Guterres conseguiu: os civis estão a ser retirados do "inferno" de Azovstal
Na terça-feira à tarde, dia 26, surgiu a indicação de negociações. Stéphane Dujarric, porta-voz do secretário-geral da ONU, garantia que António Guterres discutiu com Putin "propostas de assistência humanitária e retirada de civis de zonas de conflito, nomeadamente em relação à situação em Mariupol" e que o presidente russo "concordou, em princípio" com o envolvimento da ONU e da Cruz Vermelha. Passo seguinte? "Novas discussões" entre o escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários e o Ministério da Defesa da Rússia.
No dia seguinte, em Kiev, António Guterres insistiu na necessidade de que fossem garantidas as condições para que a ONU, em cooperação com as autoridades russas e ucranianas, pudesse estabelecer um corredor humanitário que não fosse utilizado "por outros atores".
"Imaginem centenas de mulheres e crianças, em corredores escuros, sem acesso a nada e no meio de uma guerra. É prioritário conseguir fazer com que possam sair dessas condições", apelou.
A "logística complexa" necessária para a retirada dos civis, de que falou, na tarde de quarta-feira, deu os primeiros sinais de existir na noite de sábado. As agências oficiais russas de notícias Tass e Ria Novosti indicaram, sem detalhes, que "19 adultos e seis crianças com menos de 14 anos" tinham sido retirados de Azovstal. O vice-comandante do batalhão Azov, Svyatoslav Palamar, numa mensagem vídeo na rede Telegram, confirmava: "Vinte civis, mulheres e crianças [...] foram transferidos para um local acordado e esperamos que sejam retirados para Zaporizhzhia, no território controlado pela Ucrânia".
Na manhã deste domingo, as primeiras informações, quer russas quer ucranianas, de mais evacuações - 46 civis era o número indicado - eram recebidas com cautelas. "Nem a ONU nem a a Cruz Vermelha deram qualquer confirmação", dizia, por exemplo, a BBC.
Horas depois, um assessor do ministro da Defesa ucraniano dizia que "a situação, embora seja um vislumbre de esperança, continua extremamente difícil".
Quase de imediato, o Ministério da Defesa russo garantia que dois grupos, um de 25 e outro de 21 pessoas, tinham deixado prédios residenciais perto de Azovstal e mostrava um vídeo, feito à noite, onde se viam vários autocarros com o símbolo Z, dois jipes da ONU e outro da Cruz Vermelha.
O autarca de Mariupol, entretanto, anunciava que "hoje seria possível retirar civis", mas mais nada acrescentava. Em Zaporizhzhia "tudo estava a postos" nos hospitais, mas o "silêncio oficial", dizia o enviado da BBC, mantinha-se: "ninguém queria quer colocar em risco um corredor humanitário num momento tão crítico".
Pouco depois da hora de almoço começam a chegar fotografias de um fotógrafo da Reuters. Alegadamente são civis retirados de Mariupol e que tinham chegado a Bezimenne, na região de Donetsk. Aparentemente é este o "local acordado" com os russos, antes da transferência para Zaporizhzhia, de que falava, na noite anterior, o vice-comandante do batalhão Azov.
A confirmação oficial chega antes das três da tarde em forma de comunicado: "A Cruz Vermelha confirma que uma operação de retirada segura está em andamento em coordenação com a ONU e as partes em conflito (...) o comboio de transporte de civis começou a 29 de abril, percorreu 230 quilómetros e chegou à fábrica em Mariupol na manhã de sábado". Frase seguinte: "nenhum detalhe pode ser partilhado até que a situação o permita, pois isso pode comprometer seriamente a segurança dos civis".
A ONU, minutos depois, confirmava também "uma operação para retirar civis da cidade portuária de Mariupol". Por esclarecer: apenas os cerca de mil em Azovstal escondidos em abrigos e túneis subterrâneos e os 500 militares feridos ou os 100 mil que ainda estão em Mariupol "sem água, gás e comunicações"? Josep Borrel, alto representante da UE para os Negócios Estrangeiros, tem esta resposta para o que se passa: "A situação é terrível, as evacuações humanitárias são urgentes".
Um repórter da BBC descrevia o que conseguia ver: "rua após rua, prédio após prédio, a maior parte da cidade está em ruínas. Milhares morreram. Corpos continuam nas ruas. Outros foram enterrados em valas comuns". O autarca da cidade desabafa: "O inferno existe e está em Mariupol".
O Instituto de Estudos de Guerra britânico publica, entretanto, uma imagem satélite do complexo industrial de Azovstal. A extensão dos estragos causados pelos ataques aéreos e de artilharia pesada é enorme. As zonas destruídas têm uma cor escura, de metal enferrujado. Ainda há civis entre os escombros que só ontem começaram a ser salvos. "Idosos, mulheres e crianças" que estão a ser retirados com cordas, afirma à Reuters Sviatoslav Palamar, comandante no Batalhão Azov.
Volodymyr Zelensky, presidente ucraniano, escreve, a meio da tarde, no Twitter: "A retirada de civis de Azovstal começou. O primeiro grupo com cerca de 100 pessoas já se dirige para a área controlada. Amanhã [hoje] vamos encontrá-los em Zaporizhzhia (...) A nossa equipa e a da ONU estão a trabalhar na retirada de mais civis da fábrica".
O Ministério da Defesa russo, citado pela Reuters, assegura que os "retirados que queriam ir para regiões controladas pela Ucrânia foram entregues a representantes da ONU e da Cruz vermelha".
O cessar-fogo local negociado pela ONU, em coordenação com a Cruz Vermelha, que está a permitir a retirada dos civis é para Marcelo Rebelo de Sousa o sinal de que Guterres "atuou com prudência, com bom senso e no exercício daquilo que é o poder do secretário-geral das Nações Unidos", tendo esperado pelo momento em que podia ter sucesso para avançar.
"Na medida em que a primeira prioridade, que era humanitária e era Mariupol, tenha sucesso definitivo, e esperamos que sim, quer dizer que aquilo em que ele arriscou terá tido sucesso total, espero que seja o caso", sublinhou o Presidente da República.
A Rússia, que já dá a cidade como "libertada", começou a enviar tropas de Mariupol para a região de Donbass, no Leste, de acordo com as informações veiculadas pelo Estado-Maior da Ucrânia confirmadas também pelo Pentágono.
Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Representantes norte-americana, garantiu ontem que Washington irá apoiar a Ucrânia "até obter a vitória".
Questionada pelos jornalistas, após o encontro com Zelensky em Kiev, sobre o perigo de o apoio dos Estados Unidos poder levar a "algo pior", Pelosi colocou a resposta como sendo pessoal: "Deixem-me falar por mim mesma. Não se deixe intimidar por valentões. Se o estiverem a ameaçar, não pode recuar. Estamos lá para lutar e não se pode ceder a um rufia".
No encontro que serviu para tratar de questões "de segurança, assistência humanitária, assistência económica e finalmente da reconstrução, assim que se obtenha a vitória" estiveram presentes, do lado norte-americano, Gregory Meeks, que preside ao Comité dos Negócios Estrangeiros da Câmara dos Representantes, Adam Schiff, que preside ao Comité dos Serviços Secretos da Câmara, Jim McGovern, que preside ao Comité do Regimento da Câmara, entre outros responsáveis.
"A nossa delegação viajou até Kiev para enviar uma mensagem inequívoca e retumbante a todo o mundo: a América está firmemente com a Ucrânia", afirmou Nancy Pelosi.
A líder da Câmara dos Representantes norte-americana recordou que o presidente Joe Biden pediu ao Congresso que enviasse para Kiev um pacote de ajuda humanitária e militar de 31,2 mil milhões de euros.
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