Emigrantes de volta: "Raisparta, não se poderiam ter lembrado disto antes?"

Os saldos de 50% no IRS chegarão, se chegarem, tarde para eles. Histórias de quem foi e voltou
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"Se a ideia do governo é oferecer condições competitivas para as pessoas voltarem, a tarefa é hercúlea. Eu ganhava quase 200 mil euros/ano, antes de impostos."

Miguel, 38 anos, faz parte do grupo de emigrantes referido como "cérebros". Os que "fugiram". Economista, trabalhava numa instituição pública; saiu em janeiro de 2014, quando, estando no radar dos headshunters (à letra: caçadores de cabeças, ou seja, os profissionais que se dedicam a localizar "talento" e a "vendê-lo" a quem o procura), foi convidado para trabalhar para um regulador britânico. Hesitou uns meses mas os cortes salariais, as carreiras congeladas, o facto de ter acabado de comprar uma casa em Lisboa e temer a subida dos juros, mais "a oportunidade extraordinária de ir trabalhar num dos melhores reguladores setoriais do mundo e à frente de um projeto muito interessante", fizeram-no aceitar.

"O salário inicial não era demasiado elevado, era apenas o dobro do que recebia cá. Mas ao fim de dois anos, quando disse que pensava vir-me embora - a minha ideia inicial era ficar só esse tempo -, duplicaram-mo. Fiquei portanto a ganhar o quádruplo. E fizeram-me essa oferta em 24 horas, apesar de ser um organismo público. Algo que em Portugal seria totalmente impossível." E se, claro, Londres é mais cara que Lisboa, e se vivia sozinho num apartamento "novo, com piscina, na zona 2 de Londres" e "não fazia vida regrada", conseguia, garante, poupar por mês o dobro do que, no regresso, veio receber cá.

Voltou em abril, e confessa-se "ainda em lua-de-mel": "Tinha cá uma vida, a minha casa, a minha família, os meus amigos, queria voltar a ela antes que desaparecesse." Não vai ter saudades de Londres? "Prefiro a vida que tenho cá. Tenho saudades de algumas coisas em Londres - tem uma oferta cultural que não tem paralelo, é um melting pot de gente de todo o mundo. Mas também cria algum cansaço - por causa da dimensão da cidade. Não é como cá, que combinas uma coisa com um amigo e estás 15 minutos depois com ele."

O risco da "seleção adversa"

15 minutos se se viver no centro. Miguel, que prefere não ser identificado com o apelido, comprou a sua casa em 2010, na Baixa. Ri. "Quando fiz a festa de inauguração da minha casa uma colega perguntou-me o que é que de errado acontecera na minha vida para ir viver ali." Agora, comenta, não sabe se poderia voltar para Lisboa se não tivesse já uma casa sua. É possível que não encontrasse nada minimamente central abaixo dos 1600 euros que pagava em Londres pelo seu apartamento - sendo que, claro, ganha muito menos cá. "Os custos de habitação aumentaram muitíssimo. Quando estive a estudar em Londres há 10 anos vivi na zona 1, em Victoria, perto de Chelsea, e assisti ao empurrar das pessoas para a periferia, à completa descorrelação entre o preço das casas e os salários médios. Agora o processo chegou a Portugal."

O que não chegou a Portugal, porém, foi a capacidade de procurar e captar talento: a sua reinserção profissional, ao contrário da saída, que sucedeu por convite, ocorreu por resposta a anúncios. Apesar de ser um profissional muitíssimo bem cotado internacionalmente - "Recebo contactos de headhunters de todo o mundo" - em Portugal ninguém se lembrou de o ir buscar. "Temos esta dificuldade do paroquialismo, que é uma espécie de luxo: as empresas prescindem da possibilidade contratar alguém com um bom CV por comparativamente pouco dinheiro, porque as pessoas até querem regressar."

É por esse motivo que crê que medidas "macro" como a que António Costa anunciou para atrair de volta os que como ele emigraram no pico da crise não são muito profícuas. "É aquilo que nós, economistas, consideramos "seleção adversa": porque vais atrair aqueles que terão um menor gap salarial em relação ao que ganharão cá e premiar muitas que, como eu, voltariam de qualquer forma. Atendendo que o desconto de IRS proposto ainda tem uma duração bastante grande [de três a cinco anos, diz-se - o DN tentou obter mais esclarecimentos mas o governo remete para o OE 2019] o que implica um custo considerável, não me parece que se justifique. E, claro, para quem ficou pode ser visto como injustiça."

O bebé que decidiu regresso

Da mesma idade que Miguel, Nuno Valinhas, gestor digital, regressou em junho de 2017, depois de quase cinco anos na mesma cidade. Partiu em março de 2012 com a namorada, Sílvia Neves, agora com 33 anos, como ele licenciada em turismo. Tinham emprego com remuneração acima da média em Portugal mas, explicou Nuno numa entrevista ao DN em 2015 (a propósito do programa que o então governo lançara para atrair de volta os emigrantes - o VEM), "o clima depressivo que se vivia, com a crise, a troika, etc" foi um dos principais motivos da aventura.

Foram para casa de amigos e sem colocação - mas ao fim de pouco tempo estavam os dois com emprego e a viver numa boa casa arrendada, perto de Wimbledon. Na altura em que falaram com o DN tinha-lhes nascido o primeiro filho, Vicente (fez agora quatro anos), e ganhavam cerca de 70% a 75% mais que cá.

A chegada do segundo bebé, a Beatriz, em fevereiro de 2017, foi o fator mais importante na decisão. "O custo de vida em Londres é caro, e com uma criança é duplamente caro. Pagávamos mais de creche que de renda de casa; 1700 euros pela creche e 1500 pela casa. As crianças até aos três anos lá não têm grande apoio do Estado, e chegou a uma altura em que estávamos a trabalhar para pagar as contas, quase que compensaria a Sílvia ficar em casa. De modo que a decisão se precipitou por vir aí mais alguém. Também estava quase na altura de o Vicente ter de ir para a escola, e não queria que o meu filho achasse que a família é uma coisa que está dentro de uma app, que crescesse com essa limitação."

Tomaram a decisão por alturas do Natal de 2016. Sílvia ficou o primeiro ano em casa com os miúdos e ainda não começou à procura de trabalho. Está um pouco menos entusiasmada com o regresso que Nuno. "Ela trabalhava para um grupo que tem os melhores hotéis de Londres, está com dúvidas sobre o que poderá encontrar cá que se assemelhe", explica Nuno, que em Londres trabalhava para os The Leading Hotels of the World e tentou fazê-lo a partir de Portugal, sem sucesso. "Eles não têm cá escritório e pusemos várias hipóteses mas acabou por não dar. Andei à procura de trabalho, a mandar CV e notei uma grande diferença em relação a Londres: há uma enorme falta de respeito, não respondem aos mails, não esclarecem se estão ou não interessados. E agora que já estou a trabalhar, para um amigo, também em hotelaria, noto que o ritmo é mais lento, ainda me estou a adaptar."

Se o custo de vida em geral é mais barato - comida, bebida, transportes (trabalha no Cais do Sodré e da casa onde está, na Póvoa de Santa Iria, apanha comboio até Santa Apolónia e faz o resto de bicicleta, nas bicicletas partilhadas da cidade) -, acha a eletricidade e a gasolina ela por ela ou até mais cara e a internet e telefones decididamente mais dispendiosos. E o preço das casas assusta-o. "Quereremos comprar casa mas não sei onde, com estes valores."

A "ajuda na reinstalação" anunciada por António Costa teria sido, comenta, muito bem-vinda. "Não me importava que nos tivessem pagado as viagens e o transporte das coisas. Tudo junto ficou em 3500/4000 euros. E claro que o desconto no IRS saberia muito bem." Mas quando começou a ler sobre os incentivos parou logo nas datas. "É só para quem voltar em 2019 e 2020. E para ser sincero já há uma medida que incentiva o regresso - o estatuto de residente não habitual, que também tem vantagens para a empresa. Vou tratar disso."

Um homicídio à saída do filme

António estava há seis anos em Luanda, num alto cargo numa instituição financeira (prefere não dizer qual nem qual o seu verdadeiro nome). Emigrou quando o banco em que trabalhava começou a reestruturar. "Estava num cargo de direção médio e com a idade que tinha - a chegar aos 50 - e sendo "caro" achei que iria chegar a minha vez. Recebi um convite de uma consultora que trabalha em Angola e aceitei. Passados uns tempos convidaram-me para um banco muito grande, para dirigir o setor de compliance [aquele que vela pelo cumprimento da lei]."

O salário "indexado a dez mil dólares mensais" era apetecível e foi ficando. Mas a crise chegou a Angola e o que recebia foi encolhendo - "Já não chegava sequer a seis mil dólares, com a desvalorização do kuanza" -, a possibilidade de transferir dinheiro para fora do país foi cada vez mais restringida e chegou-se ao ponto de "não haver notas."

Aos 56 anos, com uma mãe de 87 anos e saúde frágil, um marido em Portugal e um projeto de turismo em desenvolvimento no Alentejo, começou a pensar se não estava na altura de voltar. "A gota de água foi há dois meses. Tinha ido ao cinema com amigos e à saída uma pessoa ao meu lado foi assaltada e morta com um tiro na cabeça. Deu logo a carteira e o telemóvel, não opôs qualquer resistência e o assaltante deu-lhe na mesma um tiro, quando se ia embora. Nunca tinha visto nada assim, fiquei muito transtornado. E percebi que era momento, que o ciclo acabara."

Demitiu-se e partiu. Continuam a querê-lo em Angola mas, garante, "daqui não saio, daqui ninguém me tira. Estou muito entusiasmado com o nosso projeto que é uma coisa muito pensada há muitos anos. Eu e o meu marido sempre viajámos muito e conhecemos muita coisa e sabemos aquilo de que gostamos, e queremos concretizá-lo. Vamo-nos mudar para o Alentejo, onde temos casa, e alugar a nossa de Lisboa." De uma metrópole onde se matam pessoas por nada para a tranquilidade alentejana: "Vamos ter uma vida muito diferente."

Quanto aos incentivos anunciados pelo governo, crê que "nenhum emigrante vai voltar por causa deles. É o chamado 'nice to have', mas não fará a diferença. Não estou abrangido, claro, mas no meu caso dar-me-ia mais jeito uma linha de apoio ao empreendedorismo para quem queira criar o seu próprio emprego."

A filha única globetrotter

Com 32 anos, Maria Pereira já viu mais mundo que a maioria das pessoas irá ver na vida toda. Fez traduções numa empresa em Londres e depois "em Somerset, no meio do campo inglês", deu aulas em Roma e Málaga, trabalhou em navios de recreio americanos nas Caraíbas e, pelo meio, viajou em férias pela Ásia durante seis meses.

A aventura, que de algum modo espelha a disponibilidade e espírito de uma geração para a qual as fronteiras são traços de giz, começou com o último ano de curso, feito em Erasmus, em 2010, em Londres, onde ficou a trabalhar de seguida durante seis meses "para ficar seis meses na Ásia." Regressada a Lisboa, fez tradução a recibos verdes e trabalhou no Zoo como guia durante algum tempo antes de se candidatar ao programa Da Vinci para um estágio profissional no estrangeiro. Conseguiu a bolsa e foi para Londres por quatro meses, para uma empresa de traduções.

"Quando voltei para Portugal foi um período mau, trabalhei numa loja, tinha quatro empregos, e passado um tempo voltei a candidatar-me a outro programa de estágios cá, do governo, em 2013. Fui colocada na Direção-Geral de Educação. Gostei muito mas não era bem pago e sabíamos que não poderíamos ficar, era só um ano. Entretanto ligaram-me da empresa londrina onde tinha estagiado a perguntar se podia voltar. O salário era muito superior - ofereciam 1200 libras líquidas por mês, mais bónus - e nem tinha de traduzir, era gestora de projeto. Pagavam o primeiro mês de alojamento. O único problema é que era no meio do campo, no sul de Inglaterra, em Somerset, a quase quatro horas de comboio de Londres."

Mas decidiu-se e partiu. Arranjou uma casa com uma colega por 500 libras mais despesas, não pagava transportes porque ficava perto do trabalho e poupou muito. "Mas foi o pior ano da minha vida, esse em que estive a trabalhar num escritório no meio do campo inglês. Entrei em janeiro de 2014 e demiti-me em fevereiro de 2015."

Fascinada desde miúda com navios por causa de um tio que trabalhara em cruzeiros, candidatou-se a andar no mar, na área de animação de crianças. Em abril ei-la a bordo dos navios da Royal Caribbean: "O primeiro porto mãe era na Florida e o segundo em Porto Rico. Recebia 2000 dólares por mês e não tinha despesas - vivíamos no barco e davam-nos comida. Poupei 13 mil euros. Mas trabalhava todos os dias sem exceção a não ser que estivesse doente."

Os contratos são no mínimo de cinco meses menos uma semana, e as férias, gozadas no fim, correspondem aos fins de semana trabalhados. Maria fez dois contratos, até maio de 2016, e partiu: "Decidi fazer um curso de 'ensinar inglês como língua estrangeira'. É um mês, intensivo. Fui fazê-lo a Roma, e fiquei um ano a ensinar na mesma escola. Adorei Roma, é espetacular. Fiquei em casa de uma senhora que alugava quartos. Pagava 370 euros, era ótimo o preço e ela era superfixe."

Estava a gozar Roma quando recebeu um telefonema de uma amiga que tinha acabado de chegar a Málaga: "Ela disse "isto é incrível, acabei de chegar, tens de vir para cá, tenho lugar para ti em minha casa." E lá foi. "Andei de CV na mão à procura de trabalho e arranjei em três escolas, todas com contrato. Pagavam segurança social e recebia mais de mil euros por mês, pagando 175 de renda e andando a pé por viver no centro e ser tudo perto." Gostou muito de Málaga mas começava a ser muito tempo fora. "Saí para ser independente dos meus pais mas o objetivo nunca foi construir vida no estrangeiro. Sempre fui muito ligada à minha família e quando estava fora morreu o meu avô e o meu tio... Sou filha única, quero estar mais perto dos meus pais."

Voltou este mês. Ainda só conseguiu trabalho num centro de explicações, com um horário de dez horas. "Ando a entregar currículos, mas nas escolas de línguas ainda não estão a contratar, só começam em setembro." Suspira. "E ter voltado para casa dos meus pais faz-me sentir infantilizada, apesar de eles estarem reformados e passarem parte do tempo numa casa na terrinha. Mas é muito difícil arranjar casa em Lisboa. Tenho uma amiga que está a dividir casa em Moscavide e a pessoa vai sair, estou a pensar ir para lá."

O anúncio da campanha para fazer regressar emigrantes apanhou-a à chegada. "Fiquei um bocado 'olha raisparta, podiam ter-se lembrado disto antes'. Mas aquilo é supervago. É poupar no IRS, mas trabalhando em quê? É que em Espanha eu tinha contratos, aqui só me vão pagar a recibos verdes. E exige, ao que parece, que se tenha feito deduções fiscais antes de 2015. Ainda não é claro o que exigem. Mas se não arranjar mais nada senão estas dez horas, se calhar volto a Málaga. E depois volto e tento beneficiar."

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