"Vergonha é julgar que se sabe tudo. Vergonha é não saber que se pode saber sempre mais, é não ser capaz de repetir com Garcia de Orta que 'o que sabemos [é] uma pequena parte do que ignoramos' . Nenhum homem ou mulher com uma formação científica pode afirmar que sabe sem dúvida". A frase é da cientista Maria de Sousa, um dos primeiros rostos a sucumbir à infeção pelo novo coronavírus no início da pandemia. Maria de Sousa, médica, bióloga, poetisa, humanista, era um dos nomes que transportava em si a bagagem do saber e a do sentir, da ciência e da arte. Talvez por isso um dos nomes atirados para cima da mesa pelos nossos entrevistados quando se mistura ciência e arte. Maria de Sousa, como quase sete mil outras pessoas, foi vítima da pandemia. Que papel teve a ciência que tanto amava durante este período? Foi uma ciência ganhadora? E a arte? Que papel teve num país obrigado a confinar? E o futuro, o que vem aí?.Maria do Carmo Fonseca, médica, cientista, professora catedrática, ex-diretora executiva do Instituto de Medicina Molecular e o ator, dramaturgo e diretor artístico Tiago Rodrigues aceitaram o desafio do DN para conversarem sobre tudo isto. Em maio, já tinham aceitado escrever uma Carta Aberta às gerações mais novas e às mais velhas, ambos lançaram hinos de esperança. Agora, o presente está presente e o futuro antevê-se. A pandemia vem marcar gerações, vem acelerar mudanças e Maria Do Carmo Fonseca, de 61 anos, espera viver até ao momento em que o mundo assista aos efeitos da computação mecânica e confessa que a grande marca da pandemia foi perceber que, como cientista, podia deixar de fazer viagens de avião em trabalho e poupar o planeta. Tiago Rodrigues, de 43 anos, quer continuar a ser um aprendiz, como defende que todos o deveríamos ser, mas na pandemia assumiu um compromisso e assume-o: "Comprometi-me com o espaço selvagem, com a floresta, com o natural.".O encontro deu-se às 18h00 de uma tarde ainda de dezembro. Carmo e Tiago não se conheciam pessoalmente, apesar da admiração que confidenciaram ter pelo percurso profissional de cada um. Ambos foram galardoados com o Prémio Pessoa. E assim que se cruzam na sala do teatro que representa outros tempos, datado do século XIX e renovado em 1978, trocam elogios. Não houve aperto de mão ou um abraço, o momento foi marcado por sorrisos e olhares. A conversa decorreu no Salão Nobre, vigiados por nomes grandes como o de Amélia Rey Colaço, onde havia espaço suficiente para conversar em segurança e tirar máscaras..O DN questionou e, aos poucos, a cientista e o diretor artístico foram desfiando o que um e outro iam soltando. E a conversa fez-se da liberdade à criatividade, do pensamento crítico ao escrutínio, do saber e do desenvolvimento científico à ética, da arte ao processo revolucionário, da organização política ao sonho de que gerações vindouras poderão viver melhor que nós. Ficou muito mais por dizer..A pandemia aproximou a ciência da população, nunca se buscou tanto a informação e o saber dos cientistas para se explicar, quase ao minuto, o que está a acontecer com a covid-19. Isto quer dizer que a ciência reforçou a sua imagem e o seu papel junto das pessoas? E que papel teve a arte? Tiago Rodrigues (TR) ri-se - Se calhar o melhor é a Carmo falar de arte e eu de ciência. Maria do Carmo Fonseca (MCF) - Comece Tiago, força. TR - Bem, a ciência e a arte têm um papel preponderante na sociedade ao longo dos tempos. Se falamos só de 2020, eu diria que a ciência surge com todo o seu conhecimento para resolver o que já resolveu, mitigar os riscos da pandemia, mas há que ter uma noção fundamental que é: quando a ciência surge com uma resposta, traz mais dez perguntas atrás. E talvez seja este questionamento que ciência e arte mais têm em comum. São atividades que podem traduzir o questionamento numa relação de eficácia com a sociedade. No caso da ciência sem dúvida, no caso da arte também, embora na arte seja mais difícil de medir essa utilidade. Mas ambas surgem de algo absolutamente fundamental da condição humana que é o seu espírito de curiosidade, de inquietação, da capacidade de colocar perguntas sem ainda se saber a resposta. Esta é a questão comum à ciência e à arte, depois as pessoas vivem-nas diferentemente. MCF - Eu diria que arte e ciência fazem parte da humanidade, em termos históricos sempre tivemos provas de que o Homo sapiens não sabe viver sem ciência, mas que também não sabe viver sem arte. E, portanto, é absolutamente essencial termos estas duas componentes na vida das sociedades. Gostava só de acrescentar ao que o Tiago disse que a ciência não é só a curiosidade, o fazer perguntas, é o perceber como é que o mundo ou o que está à minha volta funciona. Ou seja, a seguir à pergunta a ciência traz a capacidade de podermos interferir. E nesta pandemia tornou-se muito evidente a utilidade da ciência para todos nós, não só através dos tratamentos da doença, mas também na maneira como se comunicou. As tecnologias digitais com que o mundo comunicou são resultado da ciência, são a pura consequência de um conhecimento que não tínhamos até agora e que influenciará o futuro numa dimensão vastamente maior. Está aí a chegar a computação quântica e é inimaginável para nós, hoje, a revolução que isso vai trazer em termos de acesso a uma vida num mundo muitíssimo mais dominado pelo digital..Destaquedestaque"Vamos ter de aprender rapidamente, enquanto espécie humana e sociedade, como vamos enfrentar os grandes desafios do futuro". .A pandemia é um processo revolucionário, vamos ter de reinventar a vida e as sociedades? Como olham para o futuro? TR - Ao fim destes nove meses, penso que já podemos chamar à pandemia um acontecimento histórico que está a ter ramificações profundas em todo o planeta e a deixar um lastro revolucionário à escala global, no sentido em que está a transformar o modo como olhamos e agimos em relação a vários aspetos das nossas vidas, quer individualmente quer coletivamente. Não tem de ser necessariamente um processo revolucionário ou reformista o que estamos a viver neste momento, mas irá ter consequências muito transformadoras na forma como vivemos. Eu diria que este ano tem algo de inédito, não só para a minha geração, mas para os contemporâneos, para os que estamos vivos. Algo de inédito que, de alguma forma, é uma espécie de espírito de ensaio geral - para usar um jargão teatral, que é a minha área. Independentemente de podermos já profetizar ou não o quão revolucionária vai ser esta pandemia para a espécie humana, deveríamos ler com muita atenção as lições que já encerra. Como a Carmo disse há pouco, e com muito mais conhecimento do que eu, vamos ter de aprender rapidamente, enquanto espécie humana e sociedade, como vamos enfrentar os grandes desafios do futuro. E é aqui que há um espírito de ensaio geral em relação ao que imaginamos que possam ser os grandes desafios das próximas décadas..Quais são os próximos desafios? TR - Os que estão ligados às alterações climáticas são os que mais me preocupam e sobre os quais julgo serem precisos pactos coletivos para os enfrentar. Primeiro porque são inevitáveis e depois porque são transversais. Vão tocar-nos a todos e talvez impliquem, pela primeira vez na história da espécie humana, um degradar constante das condições de vida, algo que nunca aconteceu, em grande parte graças à ciência. O desenvolvimento científico do Homo sapiens permitiu que cada um dos primatas desta espécie pudesse imaginar - o que é uma coisa belíssima, imaginarmos, que as próximas gerações irão viver melhor. E isto condicionou a nossa espécie e a tendência para a bondade, mas julgo que agora estamos, eventualmente, perante um início de declínio e, neste sentido, dificilmente consigo perspetivar para as próximas gerações o sonho de que vivam melhor do que nós vivemos hoje nos próximos 100 a 200 anos..É esse o desafio? TR -É um desafio e a ciência tem obviamente um papel fundamental, sobretudo na forma como se irá empregar o saber e o desenvolvimento que nos vai dar. A ciência, em grande medida, contribuiu para a degradação das condições de vida, dos ecossistemas, mas apenas porque a aplicação política e económica das ferramentas que disponibilizou à espécie humana não foram as mais adequadas. Neste momento, um dos grandes desafios é a grande negociação que tem de haver entre o conhecimento e a aplicação desse conhecimento científico. Temos de aprender a fazer isso. Penso que tende para ouvirmos melhor os cientistas e menos o mercado tecnológico, embora este também tenha aproveitado o saber científico para coisas absolutamente fantásticas, como a democratização no acesso à informação através do digital, mas é preciso encontrar um equilíbrio entre a busca pela melhoria de condições vida e no que se traduz depois. E é aqui que considero que cometemos alguns erros, que temos de reconhecer, corrigir e adequar para se continuar a imaginar que haverá gerações futuras, vindouras, para usar uma expressão que acho muito bonita, que poderão viver melhor do que nós. O grande desafio das próximas décadas será o de perceber como poderemos criar um pacto de espécie para que possamos sonhar, não com a sobrevivência ou com a sobrevivência do planeta, mas com a possibilidade de imaginar que vindouros viverão melhor, o que é uma possibilidade que, neste momento, se coloca muito remotamente..Destaquedestaque"Não sei o que se irá passar daqui a uns anos, mas para já faria aqui um paralelismo entre o grande evento disruptivo que foi a II GG e esta pandemia"..E para a ciência, que desafios vêm aí? Estamos perante um processo revolucionário? MCF - A palavra revolucionário emprega-se aqui e bem, porque um acontecimento revolucionário é um acontecimento disruptivo. Quando tudo está bem, quando vivemos numa espécie de marasmo precisamos destes eventos disruptivos para saltarmos obstáculos e passarmos a barreira para o outro lado. Para a geração dos meus pais o evento revolucionário foi a II Grande Guerra. Há a vida antes da II GG e a vida após, que resultou no florescimento de uma sociedade nova, onde tudo parecia ideal, mas a minha geração não teve até agora nenhum desses momentos disruptivos e as gerações mais jovens também não. Não sei o que se irá passar daqui a uns anos, mas para já faria aqui um paralelismo entre o grande evento disruptivo que foi a II GG e esta pandemia..Porquê? MCF - Porque a pandemia tomou uma dimensão enorme nas nossas vidas e porque vai deixar marcas tão transformativas para o futuro. O futuro não vai ser igual ao que se pensava que iria ser na era pré-pandemia. Até ver o que se vai passar no futuro, eu classificaria a pandemia como um grande acontecimento revolucionário desde a II GG. Estou completamente de acordo com as afirmações do Tiago, estamos a aprender com a pandemia, mas queria trazer para esta conversa um terceiro pilar - sei que o tema é a ciência e a arte, mas acho que não podemos ignorar o pilar da organização social e política, porque também já aprendemos que com acontecimentos disruptivos não podemos atuar isoladamente. O Serviço Nacional de Saúde (SNS) é um bom exemplo de como precisamos de um sistema politicamente organizado para se conseguir responder de forma mais eficaz a estes eventos e vai ser essencial que assim seja também para respondermos ao grande desafio que é a sustentabilidade do planeta, e não falo só de alterações climáticas, mas da poluição que o nosso modo de vida está a causar, da utilização dos recursos, como o petróleo e a água, que nos vai faltar mais cedo, que é absolutamente insustentável. Portanto, não é com o cientista ou com o artista, enquanto indivíduos, que vamos conseguir encontrar uma solução, precisamos de um compromisso extremamente forte. Nós, indivíduos, temos de pressionar os nossos políticos, não podemos continuar a deixá-los soltos, no sentido em que não são pressionados a agir em relação ao perigo iminente que como espécie estamos a enfrentar..Desse ponto de vista e à nossa escala, a sociedade portuguesa deixa os políticos à solta? Faz pouco escrutínio? Vai mudar? MCF - Já começou a mudar. Um sinal disso é a hesitação em relação às vacinas. As pessoas já não estão a seguir cegamente o que o sistema lhes diz. Eu tenho assistido, e de uma forma muito preocupada, à desmotivação das gerações mais novas pela política, porque o nosso futuro depende de uma intervenção forte junto dos políticos. Eu fui uma adolescente do 25 de Abril, e isso marcou-me para o resto da vida, foi um momento disruptivo à nossa escala, mas levou-me a uma imersão completa nos temas políticos, à discussão de ideologias, de experiências em outros países. E o que tenho vindo a assistir nos últimos anos é ao desinteresse das novas gerações por aquilo que para mim é o pensamento crítico numa sociedade. Os jovens começaram a delegar nos outros as suas decisões ao não participarem em eleições, ao não participarem na discussão política, mas agora estão a voltar..À escala mundial, a Greta Thunberg é um sinal? MCF - É um sinal de que os jovens já não querem deixar esses assuntos nas mãos de outros. Acho que a sociedade tem realmente consciência que tem de colocar as suas dúvidas, que tem de falar e que tem de encontrar soluções. Só podemos resolver os grandes problemas se nos ouvirmos e se tivermos força como grupo..Destaquedestaque"Que regras e ferramentas usaremos na nossa organização para pôr a arte e a ciência ao serviço do bem-estar das pessoas e do futuro? ".TR - Subscrevo inteiramente o que a Carmo disse e faço aqui a ponte para a arte e para a ciência, que podem ter um papel, embora inteiramente distinto, numa sociedade mais crítica e mais participada, assim as pessoas o queiram. Em primeiro lugar, penso que tanto a ciência como a arte, numa sociedade democrática como a portuguesa, não deveriam ter de provar a sua utilidade social. São aspetos fundamentais na vida humana cuja utilidade tem sido provada ao longo da história. Portanto deveria ser absolutamente impossível pôr em causa estes valores. Deveríamos pensar sim como pode uma sociedade democrática aproveitar a existência da atividade científica e artística para melhorar as condições de vida e projetar o futuro. É aqui que entra a dimensão do político e da sociedade civil, como nos vamos organizar? Que regras e ferramentas usaremos na nossa organização para pôr a arte e a ciência ao serviço do bem-estar das pessoas e do futuro? Por exemplo, nos últimos anos o digital introduziu uma vertigem informativa pouco filtrada por critérios jornalísticos, deontológicos, introduzindo o fact cheking. Mas o fact cheking do jornalismo é fundamental, como o da ciência ou do método cientifico, porque alguns dos grandes debates políticos do nosso tempo têm a ver com a negação das evidências científicas. Numa sociedade mais participativa, a literacia científica é absolutamente fundamental, pois só assim poderemos ser participantes ativos informados..Mas onde fica o papel da arte neste aspeto? TR - Aqui a arte vem depois, para complementar esse exercício de cidadania, porque uma vida quotidiana sem arte não é uma vida plena. Significa que aquela pessoa não tem tempos livres suficientes ou que esses tempos livres são imputados por mecanismo de consumo e de entretenimento que não permitem um pensamento critico. A grande oportunidade para a sociedade de uma vida cultural forte e diversa é o pensamento divergente. É a utilidade do inútil. É o haver tempo para pensarmos em coisas, para sinapses, que a arte também pode oferecer, pelo absurdo, pela abstração, pelo ócio, que também são fundamentais. Richard Feynman dizia que tinha as melhores ideias quando estava nos seus tempos livres e não quando estava obcecado pela eficácia. Jorge Steiner também diz que a Europa existirá enquanto existirem cafés, no sentido em que existirá enquanto existirem espaços onde não estejamos condenados à produção e à eficácia. É aqui que entra a arte, e tem um papel fundamental, pode ser uma espécie de bolsa de pensamento divergente, de defesa dos valores fundamentais da nossa vida, que não podem ser medidos..Destaquedestaque"A arte teve um papel de coesão social, de manutenção da saúde mental das pessoas, mas não é para isto que serve"..A arte não é mensurável? TR - Há coisas fundamentais na nossa vida que não são mensuráveis. Se pedirmos a uma pessoa no leito de morte que faça uma lista das dez coisas fundamentais na sua vida, à partida nove serão invisíveis, são valores e ideias, a arte trata muito dessa questão. Nesta pandemia tive uma conversa muito interessante com o psiquiatra Daniel Sampaio, que me falava do impacto concreto, mas difícil de medir, sobre a relação da arte na saúde mental. O facto de muitos artistas terem partido para as plataformas digitais a oferecer teatro - algo que não se pode chamar teatro, mas que é uma promessa de teatro para quando voltarmos a estar todos juntos - teve um impacto enorme nas pessoas. A arte teve um papel de coesão social, de manutenção da saúde mental das pessoas, mas não é para isto que serve..Mas foi esse o papel que a arte teve na pandemia? TR - Acho que foi, mas também acho que temos de ter muito cuidado, porque a arte só vai cumprir esse papel se não for obrigada a fazê-lo. A arte tem de ter condições para acontecer e depois compete às pessoas, à sociedade e ao Estado - porque deveria haver serviço público de cultura, a Constituição consagra o acesso à criação e à fruição culturais - criar as pontes para que esta criação artística seja promovida e possa ser acedida pelas pessoas..E quando o acesso à arte não tem a ver com a questão de ter ou não tempos livres mas com a condição financeira? TR -A pandemia obrigou-nos a parar a 13 de março e a 16 estávamos a apresentar espetáculos online e a elaborar novas propostas para o online. Como nós muitas outras companhias fizeram o mesmo, e isto foi importante para as pessoas que já nos seguiam, mas também para as que não nos conheciam. Gosto de dar exemplos concretos. A D. Ivone foi uma espectadora do Teatro Nacional durante muitos anos. Agora, tem mais de 90 e há muito que não vinha ao teatro, mas como durante a pandemia, ao longo dos quatro meses seguidos, mostrámos dezenas de espetáculos dos últimos anos online, escreveu-nos a dizer que tinha recuperado o tempo perdido. A D. Ivone é um exemplo do acesso democrático que a passagem para o online, algo que já fazíamos mas que agora o fazemos de uma forma mais assumida, permitiu. E o que temos de aprender agora é voltarmos ao presencial mas continuar a manter relação com a D. Ivone, ou com o espectador brasileiro que nunca tinha assistido a um espetáculo no D. Maria II e que em quatro meses viu 12. Isto é muito importante, mas também é muito importante o trabalho presencial. Temos um projeto que é o 'Primeira Vez' que traz pessoas dos mais variados estratos sociais, ocupações e idades ao D. Maria. Entre estas pessoas está a D. Alzira que viveu durante 50 anos na Rua Augusta. Todos os dias via o teatro, mas só entrou pela primeira vez no teatro através deste projeto. A D. Alzira achava que não tinha edução para entrar nesta casa, que não tinha roupa adequada, que era caro, até que descobriu que o nosso preçário é mais democrático do que o da maioria de coisas que as pessoas podem fazer. Mas conto isto para chegar à questão do acesso, que não é financeira, é mais profunda, é económica, porque também tem a ver com o facto de as pessoas acharem que estavam excluídas da vida cultural por viverem em determinado lugar, terem determinado rendimento ou habilitações. Este é o grande trabalho que vamos ter de fazer, como transformar a arte em serviço público. É o trabalho de uma instituição como o D. Maria, mas precisa que aceleremos a fundo. Portugal tem um atraso histórico em relação à esmagadora maioria dos países europeus no serviço público de cultura. França começou este grande trabalho com André Malroux, com a democratização e a descentralização no período pós II Guerra. São 70 anos de trabalho que tem produzido efeitos: não há salas vazias. Em Portugal não fizemos esse trabalho, nunca tivemos um Mariano Gago na cultura. Dou este exemplo pelo que ele representou em termos de trabalho, planificação e construção de políticas para a ciência. Isto nunca aconteceu na cultura e teria sido absolutamente vital..Destaquedestaque"Não há criatividade sem liberdade". .Carmo, e o serviço público da ciência? Nunca se viu tantos cientistas a explicarem o que se está a passar com a evolução da doença... MCF - Gostaria de voltar às sinapses, porque há um denominador comum entre ciência e arte que é muito importante para ambas: é a criatividade. A criação artística ou a descoberta científica baseiam-se totalmente na criatividade e para se ser criativo é preciso que dentro do nosso cérebro se estabeleçam sinapses novas, que haja neurónios que antes não estavam a comunicar de determinada maneira e que de repente comunicam e dá-se o tal momento de inspiração. Mas para que isto aconteça também é preciso que a pessoa tenha o cérebro num estado de completa liberdade. Não há criatividade sem liberdade. Era o que o Tiago dizia há pouco. Não se encomenda um determinado produto. Neste sentido, cientistas e artistas estão muito próximos. Agora, sobre o aspeto que referiu, que a ciência saiu ganhadora com a pandemia porque a sociedade foi confrontada com os cientistas, mas levar o conhecimento científico diretamente do laboratório para a população geral não é fácil e pode ser perigoso. E temos tido a prova desses perigos nesta pandemia. O que quero dizer é que o conhecimento científico não é dogmático, é a antítese do dogma, e o que as pessoas querem quando ouvem um virologista é que este lhes diga quando é que o vírus acaba ou quando é que a vacina faz efeito. As pessoas têm perguntas dogmáticas perante os cientistas e os cientistas não podem responder com dogmas. Se as pessoas não compreendem isto, a mensagem pode virar-se ao contrário. Por exemplo, quando a pandemia surgiu foi dito por um cientista que a hidroxicloroquina resultava no tratamento. Passadas semanas, outros cientistas vieram dizer que afinal não era. Assim. as pessoas também questionam em relação às vacinas: como é que vou confiar? Mas estes avanços e recuos fazem parte do processo de conhecimento, que tem de estar permanentemente a ser monitorizado e a sociedade ainda não está preparada para lidar com a constante dúvida que é o conhecimento científico. O conhecimento científico não é um facto, detesto a palavra fact checking, o é verdade ou mentira? O avanço do conhecimento é feito de um degradé de cinzentos, de branco, de preto, não conhecemos a verdade absoluta..Não há verdades absolutas... MCF - A verdade absoluta é algo a que a humanidade não tem acesso, o que a ciência faz são aproximações sucessivas do que é a verdade, do que é o conhecimento. A ciência está permanentemente a avançar e a recuar, avança um bocadinho e recua outra vez. Isto tem de ser explicado às pessoas com tempo e não sob pressão como às vezes acontece na nossa televisão. Quando tal acontece está a criar-se uma situação em que se quer que a ciência dê dogmas, que diga: é assim ou não é assim. Isto tem de ser desmontado, porque dogmas pseudocientíficos são extremamente perigosos e mal usados por alguns sistemas sociais. E é aqui que volto a ligar a ciência à arte e ambas à politica. Temos de estar muito conscientes da responsabilidade de cada um na sociedade, e de como lidar com factos e descobertas e como utilizar tudo isto em prol da sociedade não permitindo que haja manipulações. Portanto, considero que a ciência não saiu assim tão ganhadora na pandemia..Já passámos para o papel da comunicação... MCF - Para o papel da comunicação e da educação, porque é fundamental que os nossos jovens sejam educados num ambiente que promova a criatividade livre e todas as perspetivas. Alguns terão talento para uma criatividade mais artística, outros para uma criatividade mais científica, mas à partida têm de ser livres até para saberem lidar com a humildade perante o conhecimento. Volto a dizer, não temos acesso ao conhecimento como algo: eu sei cientificamente que isto é assim, não sabemos, sabemos apenas que é uma aproximação..A pandemia também trará mudanças ao ensino, à educação, ao mercado laboral, ao envelhecimento? MCF - Volto ao conceito que discutimos no início de que todos os momentos disruptivos aceleram a mudança. A nossa relação com o envelhecimento tem vindo a mudar e vai mudar ainda mais no futuro, porque a ciência está a oferecer cada vez mais ferramentas que nos permitirão viver mais anos e com boa qualidade de vida. E as pessoas estão a agarrar isso avidamente. A própria estrutura social já se apercebeu. Por exemplo, as seguradoras são das principais interessadas em promover o envelhecimento saudável: as pessoas vão viver mais anos, mas se viverem de uma maneira saudável não terão encargos com medicamentos nem tratamentos..Destaquedestaque"A ciência tem estado a trabalhar e já temos provas de conceito de que é possível reverter o envelhecimento"..Mas esta mudança trará certamente outras questões... MCF - Neste momento ninguém se importa de usar um relógio que possa medir a frequência cardíaca, a tensão arterial, o nível de oxigénio no sangue e uma série de outros marcadores da sua saúde. Estamos claramente a caminhar para um futuro em que a prevenção da doença vai ser uma realidade. Agora, o que vai acontecer em paralelo? A ciência tem estado a trabalhar e já temos provas de conceito de que é possível reverter o envelhecimento..Vamos conseguir atrasar o relógio biológico? MCF - Antevejo que daqui a uns anos haverá tratamentos que sejam realmente capazes de atrasar o relógio biológico. Não nos vamos tornar imortais, mas vamos conseguir que o envelhecimento aconteça de outra forma. Mas isso vai implicar formas de tratamento que mexem com o nosso corpo por dentro. Todos estamos tranquilos em mexer no corpo por fora, mas pensar que vamos mexer nas nossas células e fazer que elas não envelheçam vai ser aceite? Penso que este vai ser um tema que a ciência e a sociedade vão ter de falar muito no futuro..O envelhecimento está na agenda dos cientistas... MCF - A ciência avança sempre e está na agenda dos cientistas ultrapassar todos os obstáculos e o envelhecimento é a última fronteira que a ciência biomédica tem de ultrapassar. E vamos lá chegar. Em animais já se conseguiu fazer essa reversão, mas fazer isso em humanos vai ser ético? A sociedade vai aceitar? Alguns vão sentir-se muito postos em causa, amedrontados, mas há outros que vão querer experimentar. E vamos ter de encontrar um equilíbrio, vamos ter de viver neste jogo que já vimos acontecer relativamente a outras situações alcançadas pela ciência, como os alimentos geneticamente modificados. Há pessoas que acham que são um sacrilégio e recusam terminantemente comer qualquer coisa que tenha sido geneticamente modificada. No entanto, sabemos que é insustentável continuar com os sistemas de alimentação que temos tido até agora. A ciência dá alternativas e o futuro vai passar por uma necessidade cada vez mais forte de a sociedade estar informada e educada sobre o processo científico, sobre as ofertas que a ciência faz para decidir se as aceita ou não..Destaquedestaque"A arte tem tido uma capacidade, quase profética, do que pode vir a acontecer. O primeiro homem a chegar à lua foi Júlio Verne e não Neil Armstrong". .Tiago, e sobre os dilemas morais da ciência? TR - A ciência há muito que nos coloca face a dilemas morais, a uma escala que nos surpreende mas que ao mesmo tempo toca o mais fundamental do ser humano. Curiosamente a arte, na sua relação com o mundo, também tende para o fazer. A arte tem tido uma capacidade, quase profética, do que pode vir a acontecer. O primeiro homem a chegar à Lua foi Júlio Verne e não Neil Armstrong. Verne não conseguiu pisar palpavelmente a Lua, mas propôs-nos isso, depois o cinema e o teatro também, e em 1969 é que Neil Armstrong lá foi cumprir um sonho que já tinha sido artístico. A arte tem essa capacidade de profecia e de sonho, tem a capacidade de encapsular as aspirações humanas. Mas a Carmo falou também na questão da educação e com a qual estou completamente de acordo. O paradigma da educação hoje ainda tem muito pouco espaço para a criatividade, é um paradigma que ainda é muito herdeiro da revolução industrial, no sentido em que tem como função produzir 'unidades' de trabalho eficazes - isto quando até já a ideia de eficácia se alterou com o digital. Portanto, a educação deveria alterar-se também..E o mercado laboral deve adaptar-se? TR - É fundamental repensarmos as relações laborais e na mesma ordem em que temos de repensar a educação, que é mais espaço para continuarmos a ser aprendizes ao longo de toda a vida, porque é que só poderemos ser aprendizes até começarmos a trabalhar e só voltar a sê-lo quando nos reformamos? Entre a juventude e a terceira idade é a fase do dogma? Fazemos o que sabemos? Não aprendemos mais? Nós devemos ter a capacidade e as ferramentas para sermos aprendizes durante a vida toda, porque isso nos coloca num lugar fundamental, que é o da humildade em relação a tudo o que não conhecemos. Por outro lado, o sermos aprendizes toda a vida também nos permitiria uma outra relação com o lazer, com a cidadania e com a participação cívica. Por exemplo, uma das coisas que acho que irá ficar desta pandemia - isto pode parecer anedótico, mas vou passar para a escala da miniatura - são os horários dos espetáculos. Com o recolher obrigatório, tivemos de antecipar das 21:30 para as 19:00, e o público vem. O que aconteceu? Teletrabalho, flexibilidade em termos de horários e outra coisa que é a flexibilidade das pessoas em organizarem a sua vida mais em função do que pensam ser a sua qualidade de vida do que em função da obrigatoriedade do horário fixo. A sociedade tem de se preparar porque o futuro obviamente é conseguirmos às 16.00 começar o lazer, ir buscar as crianças às escolas, ter o tal encontro com os amigos e depois ter uma vida cultural. Este espaço tem de ser conquistado e o mercado laboral e a sociedade têm de perceber isso. As pessoas têm o direito a perseguir a felicidade..A pandemia vai marcar mais as novas gerações, no sentido de procurarem a busca da felicidade, na busca do ser em vez do ter? MCF - A pandemia só virá acelerar um processo que já está em curso, mas os jovens vão ter de reinventar o seu projeto de vida. Tinham um projeto que fazia todo o sentido e que era viável nas condições no pré-pandemia, mas que deixou de ser durante a pandemia. E, portanto, ou sucumbem e pedem ajuda ou se reinventam. E é aqui que a educação e o tal espaço da liberdade para a criatividade vão ter um papel fundamental. Não é que venham todos a ser cientistas ou artistas, mas a mesma liberdade e criatividade vão fazê-los saltar obstáculos e vão ajudá-los a reinventar-se numa profissão, seja ela qual for..TR - Completamente de acordo com a Carmo. Independentemente da idade que tenhamos, o grande desafio vai ser: como podemos contribuir para o nosso bem estar e para a solução dos problemas que ainda temos em mãos? A grande questão é que vamos ter todos de nos responsabilizar e de participar na resolução do imediato, mas também na reparação da organização futura. Espero que não seja aquela a que parecia estarmos fatalmente condenados: crescimento económico, quando sabemos que os recursos são limitados, estratificação brutal da sociedade. Há mais coisas, a justiça fiscal, o acesso à cultura, a literacia científica, o combate às alterações climáticas e a legislação laboral são aspetos que se cruzam e são a teia que podem criar uma nova organização do mundo. Temos de conseguir que estas preocupações cheguem às empresas e aos políticos. Esta é uma das grandes missões deste momento..Indo à escala pessoal, como é que esta pandemia vos marcou? TR - Uma das descobertas para mim neste período da pandemia foi a absoluta necessidade, mais do que em qualquer outro momento da minha vida, foi o estar em contacto com o natural. Ainda não consigo ainda verbalizar muito bem, mas comprometi-me muito mais com o espaço selvagem, com a floresta..MCF - Para mim foram as viagens de avião. Como cientista viajava imenso, pelo menos uma a duas vezes por mês. De repente deixei de viajar, e foi possível continuar a fazer o que fazia. Sabendo o impacto que tem para o planeta cada viagem de avião acho que nunca mais vou voltar a viajar como antes, porque as viagens profissionais podem ser substituídas.