Morrer é apenas um pouco partir

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Carlos do Carmo e Bernardo Sassetti tocam no silêncio desta tarde de sol. Agora ainda mais limpidamente, vindos da eternidade até nós.

Era isso Sassetti. Curvado até ao âmago da alma em cada nota. Ele afinava-as lá.

Carlos, com a sua voz, uma voz de claustro reverberando a partir de um só homem.

Os dois, aqui connosco, neste dia primeiro e último. Que extraordinário.

O CD sai da prateleira após a notícia. Chega a 2021 como um objeto que pertence já à história da mais excelente música portuguesa (e não só). Ainda por cima neste álbum por onde navegam por palavras de outros: de Zeca Afonso a Sérgio Godinho, passando pelo Porto Sentido de Rui Veloso e Carlos Tê - os lisboetas Carmo & Sassetti a passearem com voz e piano-fado-jazz pelo granito frio da minha cidade, numa interpretação de suspender a respiração.

Este disco é um testamento sobre algumas das canções mais decisivas da nossa vida. Mas há tantas outras. Porque me surgiam tantas vezes, vindas do nada, naquela voz? Poesia que se transformava em palavras corridas, sem quadras nem respirações. Sobretudo nos vazios, quando era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia. Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia. Era tarde tão tarde que a boca tardando no beijo mordia, quando à boca da noite surgiste na tarde qual rosa tardia. Disse-te mil vezes sem que ouvisses: meu amor, meu amor, minha estrela da tarde, que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde. Meu amor, meu amor, eu não tenho a certeza se tu és a alegria ou se és a tristeza. Meu amor, meu amor, eu não tenho a certeza.

Ary dos Santos, Fernando Tordo, José Luís Tinoco, António dos Santos, Mascarenhas Barreto andaram com ele, tal como tantos arranjos geniais de tantos músicos e guitarras portuguesas. Ele trouxe-os a todos, criava monumentos a partir da garganta, andam por aí, nas praças das nossas cabeças. Encontramo-nos todos lá, por estes dias. Tantos.

Ele é também um arquiteto de Lisboa, a cidade mágica-estado de espírito da luz, a luz do rio, o rio, a miscigenação, a cantaria antiga, as praças e os recantos, os jacarandás da primavera e o clima que nos abraça. Quem vem do Norte sabe bem qual a graça dessa cidade-mulher quente que nunca mais sai de nós. E mesmo que uma gaivota viesse trazer-me o céu de Lisboa no desenho que fizesse, nesse céu onde o olhar é uma asa que não voa (esmorece e cai no ar), que perfeito coração no meu peito bateria meu amor. Na tua mão, nessa mão onde cabia, perfeito o meu coração.

Mas talvez o mais dilacerante seja o Teu Poema. Tantas vezes te disse: Carlos, obrigado porque existe um rio. Sei da sina de quem nasce fraco ou forte, do risco, da raiva e da luta de quem cai ou que resiste: que vence ou adormece antes da morte. Mas, sabes, no teu poema, existe a esperança acesa atrás do muro, existe tudo o mais que ainda escapa, e um verso em branco à espera de futuro.

Na rádio, eram quase 14 horas do dia 1 e alguém fechou a hora de emissão com este tema, tão menos popular, mas tão mais significativo neste momento: Partir É Morrer Um Pouco. Fiquei no carro já estacionado gelado de janeiro a ouvir até ao fim, como se houvesse ali um momento entre nós e ele, no éter, já lá, indo. E dizias: adeus parceiros das farras, dos copos e das noitadas.

Adeus sombras da cidade, adeus langor das guitarras, canto de esperanças frustradas, alvorada de saudade. Meu coração como louco quer desgarrar-me do peito, transforma em soluço a voz.

Partir é morrer um pouco: a alma de certo jeito a expirar dentro de nós. Deixo a minha alma no cais, de longe canso sinais feitos de pranto a correr. Quem morre não sofre mais, mas quem parte é dor demais. É bem pior que morrer.

Por aqui, voam mágoas em pedaços.

Para ti, morrer é apenas um pouco partir.


Jornalista

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