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03 fevereiro 2023 às 00h07

Alfoz: O restaurante de Alcochete onde Mário Soares ia comer enguias fritas celebra 30 anos

Situado à beira Tejo, com Lisboa lá ao fundo, na outra margem, o restaurante idealizado pelo empresário Fernando Pessoa em 1993 beneficiou com a construção da Ponte Vasco da Gama, mas o segredo do sucesso do Alfoz continua a ser sabores como o da caldeirada de línguas de bacalhau.

Faz hoje 30 anos que o restaurante Alfoz abriu portas em Alcochete e logo para receber o presidente Mário Soares e a numerosa comitiva que sempre o acompanhava nas suas presidências abertas, forma de contactar com o chamado país real. Fernando Pessoa, o empresário com nome de poeta desde o primeiro momento ligado ao Alfoz, recorda-se bem desse dia 3 de fevereiro de 1993, "pois foi feito tudo para a inauguração coincidir com a visita do presidente, que já tinha sido cliente de outros restaurantes meus aqui". E acrescenta, entre risos: "nesse dia estavam previstas 200 pessoas para o almoço, mas vieram umas 400. O prato principal de bacalhau foi rendendo até às 300 pessoas, e a partir daí disse à minha mãe para inventar. Como tínhamos muito bacalhau, fomos servindo bacalhau frito com batatas fritas e ninguém terá ficado sem almoçar".

A mãe de Fernando chama-se Aldina e hoje está reformada, depois de muitos anos como cozinheira. Além de ter sido um dos segredos do sucesso do Alfoz ao longo dos anos, ficou famosa pelo prato que criou para homenagear Mário Soares, o bacalhau à presidente. Peço ao filho que, enquanto vamos saboreando as tostas barradas com o recheio de casco de santola, me descreva esse bacalhau pensado para agradar a um presidente que todos sabiam ser bom garfo. "Faz-se um refogado com alho, tomate, louro e cebola. Muito tomate mesmo. À parte prepara-se um puré de batata, simples, com leite e um pouco de noz moscada. O bacalhau é cozido no vapor da tomatada, posto num tabuleiro barrado com o puré de batata onde se acrescentou umas azeitonas pretas às rodelas e por cima vai o pão ralado pincelado com gema de ovo. No final, fica com aquele aspeto crocante do pão ralado e do ovo. Muito saboroso, mas muito trabalhoso. Hoje só fazemos se um grupo pedir. Não é prato para estar na carta", explica Fernando, sem esconder o orgulho em Aldina, com quem aprendeu muito desde pequeno, quando a via trabalhar na cozinha da família Lupi, donos da Herdade de Rio Frio, que se espalhava então por terras de Alcochete, Palmela e Montijo. Aliás, Fernando nasceu na herdade, onde também o pai Joaquim trabalhava, e foi criado lá, em Barroca de Alva, na porção alcochetana desse latifúndio que até tinha escola e hospital e ainda hoje é conhecido pela beleza do Palácio de Rio Frio, situado perto de Pinhal Novo.

Fernando, que costuma apresentar-se como "Fernando Pessoa, o vivo", uma forma bem-humorada de antecipar a surpresa por ser homónimo do autor de Mensagem, fez em janeiro 58 anos. Conta sempre ter tido a ambição de ir além do meio em que nasceu, até porque conviveu com um meio que tinha muito mais, e isso explica porque fez questão de trabalhar desde muito jovem, fosse nas secas do bacalhau, fosse nas fábricas de cortiça. A primeira aventura na restauração foi no Café Garcia, do pai da namorada. Depois compra um restaurante que rebatiza de Alcochetano. Conta que tinha só cem contos, equivalente a 500 euros, mas que conseguiu que uma pessoa da terra, com algumas posses, lhe assinasse um aval bancário, de modo a conseguir o capital em falta. "Como gastei tudo e mais algum para comprar o Pescador, que transformei no Alcochetano, ia de madrugada ajudar a carregar camionetas de porcos e, em vez de me pagarem em dinheiro, recebia febras, couratos e entremeadadas, que depois assava num grelhador à porta do restaurante", explica. Na época, um dos frequentadores habituais das tascas de Alcochete, Joaquim Machaz, o fundador dos Hotéis Tivoli em Lisboa, "achou piada ao miúdo que fazia pela vida a grelhar febras" e, conta Fernando, "disse que se eu arranjasse umas lagostas e uns percebes era capaz de atrair determinados clientes e ajudar o negócio a prosperar".

A rir-se, o dono do Alfoz relembra que na época nem sabia bem o que eram percebes, e, mesmo depois de aprender a cozer esse marisco que cresce agarrado às rochas batidas pelas ondas do Atlântico, havia o problema de certos clientes não saberem como se come.

Fernando não poupa elogios a Joaquim Machaz, que mais tarde o incentiva a apresentar um projeto, que será pioneiro entre os restaurantes, para receber financiamento comunitário de 50% a fundo perdido. É essa a génese do Alfoz, que nasceu ambicioso, como Fernando, e chegou mais tarde a ter também hotel, discoteca e clube náutico, tudo a aproveitar o Tejo, rio que banha esta vila cheia de história, onde nasceu D. Manuel I e que tem um Museu de Arte Sacra que um dia, era ainda Príncipe das Astúrias, o rei Filipe VI de Espanha fez questão de vir visitar. "O restaurante sempre foi o coração de tudo e é esse coração que, sempre com ajuda de um sócio ou outro, fiz questão de manter vivo", diz feliz por este 30.º aniversário. Para a mesa vêm, entretanto, dois pratos emblemáticos do Alfoz, a caldeirada de línguas de bacalhau e as enguias fritas com açorda de ovas. A acompanhar, uma garrafa de Vallado, um branco do Douro que se bebe muito bem enquanto se almoça de olhos no Tejo, com a Ponte Vasco da Gama no horizonte.

A clientela do Alfoz é muito feita de gente de fora, que pode ser do Montijo mesmo ao lado, ou de Setúbal (onde Fernando se abastece de marisco e peixe, tudo do Sado, tirando as enguias, que são do Tejo) e de Lisboa. Desde sempre figuras famosas vieram aqui provar a qualidade da comida, curiosamente muita gente do cinema, pois o produtor Paulo Branco frequentava o Alcochetano e um dia desafiou Fernando a tratar do catering de Non ou Vã Gloria de Mandar de Manoel de Oliveira, filme com centenas de figurantes e que teve filmagens no estrangeiro, e até em África. Fico a saber que Fernando trabalhou quatro anos na Madragoa Filmes até decidir que não era a vida que queria, mesmo que devesse muito a atores e atrizes, como o brasileiro José Wilker, que no auge do sucesso de Roque Santeiro, ia ao Alcochetano e graças a isso "era uma loucura", com a casa a encher de fãs da telenovela.

O regresso à restauração é com a Tasca do Vítor, onde o realizador João César Monteiro decidiu muito do que seria o filme Branca de Neve (o cinema outra vez!). Mas só com a construção do Alfoz Fernando sente que finalmente está no caminho que sempre sonhou, um início difícil, com muitos desafios, "mas felizmente com muita ajuda do Joaquim e da Aldina, os meus pais". Conta que trabalhou muito, sempre sem ter certeza de nada. E até que um dia Mário Soares veio aqui almoçar com Ferreira do Amaral, ministro das Obras Públicas do governo de Cavaco Silva, para conversarem sobre a nova ponte sobre o Tejo e que o presidente disse que por ele estava decidido, seria entre Lisboa e Alcochete, mas à noite, no telejornal, aparece a dizer o contrário. "Assustei-me. Contava com o movimento trazido pela nova ponte. Liguei para o presidente, para casa, pois por coincidência uma irmã da minha mãe era a governanta, e disse-lhe que se não se faz a ponte em Alcochete atiro-me da outra ponte. Mário Soares, a rir-se, responde que não me preocupe. Que é tudo política. Que a ponte estava já decidida e seria como eu queria", relembra Fernando. Depois disso, já aproveitando a ponte Vasco da Gama, inaugurada com António Guterres como primeiro-ministro e Jorge Sampaio como presidente, Mário Soares continuou a ser cliente das enguias do Alfoz. E uma coleção de estatuetas em barro, oferecidas a Fernando por Joaquim Machaz, inclui uma do presidente bonacheirão, um convicto pai da democracia que sabia não vir mal ao mundo um político ser chamado de " o bochechas".

Da equipa do Sporting, que é visita regular ( ou não treinasse na Academia de Alcochete), a Bo Derek e Shania Twain ou, há semanas, Xanana Gusmão, é impressionante a quantidade de pessoas, e a diversidade, que se rende ao encanto tanto da gastronomia como da paisagem. O Tejo é aqui larguíssimo e belo, sobretudo num dia de sol de inverno como este. E as salinas do Samouco com os seus flamingos ficam mesmo ao lado. Ora, um livro de honra contém dedicatórias de vários desses clientes famosos, com a primeira a ser exatamente de Mário Soares: "Excelente almoço e magnífico quadro paisagístico! Muito obrigado". A data é 3 de fevereiro de 1993.

Com a inauguração da Ponte Vasco da Gama em 1998, o Alfoz passou a estar a meia hora de Lisboa. Fernando ganhou a aposta, apesar dos desafios serem constantes, como ainda recentemente a pandemia. Foi a vender para os clientes habituais, a levar a casa as refeições, a fornecer algo especial quando alguém fazia anos, que o restaurante ultrapassou a crise enquanto durava o confinamento por causa da covid-19. "Como somos gente que paga os impostos, tivemos acesso a todos os apoios do Estado e mantivemos os postos de trabalho. E aprendi que ganhava em manter 70 lugares sentados em vez de 150. Em assegurar um serviço de excelência em vez de estarmos a correr com as bandejas na mão. E mesmo quanto abrimos a varanda no verão, mantenho o mesmo número de mesas no total, para a cozinha dar conta do recado na perfeição", sublinha Fernando, que tem como sócio desde há uma década "o José Costa, que foi chefe da cozinha, chefe de sala, uma das pessoas que nunca desistiu, que sofreu comigo, que foi teimoso como eu, que está cá a 200% e me permite ter outros projetos, até porque a rentabilidade aqui é pouca e nunca deu para tirar um bom ordenado".

Para sobremesa, fatias de tarte de laranja e de fogaça, tradicional de Alcochete. Fernando confessa sentir orgulho neste Alfoz, que dignifica Alcochete e nasceu da sua ambição de fazer sempre mais, mas também da vontade de fazer algo pela terra, sobretudo quando o fecho das salgas de bacalhau e de fábricas trouxe desemprego. "Tive aqui uma panela de sopa que quem precisava podia vir buscar e levar para casa", nota, dizendo que felizmente os tempos são outros. E agradece muito à tal ponte que pôs Alcochete mais perto da capital.

Numa coleção de recortes de jornal, Fernando mostra-me uma reportagem do DN em 1993 sobre o Alfoz, feita por Guilherme de Melo, com quem trabalhei, e que na qualidade da escrita revelava a condição de romancista. "É terra de toiros. De cavalos de crina ao vento. De campinos recortados na paisagem, com rostos de pedra granítica tisnada pelo sol. Terra de tentas e pegas, de embalo de barcos no dorso do Tejo. Alcochete, vocês sabem, não é? Ainda um pequeno paraíso esquecido - com Lisboa tão perto e afinal tão longe", escreveu o repórter, nessa era pré-ponte. Para logo acrescentar: "Comer no Alfoz é ter a sensação de que se está a bordo de um barco ancorado no Tejo, por onde os nossos olhos se alongam até tocarem a mancha larga de Lisboa ao fundo". Subscrevo, como subscrevo também o "nota máxima para a caldeirada"... e para o casco de santola e para as enguias fritas com açorda de ovas.

leonidio.ferreira@dn.pt