O homem com o segundo trabalho mais difícil do mundo
Não tenho dúvidas que na categoria de figuras internacionais com tarefa complicada, António Guterres merece o ouro, basta pensar como o antigo primeiro-ministro português tem de lidar com as discussões bizantinas das potências do Conselho de Segurança. Mas logo a seguir ao secretário-geral das Nações Unidas, que está à frente de uma organização com 193 membros, não me custa apontar como um dos candidatos à medalha de prata o egípcio Nasser Kamel, secretário-geral da União para o Mediterrâneo (UpM), o grande espaço de diálogo entre a Europa, o Magrebe e o Médio Oriente, agregando 42 países em redor de um mar que já chegou a ser uno (no tempo do Mare Nostrum dos romanos) mas que olhando para as estatísticas económicas é agora um fosso entre dois mundos.
Tive oportunidade de assistir em Barcelona, sede da UpM, ao VI fórum dos ministros dos Negócios Estrangeiros da organização, cuja co-presidência é partilhada pela União Europeia, na pessoa do espanhol Josep Borrell, e pela Jordânia, através do seu chefe da diplomacia, Ayman Safadi. E esta atual co-presidência dá uma bela pista sobre a extraordinária entidade que é a UpM. Afinal, na UE além de vários países ribeirinhos do Mediterrâneo, estão também outros, como a Alemanha, os bálticos e até os escandinavos, cuja ligação ao "mar entre terras" (o significado do latim mediterraneus) dir-se-á que hoje é sobretudo como turistas, e que no passado chegou a ser de incursões vikings, tal a riqueza das terras do Sul, mas convém não esquecer que a fundação que une as sociedades civis das duas margens leva o nome de Anna Lindh, uma antiga ministra da Suécia.
Diz quem sabe que o maior feito da UpM é existir. Há organizações com mais membros e não só a óbvia ONU. Por exemplo, a Organização da Conferência Islâmica ou a União Africana têm ambas mais de meia centena de membros, mas numa a religião agrega e na outra a unir está a pertença a um continente. Ora, no caso da UpM não só são várias as religiões dos membros, como estes pertencem a três continentes. Ou seja, fazer parte é um ato de vontade, concretizado em 2008 com a fundação, mas nascido em 1995 do diálogo conhecido como Processo de Barcelona.
À frente da UpM está um diplomata de grande prestígio, homem que já foi embaixador do Egito no Reino Unido e em França, e que navega com total à vontade nas três línguas oficiais da organização, o inglês, o francês e o árabe, como pude testemunhar. Habituado a lidar com os poderosos, Nasser Kamel não perdeu a ligação ao mundo e recordo-me de entrevistá-lo em Lisboa, há uns meses, numa esplanada junto ao Museu Nacional de Arte Antiga. Na altura alertou-me que a UpM não lida diretamente com questões políticas como os conflitos entre Estados ou a gestão do processo migratório, mas que ajuda a resolver problemas pondo todos a conversar juntos. Por exemplo, israelitas e palestinianos integram a organização e isso faz com que, além da declaração final do VI Fórum apelar ao diálogo para a paz, haja projetos no campo do desenvolvimento que de uma forma ou outra beneficiem todos.
A integração económica da região é uma prioridade para Nasser Kamel, de modo a atenuar a discrepância demográfica entre as duas margens que explica boa parte do fenómeno migratório, com a Europa a ser vista como um eldorado. Mas acima de tudo nas preocupações parece estar o aquecimento global, especialmente acentuado no Mediterrâneo e que ameaça os 480 milhões de habitantes da região (os países da UpM, no conjunto, contam 820 milhões). Na tal entrevista ao DN, o secretário-geral sublinhava que "o Mediterrâneo aquece 20% mais depressa do que o resto do mundo; numa região muito pobre em água, os recursos hídricos vão diminuir em 25%; a subida do nível do mar - estou a falar do Mediterrâneo, não do Atlântico - está previsto atingir um metro no ano 2100, o que o torna um dos 20 sítios mais atingidos por este fenómeno".
Combater as alterações climáticas passa por um esforço global. Também à escala do Mediterrâneo exige cooperação internacional, como é evidente no que diz respeito a convencer os países do Sul, alguns deles grandes exportadores de combustíveis fósseis, a imaginar um futuro com energia verde, como a solar, para a qual o Norte de África e o Médio Oriente têm condições ótimas.
Convencer neste caso significa fornecer tecnologia, financiar projetos, formar cientistas, garantir mercados. Nessa matéria, a UpM, sigla para a maioria dos portugueses desconhecida, tem um papel-chave, através do diálogo, como dinamizadora da grande tradição do Mediterrâneo, que é a de unir os povos, contrariando a tese da inevitabilidade dos 2,4 milhões de km2 desse mar serem um fosso. Bom trabalho, Nasser Kamel.
Diretor adjunto do Diário de Notícias