Aznavour: O pequeno grande homem

Gravou mais de 1400 canções e escreveu mais de um milhar. Andava pelos palcos há mais de 75 anos e vinha de uma digressão japonesa. Subiu ao palco em mais de 90 países. E ainda foi actor em quase oito dezenas de filmes e séries de TV. Tinha 94 anos, de uma vida cheia e improvável.
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Há menos de dois anos, em Dezembro de 2016, cumpriu a sua última escala profissional em Portugal, desfilando memórias e mostrando as novidades de Encores, o último disco que gravou (2015) e que mostrou mais uma vez que estava atento aos novos valores, uma vez que incluía um dueto com Benjamin Clementine. O amor pelo nosso país terá começado muito antes, com uma "amizade apaixonada" que manteve com Amália. Em 2003, quando editou o álbum Je Voyage, a canção de abertura chamava-se Lisboa, descrita pelo artista como "a sua cidade à beira-mar" e como "a terra dos [seus] amores de juventude imatura". Ia mais longe, com os versos: "Voltarei alguma vez? Quem pode prever?/(...) Cidade dos meus rebuliços, meia-Mãe e meia-amante/Da esperança ao desespero, forjaste os meus dias". Liberdade poética, mais do que retrato fiel e verdadeiro? Sem dúvida. Mas, ao mesmo tempo, uma referência significativa, e não apenas simbólica, numa obra maior e que começou a desenhar-se em 1941, quando se juntou a Pierre Roche para formar o duo Roche et Aznavour. De então para cá, só o silêncio não teve lugar marcado.

Antes desse duo, a história começa com Maurice Chevalier e com uma das suas inconfundíveis interpretações, que levaram o menino, nascido em Paris a 22 de Maio de 1924 e originalmente chamado Shahnourh Varinag Aznavourian, sinal exterior da origem arménia dos pais (um barítono que se dedicou ao negócio da restauração e uma descendente de comerciantes), a querer ser cantor. Gratos a Chevalier, mais devemos ainda a Charles Trenet, que Aznavour tomou como principal modelo por conseguir "ultrapassar a trivialidade e a patetice sem deixar a canção ligeira". Os primeiros anos públicos do artista em formação deixam duas pistas curiosas: primeira, a necessidade de fazer milagres fora de casa, começando por ser reconhecido numa digressão canadiana de ano e meio, de que só regressou por insistência pessoal de Edith Piaf, no seu papel de descobridora de talentos, e mais tarde, em Marrocos e na Argélia, destinos muito mais acolhedores do que o seu país natal; segunda, a guerra que lhe foi movida, durante muito tempo, pela crítica parisiense, especializada ou nem por isso, que rejeitou enquanto foi possível a voz e a figura. Em 1950, quando já iniciara uma parceria auspiciosa com outro dos maiores da chanson, Gilbert Bécaud (1027-2001), compositor de melodias para os textos de Aznavour, o "visado" sentiu mesmo necessidade de vir a terreiro; "Os meus defeitos são a voz, a estatura [1,60 m, para que conste], os meus gestos, a falta de cultura e de instrução, a minha franqueza e a minha falta de personalidade. A minha voz? É impossível de mudar, tal como foi confirmado por vários professores que consultei. Mas, acreditem, continuarei a cantar até rebentar a garganta de uma vez por todas." Abençoada persistência.

Artista do século

Teve todo o tempo do mundo para saborear a desforra, sobretudo quando - outra vez "fora de portas" - o canal televisivo CNN e a revista Time, em ambos os casos norte-americanos, procederam à eleição do artista musical do século XX. Aznavour, que nunca escondeu o seu apreço pelo jazz e gravou várias vezes com músicos de além-Atlântico (por exemplo, o notável Jazznavour, de 1998, em que chamou Dianne Reeves para dois duetos) ganhou, à frente dos nativos Bob Dylan, Frank Sinatra e Elvis Presley. Escreveu canções para meio mundo, multiplicando êxitos em vozes alheias - de Johnny Hallyday a Sylvie Vartan, de Edith Piaf a... Elvis Costello. De acordo com os seus biógrafos, terá gravado mais de 1400 canções e composto e/ou escrito mais de mil. Vendeu mais de 180 milhões de discos pelos quatro cantos do mundo, a que também chegou como actor, estando inclusivamente anunciado mais um filme para este ano (Une Revanche à Prendre, que, neste momento, não se sabe se acabou de rodar), protagonizando um dos célebres filmes de François Truffaut, Disparem sobre o Pianista (1960) e integrando o elenco de O Tambor (1979), de Volker Schlondorff, que venceu o Óscar para Melhor Filme Estrangeiro. No total, entre longas e curtas-metragens, telefilmes e séries de televisão, o currículo regista mais de sete dezenas e meia de trabalhos de representação, percurso iniciado ainda antes das cantigas - em 1938 e em La Guerre des Gosses, numa participação em direito a créditos. Tinha 14 anos.

Casou três vezes, teve seis filhos - foi pai pela primeira vez em 1947 e pela última trinta anos depois. Marcou presença em campanhas eleitorais, apoiando candidatos presidenciais como Valery Giscard d'Estaing, Jacques Chirac (contra Jean-Marie Le Pen, que considerou "abominável") e Nicolas Sarkozy. Mais do que isso, manteve uma intensa participação em actividades humanitárias, ficando na memória o seu incansável empenhamento após um grande terramoto na Arménia dos seus antepassados.

No universo das canções, aquele que lhe vai permitir o acesso à eternidade - tanto quanto ela exista no mundo da música popular -, nunca foi um bem-amado dos analistas, que sempre preferiram, nas fronteiras francófonas, nomes como os de Georges Brassens, Léo Ferré ou Jacques Brel. Mas serão poucos os que desconhecem temas como La Bohème, For Me, For Me, Formidable, La Mamma, Hier Encore ou Emmenez-Moi, entre tantas. Gravou com Sinatra e Plácido Domingo, Edith Piaf e Elton John, Bryan Ferry e Sting, só para citar alguns notáveis. Aqueles que fazem de Notting Hill um filme de culto também devem saber que She, a canção ali levada por Elvis Costello, foi escrita por Aznavour. A quem, por maioria de razão, os desfavores da crítica nunca tiraram o sono. O mesmo sono que o embalou de vez, aos 94 anos, deixando, por razões da maior força, concertos já marcados por cumprir. Não deixará de ser ouvido, com certeza.

João Gobern escreve de acordo com a antiga ortografia

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