Dinheiro, poder e relações humanas. Tudo gira mais ou menos à volta disto em The White Lotus, o novo original da HBO, rodado durante a pandemia no Four Seasons Resort da ilha Maui, no Havai, e nascido de um estímulo criativo que tirou o argumentista Mike White da dormência da quarentena. "Sempre quis fazer uma série sobre um casal em lua de mel. Algo sobre dinheiro, alguém que se casa com um endinheirado e percebe o que pode ter perdido. A troca faustiana que acontece quando se quer um estilo de vida, mas também se quer manter a independência. Só que em vez de me concentrar apenas na lua de mel de um casal, constelei a série com muitas pessoas a debaterem-se com ideias sobre dinheiro. Quem o tem pode realmente criar a dinâmica de um relacionamento, o relacionamento em si, o sentido de identidade. O dinheiro pode perverter as nossas relações mais íntimas, além da relação funcionário-hóspede no hotel", disse o criador de The White Lotus numa entrevista à The New Yorker..Mais conhecido como argumentista e ator de Escola de Rock (2003), de Richard Linklater, Mike White, que já no seu último filme, A Vida de Brad (2017), explorava as questões do status social, com Ben Stiller no papel de um pai cinquentão atormentado por um complexo de inferioridade face aos seus amigos de faculdade bem-sucedidos, volta-se agora para uma atmosfera saturada de ricos, sem ceder à caricatura dos bons e dos vilões: "Quero que as pessoas vejam os ricos e pensem: este, ou esta, podia ser eu.".Com um total de seis episódios, a minissérie começa por apresentar, justamente, o rico mais exasperante da constelação, um homem recém-casado e mal-humorado, de regresso das férias, que no aeroporto observa uma mercadoria com a etiqueta "restos humanos" a ser colocada no avião... White usa o gatilho da morte para instalar a dúvida no espectador - quem morreu? -, e recua então ao início dessas férias para contar a história de uma semana passada num hotel de luxo havaiano..Recebidos pela equipa do resort, com um gerente de fato cor-de-rosa (Murray Bartlett) treinado em sorrisos falsos, os hóspedes VIP revelam-se uma curiosa fauna. Há os tais recém-casados, ela (Alexandra Daddario) uma jornalista freelancer, ele (Jake Lacy) um corretor imobiliário, cuja lua de mel se transforma numa discussão arrastada em torno da riqueza dele e do seu suposto efeito "mágico" na vida laboral dela; para além de uma dor de cabeça com o gerente do hotel por causa de não estarem na suite que tinham pago. Há depois uma família liderada por uma empresária (Connie Britton) feminista e fã de Hillary Clinton, com um marido hipocondríaco e menos bem-sucedido (Steve Zahn), mais os dois filhos: uma jovem estudante universitária sarcástica (Sydney Sweeney, com os sentidos apuradíssimos), que levou consigo para as férias uma amiga (Brittany O"Grady), e o irmão, um adolescente viciado em videojogos (Fred Hechinger). Mas a rainha da miséria espiritual dos "americanos-brancos-endinheirados" é mesmo Jennifer Coolidge - talvez o seu melhor papel de sempre -, uma matrona solitária e psicologicamente despedaçada que carrega as cinzas da mãe na viagem, encontrando o apoio emocional que estava a precisar na massagista negra (Natasha Rothwell) responsável pelo Spa..Com uma coreografia centrada nestas personagens e no espaço do resort, The White Lotus sonda as conversas entre os hóspedes privilegiados, ao mesmo tempo que capta a angústia dos funcionários por trás das máscaras de competência. E entre as duas classes vai crescendo uma bolha de tensão e mal-estar envernizado que, a certa altura, tem de rebentar. Só não se imagina o quanto Mike White será escrupuloso na gestão desse incómodo geral e particular (contemplando pelo caminho as várias expressões de dominação) para depois surpreender com audácia no estouro final... É importante reservar os pormenores da trama..Referenciada no circuito da crítica como uma das séries do ano, The White Lotus afia as facas para trabalhar a sátira social em ponto de tragicomédia desconfortável, com um jogo de oxigénio narrativo a que os tons tribais da banda sonora de Cristobal Tapia de Veer emprestam a justa inquietação. Estamos a falar, basicamente, de seis horas a desfazer a ideia de férias perfeitas numa paisagem digna de postal, mas onde cabe também o sentido de respeito pelo lugar em pano de fundo. "A cultura havaiana é muito específica e há algo muito magnético e bonito nela", sublinhou Mike White na entrevista à The New Yorker, contando que comprou lá uma casa há uns anos: "Esperava ser um Paul Theroux e ter o meu retiro havaiano de escritor ou algo do género. E este é um local paradisíaco e idílico, mas também um microcosmo vivo dos muitos cálculos culturais que estão a acontecer agora. Existem aspetos éticos no simples facto de se passar lá férias, quanto mais comprar uma casa.. À medida que passo tempo lá, vou-me apercebendo de quão complexo é." Com sensibilidade, bom senso, frieza controlada e a dose certa de desvario, White desenhou uma visão infernal das férias no paraíso. Aloha! .dnot@dn.pt