisso dos 2% do PIB com a Defesa, mesmo com a guerra na Ucrânia, ainda vai demorar muito para se chegar lá. Há vontade política para isso? Em Portugal? Não sei. Tenho boa opinião da atual ministra da Defesa, que já conhecia quando era diretor do IDN e ela investigadora, mas olhe-se para os ministros da Defesa recentes. Por exemplo, Aguiar Branco, que apanhou algumas crises e não as geriu da melhor forma, foi ministro da Defesa de Passos Coelho. Depois tivemos Azeredo Lopes e Gomes Cravinho que foram um desastre como gestores. As chefias militares têm de ser persistentes, têm de exigir. Imagine a questão de Tancos, cuja videovigilância estava avariada há anos, mas aquilo tinha sido construído para haver uma companhia a proteger os paióis, mas depois não havendo efetivos vai descendo, descendo como um castelo de cartas. O que é que as Forças Armadas fazem por cultura institucional? Cumprem, cumprem, cumprem. Só que a certa altura não conseguem cumprir mais..Ou seja, não foram graves as consequências porque o material foi recuperado, mas é grave para aquilo que representa? É muito grave. Aliás, fui entrevistado pelo Vítor Gonçalves, da RTP, cinco ou seis dias depois disso e a primeira pergunta dele foi: quem foram os culpados? E disse-lhe, foram os militares porque aceitaram. Há coisas que não são negociáveis e isto põe em risco o cumprimento da missão. E essa missão tem de ser cumprida e tem de ter o respeito dos governantes e da população. Aliás, conto neste livro situações que se passaram comigo quando comandava a Minurso no Sara Ocidental, ordens que queriam dar da ONU em Nova Iorque de cortar, cortar, cortar e eu não aceitei. Tinha uma missão a cumprir, as regras dizem, por exemplo, que temos de beber naquele clima duas garrafas de água de litro e meio por dia e as regras são para cumprir..Ainda bem que fala dessa sua missão no Sara Ocidental, porque fora até do âmbito da ONU as Forças Armadas Portuguesas têm tido um grande papel em várias missões, seja ao serviço da NATO ou da União Europeia. Às vezes também é difícil as pessoas perceberem o que é que andamos a fazer na República Centro-Africana ou no Kosovo ou na Bósnia. Mas faz parte, atualmente, da lógica de segurança nacional..Exato. A segurança nacional hoje não tem nada a ver com a fronteira com a Espanha ou com os Pirenéus, não tem nada a ver com isso. A segurança é à escala mundial, à escala da Europa. Nós, no fundo, temos três grandes articulações. Temos a NATO e a União Europeia, temos um cenário maior que é o da ONU, mas a ONU é uma espécie de espelho do mundo, tudo o que esteja bem e mal está dentro da ONU. Temos também a CPLP e não conseguimos dar resposta completa. Mas há dois elementos essenciais: a União Europeia e a NATO, esses são completamente essenciais. Relativamente à NATO, onde trabalhei muitos anos, nunca cumprimos as percentagens de investimento. Quando foi a Guerra Fria, era 3% do PIB, mas nunca cumprimos essa meta, metíamos a GNR e os oficiais na reserva para justificar. Mas reservista nos Estados Unidos não quer dizer reservista em Portugal, portanto, aquilo era tudo enganador. Agora, estamos nos 2%, mas também não os cumprimos. É uma decisão de 2014, numa reunião da NATO que houve no País de Gales, e também não estamos a cumprir. Têm de ser tomadas as decisões, têm de ser definidas as prioridades. Sei que a prioridade da segurança não é, para Portugal, das coisas mais importantes perante a saúde, a educação, etc. Tudo muito bem, mas há mínimos que não se podem deixar de cumprir..Ficou surpreendido pela invasão russa da Ucrânia e com a reação do ocidente em enfrentar a Rússia? A invasão da Rússia foi inesperada, embora compreendesse o que os levou a isso. A questão é que se trata de um país que tem uma história imperial, um país que fez expansão para o Sul e para o Pacífico..Esta Rússia ainda é imperial? Esta Rússia tem uma mentalidade imperial, esta gente é imperial..E a NATO não antecipou isso? Ou não quis saber? Ou não quis saber, não sei. O que acontece é que Putin, e não sei se é o mais perigoso de todos, vem opor-se a uma nova ordem mundial com os Estados Unidos e a China dominantes e sem a Rússia. Os russos não têm economia para isso e para a sua economia precisam da Ucrânia, precisam do mar Negro, precisam de ter portos em águas quentes, como o que têm na Síria. E há um erro de visão estratégica de informações da maneira como é feita aquela invasão em que pensavam que numa semana entrariam por ali..Os russos falham o cálculo da resistência não só da Ucrânia como do apoio do Ocidente à Ucrânia? Qual é a outra surpresa que tenho? A outra surpresa, para muita gente, foi a capacidade de reação, a unidade do Ocidente, até porque tinha havido o azar do Brexit, o azar do Trump, essas coisas todas. Sobretudo os países da NATO, com muita importância dos Estados Unidos e da Alemanha, e depois da Polónia, porque são os países vizinhos e conhecem bem a história. Já tive a oportunidade de estar na Polónia e outros países da região sei o que é que eles pensam dos russos. Eles nem podem ouvir falar nos russos. Só lembro que, em abril de 1945, ainda a Segunda Guerra Mundial não tinha acabado, Estaline disse que os vencedores desta guerra seriam diferentes dos anteriores e que quem vencesse as guerras teria o direito de estender a sua influência política, económica e social até ao limite da chegada dos seus exércitos. E foi exatamente isso que os russos tentaram fazer. Agora vêm com o medo de que a NATO vá marchar por ali adentro? Não creio que a NATO queira isso, a NATO está no seu limite de esforço..Acha que esta recusa mútua de negociar, por um lado porque a Ucrânia quer manter o seu território e por outro porque a Rússia não quer abdicar das suas ambições, vai persistir? Os dois lados vão estar tão cansados um dia que vão ter de negociar? Tem de ser. Agora é um bocadinho difícil, porque a reação da Ucrânia e de Zelensky foi notável. Eles têm uma guerra em cidades o que é ainda mais difícil. Os russos desistiram de entrar em Kiev. Mas, historicamente, podemos ver situações como os alemães em Varsóvia, onde tiveram dificuldades, os ingleses na Irlanda do Norte também, os franceses em Argel a mesma coisa, porque as pessoas de lá conhecem bem as ruas, os becos, as casas. No fundo, conhecem melhor o teatro de operações do que os invasores..Está a dizer que os russos têm claramente limitações para avançar? Têm. E, portanto, a solução atual são os drones que bombardeiam tudo, ou seja, a evolução da ciência e da tecnologia altera tudo..No fundo, os russos conseguem massacrar a Ucrânia, mas não conseguem derrotá-la? Não conseguem derrotar. E mais, estão a criar um ódio para o resto da história, o que também dificulta as negociações..Foi governador de Macau numa fase em que Portugal nem sequer tinha ainda relações diplomáticas com a China. Nessa altura, daquilo que aprendeu da China e dos chineses, e estamos a falar antes de Deng Xiaoping fazer reformas económicas, imaginava que esta China chegaria a 2023 como candidato a ser o grande rival dos Estados Unidos? Não, não imaginava. Quando cheguei apanhei a morte de Mao e de Chu Enlai e a apanhei também a ascensão de Deng. Depois das reformas de Deng Xiaoping, em 40 anos, aconteceu tudo a um ritmo impressionante. O povo chinês é muito disciplinado, claro que se pode argumentar que é disciplinado porque vive sob ditadura, mas há outra coisa. Os chineses nunca viveram tão bem como agora e é isso que dá legitimidade ao regime. Acho que enquanto Xi Jinping conseguir ir aumentando a qualidade de vida e os estudantes que estão no estrangeiro regressarem à China tudo correrá bem... A juventude, é aí que se pode pôr o problema do futuro do regime chinês..Esses jovens no estrangeiro são um sinal de se os chineses acreditam no regime ou não? Eles veem o que se passa noutros sítios do mundo, depois podem ou não voltar à China, mas há gente em todo o lado a estudar fora da China. Há um livro que se chama China 3.0, da Gradiva, é muito pequenino, de 2011, e que fala da terceira geração de líderes da China. O livro foi encomendado pela Comissão Europeia e só tem textos ocidentais no prefácio e posfácio, de resto são textos de chineses. Ou seja, é a China vista pelos próprios chineses. Integra análise sobre política interna, política externa e política económica, desde o liberalismo total até ao voltar do maoísmo. E o livro está quase apresentado como se fosse um PowerPoint para dar uma aula..É inevitável que os Estados Unidos identifiquem a China como rival? Acho que a palavra não devia ser rival, mas sim competidor. Mas sim, os americanos veem a China assim e isso é um erro. Aliás, há uns tempos achei muito estranha aquela visita de Nancy Pelosi a Taiwan. Porque é que ela lá foi? Porque os Estados Unidos têm uma estrutura de funcionamento político complicada, é uma federação muito complicada. Portanto, há separação de poderes, mas a política externa tem de ser orientada no mesmo sentido, isto é, não pode haver política externa que seja orientada pelo Executivo e política externa do Congresso. Não vale a pena estar a provocar os chineses. Para quê? Porque lembro-me, numa altura em que dava aulas sobre isso, que havia já muitos contactos, havia umas centenas de empresas de Taiwan e da China que tinham relações. E depois, quando se arranjou o primeiro voo entre Taiwan e China, foi via Macau. Portanto, há ali até uma relação familiar, mas o que se passa é que tudo teve início em 1949 e quer o Kuomintang, quer o Partido Comunista, consideravam que a China é una. Ora, o Kuomintang continua a defender isso, mas não é o Partido que está no governo em Taiwan. E há uma frase atribuída ao Churchill, que tinha coisas notáveis, embora devesse ser difícil de aturar também, em que ele disse que os americanos encontram sempre a melhor solução, após terem experimentado todas as outras.