Juízes sem base (nem concealer)

Um sindicato de juízes que anuncia querer examinar decisões "para ver se são discriminatórias" mas garante que não vê estereótipos de género no sistema judicial está a brincar connosco ou é simplesmente ignorante?
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Nesta segunda-feira recebi um mail de uma magistrada. Estava, por coincidência, a escrever sobre o mais recente acórdão do justamente famoso juiz Neto de Moura quando o li, ao mail. Era sobre um curso de maquilhagem promovido pela Associação Sindical dos Juízes Portugueses como comemoração do Dia Internacional da Mulher. "Veja lá com o que se ocupam", comentava quem me fazia chegar a informação.

No dia seguinte, peguei no assunto, para tentar perceber quem na associação tinha decidido celebrar assim um dia criado em 1975 pela ONU para homenagear as conquistas feministas e a luta das mulheres pela igualdade. Afinal, trata-se de um sindicato de juízes, não de cabeleireiros, e num momento em que a sociedade portuguesa está chocada com decisões judiciais como as de Neto de Moura e com a ideia de que a violência contra as mulheres é desvalorizada pelo sistema judicial a ponto de as deixar morrer por falta de proteção, surge caricato o nível de inconsciência e ignorância evidenciado em tal escolha.

Tentei falar com o presidente da associação, Manuel Soares. Liguei e, como não atendesse, enviei mensagem. Uma hora depois, recebi uma chamada do assessor de imprensa da ASJP, que, depois de se informar, me confirmou a iniciativa e me comunicou que o limite de inscrições era de 12 pessoas, estando já nove juízas e três juízes inscritos. As minhas perguntas sobre quem tivera tal ideia e porquê ficaram, porém, sem resposta; também não logrei sequer saber quem compõe a direção regional sul da associação - no site da ASJP, a lista que se encontra é de 2015.

Restou, na quarta-feira, ligar para a sede da ASJP, onde uma senhora me disse o nome do secretário-geral - o juiz de primeira instância Domingos Mira - e que era a ele que deveria endereçar as minhas questões, por mail. Assim fiz; a resposta, porém - que sinceramente não esperava, uma vez que não houve sequer nota de receção do mail e desde terça que a direção da ASJP sabia do meu interesse em esclarecer o assunto e não parecia disponível para tal - chegou às dez da manhã de quinta, já após o texto ser publicado. Naturalmente, tinha colocado nele toda a informação que conseguira reunir, incluindo o género dos inscritos na iniciativa e o cartaz da mesma (onde figurava o rosto de três mulheres muito pintadas), que me fora enviado pelo assessor, assim como a existência de outras atividades, em diferentes datas e de variado teor, organizadas pelas direções regionais da ASJP. O que não escrevi foi o que ninguém me disse: que a associação estava a preparar outras iniciativas para o 8 de Março.

Fiquei pois bastante perplexa quando, na tarde de quinta-feira, estando a redigir a notícia sobre as respostas enviadas pela ASJP, reparei que esta, no seu Facebook, me acusava de ter "por qualquer razão entendido ignorar as respostas". Mencionando, como se fosse uma novidade, o facto de haver também juízes inscritos no curso de maquilhagem, concluía: "O artigo do Diário de Notícias, ao considerar implicitamente que o tema interessa apenas às juízas mulheres, por se tratar de maquilhagem, está a reproduzir um estereótipo de género antiquado e desfasado dos valores atuais, que a ASJP não partilha."

Não está apenas em causa na minha perplexidade aquilo que só posso qualificar de má-fé da ASJP ao pretender atacar a minha honra profissional com falsas imputações e processos de intenções. O principal motivo do meu espanto foi perceber que quem escreveu o post, como quem respondeu às perguntas do DN, evidenciou não fazer ideia do que sejam estereótipos de género, tentando, numa manobra bastante infantil, atribuir-me, a mim e a todas as pessoas ouvidas na minha peça jornalística - incluindo duas magistradas - uma visão estereotipada.

Quando não sei nada sobre um assunto e tenho de me pronunciar sobre ele com alguma formalidade tento informar-me para tentar não fazer figura de ursa. Esperaria que o mesmo fizessem os responsáveis de um sindicato de juízes, sobretudo - volto a repetir - quando o país, depois de dez mulheres e uma criança mortas em menos de dois meses em contexto de violência doméstica, e após o desfecho, no início de fevereiro, do processo disciplinar a Neto de Moura, está de olhos postos nos responsáveis judiciais. Aliás, esperaria que o sindicato de juízes não precisasse de tantas mortes e de tanta pressão da opinião pública, e muito menos das minhas perguntas, para refletir.

Mas, claramente, quem dirige a ASJP não está nem aí para admitir que há coisas sobre as quais lhe falta - e, como se tem constatado, a tantos outros juízes - formação básica. Só assim se compreende que quem redigiu as respostas para o DN certifique que a ASJP não considera "que predominem estereótipos de género no sistema judicial" e o seu presidente, na quarta-feira, em artigo de opinião no Público (pelo qual infelizmente só dei no dia seguinte), anuncie que a associação criou dois grupos de trabalho, um interno e outro em parceria, para analisar as decisões judiciais e "testar se há discriminação de género nos tribunais portugueses".

Que julgará Manuel Soares que é a discriminação de género e em que se baseia? Qualquer busca no Google, mesmo preguiçosa, o levaria a concluir que esta se baseia nos estereótipos de género - essa coisa que o seu sindicato já determinou com secura não considerar ter predominância no sistema judicial. O nível de ignorância de tal afirmação - é ponto assente por todos os que se dedicam a estudar a desigualdade de género que tais estereótipos são extremamente difíceis de erradicar e estão presentes em toda a sociedade - só rivaliza com a prepotência irada que indicia. Perdoe-me pois Manuel Soares se as suas certificações de "espírito aberto" e de que "os juízes querem descobrir se há algum problema do seu lado" e que "o que tiver de ser corrigido, corrige-se" me soam a tentativa cosmética. Mas é tarde para cursos de maquilhagem.

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