Leva Portugal ao topo do mundo mas não abdica de ser cobrador do V. Setúbal
Mário Narciso é selecionador nacional de futebol de praia e já venceu vários títulos internacionais (inclusivamente dois Campeonatos do Mundo), mas concilia o cargo com o de funcionário no emblema sadino.
Mário Narciso é selecionador nacional de futebol de praia. E um treinador de sucesso! Acaba de ser campeão do mundo pela segunda vez, depois de já o ter sido em 2015, no primeiro campeonato do mundo com a chancela da FIFA; foi campeão da Europa (2015), vencedor da Taça da Europa (2016), vencedor do Mundialito (2014), e, também já neste ano, juntou a vitória na Liga Europeia à medalha de ouro nos Jogos Europeus de Baku - foi ainda eleito melhor treinador do mundo em 2015 e 2016. O que pouca gente sabe é que Mário Narciso concilia essa função com a de cobrador das quotas de sócio do Vitória de Setúbal, clube do coração e pelo qual jogou nas décadas de 1970 e 1980.
O homem que tem levado o nome de Portugal ao topo do mundo é o mesmo que anda de porta em porta à beira-Sado nas cobranças das quotas e que trabalha na gestão de sócios do emblema vitoriano, no Estádio do Bonfim. "O meu pai foi cobrador do Vitória durante 50 anos e esteve sempre ligado ao clube. Há cerca de 12 anos, o meu pai ficou doente, mas não pensava que a doença fosse tão grave e, como eu tinha tempo disponível, ele pediu-me para fazer o trabalho por ele até ele ficar bom. Mas o meu pai faleceu. Falei com os diretores do Vitória, mas eles pediram-me para continuar mais um pouco. Hoje em dia quase já faço isto em memória do meu pai", começou por contar ao DN o treinador setubalense, que vai completar 66 anos em dezembro.

Apesar de selecionador do futebol de praia, Narciso continua a trabalhar para o V. Setúbal como cobrador de quotas, algo que, diz, “faz em memória do pai”.
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Para o antigo futebolista e adjunto do conterrâneo Quinito, não é necessária especial humildade para acumular as duas atividades, reiterando o gosto em herdar uma função que era desempenhada pelo pai. "Se for a Setúbal e perguntar pelo Narciso, falam-lhe mais do meu pai do que de mim. Não é por ser meu pai que eu digo isto, mas ele era uma pessoa estimada por toda a gente, toda a gente gostava do Narciso do Vitória. Não há nada que pague eu ter a honra de fazer o que o meu pai fazia. Não sei se sou humilde ou não, sei que gosto de falar com toda a gente e que sou amigo de toda a gente. Morremos todos, vamos todos para o mesmo sítio: o gajo que cobra as quotas, o gajo que é campeão do mundo, o gajo que é o bandido... As pessoas que deixem de querer ser deuses", vincou.
Selecionador de futebol de praia desde 2013, Mário Narciso garante que nunca lhe colocaram objeções sobre o acumular de funções, e diz que não precisa de um grande esforço para conciliar as duas atividades. "Quando fui convidado para selecionador, disse que função estava a desempenhar no Vitória e não houve qualquer objeção. Eu não tenho trabalho todos os dias no Vitória, o trabalho que tenho faço-o todo em dez ou 12 dias durante um mês e só da parte da manhã. Tenho muito tempo livre e quando tenho estágios não posso. Mesmo quando tenho estágios dá para fazer o que tenho a fazer no Vitória e ainda me sobram muitos dias para ir à praia de manhã", desvenda Mário Narciso, que enquanto cobrador confessa que passa mais tempo à conversa com as pessoas do que propriamente a cobrar as mensalidades: "É algo que faço com prazer."
Em Setúbal, diz, são tantos os que o reconhecem como ex-jogador e cobrador como os que o identificam como selecionador de futebol de praia. "As pessoas da minha faixa etária e as mais velhas conhecem o Narciso como jogador e por estar ligado às cobranças. O pessoal mais novo já me vê mais como o selecionador de futebol de praia. Já é 50/50. Uns quando me veem perguntam-me pelo Vitória, outros perguntam quando é que a seleção joga", revela o homem que vai tentar guiar Portugal novamente ao topo do mundo já neste mês, uma vez que o Mundial vai realizar-se entre 21 de novembro e 1 de dezembro em Luque, no Paraguai.
A proximidade da reforma, porém, fá-lo pensar sobre a continuidade no desempenho das funções de cobrador: "Em dezembro faço 66 anos, vou reformar-me e está em estudo deixar essa função, para me dedicar mais à família."
Dos ex-futebolistas às escolinhas
Mário Narciso é uma espécie de patriarca da seleção portuguesa de futebol de praia, que conta com veteranos como Madjer e Belchior mas é maioritariamente composta por jovens. Treinador exigente e interventivo, como foi possível observar no treino (na praia do Ouro, em Sesimbra), está constantemente a dar instruções aos seus jogadores com uma voz marcada pelo típico sotaque xarroco de Setúbal. Mas não deixa de ser um bonacheirão.
É assim o selecionador nacional, que acompanhou a "mudança radical" que o futebol de praia atravessou nas últimas décadas. Como muitos outros, entrou para a modalidade após terminar a carreira de futebolista. Mas teve sucesso como treinador e foi progredindo até levar Portugal a títulos internacionais. "Como treinador do Vitória, entrámos no campeonato nacional e tivemos a felicidade de sermos campeões logo nesse ano e no ano a seguir. Depois o futebol de praia entrou para a Federação e, para se ser selecionador, tem de se ter o quarto nível de treinador (UEFA-Pro), o que não acontecia com o anterior selecionador. Tem corrido bem até agora", garantiu.

Mário Narciso vaia orientar no final deste mês a seleção no Mundial e já prometeu cortar o bigode se for campeão do mundo.
© A-Gosto.com
"Antes o futebol de praia era essencialmente jogado por futebolistas que tinham terminado as suas carreiras. Hoje isso não acontece, há escolinhas para miúdos praticarem a modalidade desde tenra idade. Em termos de campeonatos, continua a ser uma atividade sazonal, porque no inverno não existe campeonato de futebol de praia em Portugal, mas existe noutros países onde há sol e os jogadores que têm mercado podem aproveitar - neste momento, temos cinco jogadores na Turquia. Antes de o futebol de praia estar sob a égide da Federação, havia uma empresa privada que organizava a seleção e o campeonato nacional, mas sem a seriedade que há hoje", comparou o técnico setubalense.
Por as diferenças de antes para agora serem abismais, Mário Narciso nunca pensou levar Portugal à vitória num Campeonato do Mundo sob a égide da FIFA. "Quando fui convidado, sabia que havia hipóteses de obter bons resultados se fizéssemos um trabalho sério, mas não me passava pela cabeça alcançarmos os títulos que temos vindo a alcançar", confessou o selecionador, que garante que o futebol de praia é mais complexo do que se pode imaginar.
Se o final da carreira como treinador ainda não tem fim à vista, mais para breve poderá estar o corte do bigode que já se tornou imagem de marca. O dia 1 de dezembro, data da final do próximo Mundial, poderá marcar a mudança do visual. "No Mundial 2015, os jogadores perguntaram-me se eu era capaz de cortar o bigode se fôssemos campeões do mundo e eu disse que era. Quando ganhámos o campeonato, os jogadores disseram para eu cortar o bigode mas eu disse-lhes que só tinha dito que era capaz de o cortar. Agora disseram para cortar mesmo se ganharmos o Campeonato do Mundo deste ano e aí cortarei com toda a vontade", prometeu, sorridente.
Vendeu o primeiro carro de Bruno Lage
Setubalense de gema, filho de um canteiro e de uma enfermeira, Mário Narciso cresceu no "bairro mais conhecido de Setúbal", o Santos Nicolau, que tem uma vista privilegiada sobre o rio Sado, a península de Troia e a serra da Arrábida. Naturais da mesma cidade são outros treinadores bem-sucedidos no futebol como José Mourinho, Bruno Lage, Hélio Sousa ou Quinito. Haverá alguma explicação para haver tantos treinadores sadinos de sucesso? "Se calhar, é dos ares de Troia ou da [praia da] Figueirinha ou são inspirados no Bocage. É uma coincidência. Conheço todos esses nomes e sou amigo de todos eles", afirma o selecionador nacional de futebol de praia.
"Conheço o Mourinho desde o tempo em que ele tinha 14 anos e ia ver as equipas adversárias para fazer relatórios para o pai, que era meu treinador, o meu querido Mourinho [Félix]", recordou. "Quando deixei de ser adjunto do Quinito, procurava clube para trabalhar e fui convidado pelo antigo presidente do Vitória de Setúbal, Fernando Oliveira, para ser empregado dele e vender automóveis na Renault - nunca tinha vendido nada, nem cascas de alhos - e o primeiro carro que o Bruno Lage teve foi o avô dele que comprou e fui eu que vendi", revelou o selecionador.
[texto publicado originalmente na edição impressa do DN no dia 2 de novembro e atualizado a 1 de dezembro, após a conquista de novo título mundial pela seleção portuguesa de futebol de praia]