Ética: temos o direito de escolher os filhos que queremos?
A poucos dias de fazer 71 anos, a 16 de julho, a geneticista e bióloga molecular, Mayana Zatz, vai estar em Portugal para apresentar o seu livro, genÉtica. Aquele que quis escrever para explicar ao cidadão comum, aos leigos, como é o dia a dia num laboratório de genética: o que se descobre, os dilemas qu existem, as questões éticas que surgem, etc. Há três anos decidiu fazê-lo contando histórias. "Só assim chegamos às pessoas, se fosse de uma forma abstrata ninguém o ia ler", diz-nos ao telefone desde a sua casa em São Paulo, poucas horas antes de embarcar para Lisboa. As pessoas têm de saber que quem investiga também tem dilemas. É preciso colocar as pessoas a pensar se querem ou não "criar" os seus filhos. Qual o poder que a genética tem e como deve ser usado. No Brasil, o livro foi lançado há algum tempo e tem tido tal sucesso que "há escolas que o adotaram para explicar todas estas questões aos jovens", conta. Vamos ver agora em Portugal.
Diz que a ciência avançou depressa de mais. Porquê?
Muitas vezes a tecnologia vai à frente dos dilemas éticos: Há resultados a que chegamos e que do ponto de vista ético não sabemos interpretar ou que ainda nãos e quer dar para as pessoas. Vou dar um exemplo: quando se nasce já é possível saber se temos mutações que vão determinar doenças degenerativas e que nos vão aparecer aos 40, 50 ou 60 anos, mas ainda não há tratamento para estas doenças. Então, eu pergunto: Qual é a vantagem de se saber? Do ponto de vista técnico podemos saber, mas são informações que funcionam como se tivéssemos uma bomba dentro de nós e que pode explodir a qualquer momento. E nestes casos a ciência ainda não pode fazer nada.
É isso que a genética é hoje, uma bomba do ponto de vista ético?
Essa é uma das coisas, mas há outra que nos preocupa muito e que é a confidencialidade dos dados. Por exemplo, podemos estudar o nosso ADN e ficar a saber que temos risco aumentado para algumas doenças, aquelas que chamamos de "alto custo". As empresas que fazem seguros de saúde teriam muito interesse em saber disto, já que essas doenças poderiam mudar a sua cobertura de plano de saúde. Mas eu defendo que esta informação tem de ser privada. É uma coisa de cada um, e se não queremos que seja divulgada não pode ser. É a tua privacidade genómica.
Mas hoje com os bancos de dados de ADN isso está garantido?
Com os bancos de dados já se percebeu que a privacidade e a confidencialidade de dados não é uma coisa que esteja garantida a 100%. Isso viu-se agora com o escândalo que envolveu a empresa Cambrigde Analitics. Este caso mostra que hoje podemos enviar a saliva para uma destas empresas que fazem testes genéticos a uma porção de doenças, que dizem que toda a informação é confidencial, mas, na verdade, não temos certeza absoluta.
Então, o património genético tem uma propriedade, pertence ao próprio.
Sim, claro. E daí o direito à confidencialidade. Só divulga quem quiser. O teste pode dizer a uma pessoa que ela tem risco aumentado de ter diabetes, Alzheimer ou qualquer outra doença, mas isso é uma propriedade dessa pessoa, que só divulga se quiser.
Não é uma coisa que a comunidade cientifica, médicos ou familiares possam usar
Claro. Tivemos aqui uma mãe com um filho com uma distrofia de Duchenne - a doença é muito grave e só afeta o sexo masculino - que estudámos. A doença pode ser herdada ou gerada por uma mutação nova. Se for uma mutação nova, não há risco de repetição, mas se for herdada há riscos para a própria mãe, outros filhos e outros membros da família. Numa situação destas, o que é que o cientista pode fazer? Quando se descobriu que era herdado dissemos à mãe para avisar as familiares que tinham risco aumentado de ter filhos com este problema e que se quisessem podiam vir ao laboratório ser testadas. Elas vieram e foram todas testadas, e desta forma informal funcionou muito bem. Mas houve uma vez uma mãe de um menino que também tinha uma distrofia herdada e a quem dissemos que ela tinha uma irmã e primas que corriam risco de ter filhos com a mesma doença. Ela respondeu que falava com a irmã, mas não com as primas. "Detesto elas", disse-nos. O que é os técnicos puderam fazer aqui? Nada. A pessoa tem o direito à confidencialidade da informação.
Quando as pessoas se sujeitam à genética ou a testes genéticos também correm riscos?
Sim, mas há todo o lado positivo. Se eu sei que tenho um risco aumentado de hipertensão, vou cuidar de mim, vou ter uma alimentação saudável, não vou ter sobrepeso, não vou comer muito sal, etc. O lado negativo é quando se descobre que há o risco de mutação para doenças que hoje ainda não são tratáveis. Aí, fica-se a saber os riscos que corremos e que nada podemos fazer. Há um exemplo que dou sempre: testes genéticos para saber se há risco de doença de Alzheimer. Eu não quero saber se tenho risco aumentado para esta doença, porque hoje não há tratamento. Se souber que tenho esse risco aumentado e me começar a esquecer de alguma coisa vou pensar que se calhar a doença começou. Isto pode desencadear e acelerar um processo que não tem benefício nenhum.
Fala da doença de Alzheimer mas quando a questão se coloca em relação a doenças oncológicas para as quais já há tratamentos, acha que não é também necessário as pessoas pensarem bem se devem ou não fazer os testes genéticos?
Acho que para o cancro, se ainda por cima se trata de tipos que são tratáveis, vale a pena. Há uns anos foi conhecido o caso da atriz Angelina Jolie, que fez um teste genético para risco de cancro mamário. Mas ela tinha uma história familiar, tinha alto risco de ter uma forma hereditária de cancro. Neste caso, foi bom ela ter feito o teste e de tomar as atitudes que tomou. Preveniu o cancro. Neste sentido, saber de antemão foi uma coisa positiva, mas é importante que as pessoas saibam que 90% dos casos de cancro da mama não são hereditários. Todas as mulheres têm um risco de contrair cancro da mama, mas só deve ser testada quem tem uma história familiar. Se, por exemplo, uma pessoa vai é testada para esses genes hereditários e sabe que, afinal, não corre risco de ter este tipo de cancro, fica descansada. Mas continua a correr o risco de ter cancro da mama, porque este risco é muito elevado para qualquer mulher. Por isso é preciso ter cuidado com as empresas que fazem estes testes genéticos e que tornam a genética uma fonte de negócio e de renda.
É preciso acautelar a massificação dos testes genéticos?
Sim. Há cada vez mais empresas que oferecem testes genéticos. Recentemente li um artigo que indica que mais de 12 milhões de pessoas no mundo fizeram testes genéticos, só no ano passado foram sete milhões.
A genética está a tornar-se um comércio?
É verdade. É preciso ter muito cuidado com o que significa um teste positivo e um teste negativo e o que pode ser feito perante uma situação destas. Se nada pode ser feito desaconselho o teste genético.
Isso quer dizer que pode haver ou que já está a haver uma instrumentalização da genética que pode colocar as investigações e o conhecimento em risco?
Claro. Você pode colocar uma investigação em risco ao divulgar resultados errados ou sobre os quais ainda se tem pouco conhecimento, e isso pode alterar muito a vida de uma pessoa. Tenho exemplo recente. Não sei se as pessoas sabem, mas na ponta dos cromossomas temos umas estruturas a que chamamos de telômeros, que protegem essas mesmas pontas cada vez que a célula se divide. À medida que a pessoa vai envelhecendo, o tamanho dos telómeros vai diminuindo. Se compararmos o telômero de um bebé com o telômero de uma pessoa de mais idade, os telômeros destas pessoas são mais pequenos. Houve uma empresa que estava a oferecer um teste genético aos telômero e a partir daí dizer às pessoas quanto tempo vão viver. Houve um homem de 40 anos que enviou o seu ADN para uma destas empresas e os resultados revelaram que tinha o telômero de uma pessoa de 80 anos. O que é que ele fez? Vendeu a casa, saiu do emprego e disse que ia aproveitar os poucos anos que lhe restavam. Este dado ainda ninguém pode afirmar com certezas. Não temos ainda o conhecimento suficiente para poder dizer através do tamanho dos telômeros quantos anos se vai viver. É importante alertar as pessoas para isto.
Mas para onde nos leva o futuro da genética?
O futuro é muito promissor. A evolução na área farmacogenómica e na medicina de precisão vão revolucionar a era farmacêutica. Por exemplo, quando uma pessoa toma hoje um remédio que nunca tomou não se sabe se vai ser bom, inócuo ou tóxico, mas hoje já sabemos que isso depende da genética de cada um. Ou seja, a resposta aos medicamentos depende dos nossos genes, a velocidade do metabolismo depende dos nossos genes, se for uma pessoa que metaboliza rapidamente então precisa de uma dose maior porque a vai eliminar muito rápido. Se for ao contrário, se a pessoa for de metabolizar de forma lenta, precisa de uma dose menor porque vai acumular a substância que se pode tornar tóxica. Agora, como vai ser no futuro? No futuro, os médicos quando passarem um remédio vão ter de dizer aos doentes que têm de fazer um teste genético, se já não tiver sido feito, para lhe dizer qual o remédio ideal para si e a dose.
É para aí que a investigação tem caminhado, para tratamentos personalizados
Sim, já vai nesse sentido. Por exemplo, a minha equipa está a fazer um estudo funcional e uma vez que se identifica uma mutação - e a partir do sangue de uma pessoa já se consegue fazer qualquer tipo de tecido no laboratório, pois tempos o paciente no tubo de ensaio - podemos testar diferentes estratégicas para a corrigir, usar diferentes drogas para ver se conseguimos reverter aquele quadro nas células. E isso vai acelerar muito o tratamento de doenças genéticas. Aliás, hoje já temos tecnologia que nos vai permitir mudar os genes e as mutações. Isso vai trazer um avanço muito grande à ciência.
A era revolucionária de que fala é a da genética a comandar a vida?
Mais ao menos. Não podemos esquecer o ambiente, que continua a ter um papel muito importante. A genética não é determinística. A genética interage com o ambiente. Temos poucos genes que não dependem do ambiente. O grupo sanguíneo não depende do ambiente, teremos grupo O, A ou B independentemente de local onde moramos, mas a grande maioria das nossas características dependem do ambiente
A genética é o novo poder da humanidade?
Os avanços tecnológicos permitem-nos fazer coisas hoje que não imaginávamos há 30 ou 40 anos que poderíamos vir a fazer. Portanto, o futuro vai trazer-nos grandes revoluções, sobretudo na área que chamamos de sobrevida. Toda a gente quer viver muito e bem e a genética é, sem duvida, a ciência que pode fazer isso. É a ciência deste século
E vai poder aumentar os anos de vida?
Sim, claro. Atualmente, a minha equipa está a desenvolver um estudo a que chamei 80 Mais. Estamos a estudar ADN de pessoas que se mantém saudáveis depois dos 80 anos e os seus neurónios em laboratório. Queremos entender o que faz uma pessoa manter-se saudável depois dos 80 ou dos 100 anos. No momento em que conseguirmos identificar qual é o gene que produz determinada substância ou proteína, vamos poder ajudar todas as pessoas a viver mais e a viver bem. Não é uma coisa simples, mas a genética vai por aí
Isso dá-nos alguma esperança, que embora não sendo eternos, vamos poder viver ainda mais e com mais qualidade?
Sim, claro. Há cientistas que já dizem que o ser humano um dia poderá viver até aos mil anos, acho um pouco exagerado, mas dos 150 anos não estamos muito longe.
E isso será para quando?
Os bebés que estão a nascer agora já têm uma expectativa de vida para mais de 100 anos. A partir daqui surgem os 105, 110 e os 150 anos. Estamos a estudar uma senhora que tem 103 anos, saudável, que está ótima de cabeça e a quem tive de dizer: "D. Eugénia preciso descobrir o seu gene protetor". E ela respondeu:"Quando você descobrir diga-me, eu quero participar dos lucros". Por aqui, vê como ela está ótima.
Quer dizer que quem tiver filhos agora pode ter a esperança de que eles poderão viver até aos 150 anos à custa da genética...
À custa do conhecimento na genética e do que formos conseguindo saber o que no ambiente pode favorecer a genética.
É o passo seguinte?
Já sabemos um pouco, sabemos por exemplo o que é ter uma vida saudável, mas pode ser que se descubram outras coisas
E o que é ter uma vida saudável?
É mantermo-nos ativos, fazermos exercício físico todos os dias, o que é essencial para manter tanto o corpo como a capacidade cognitiva ativos, ter uma alimentação equilibrada e sem modismos. Não sei o que se passa em Portugal, mas no Brasil há agora uma moda de que ninguém pode comer glúten. Não é assim. Uma dieta equilibrada e não ter peso em excesso é o que se pode fazer de saudável pelo organismo.
No livro que vem apresentar fala nos testes pré-natais e do seu impacto. Quando há pais que decidem fazer um teste genético têm de saber que correm riscos. Há segredos que a genética revela que eles se calhar não gostariam de saber
Só se deve colocar a questão do diagnóstico pré-natal quando há uma doença grave na família, não faz sentido fazer-se diagnóstico pré-natal em outras situações. Por exemplo, quando há pessoas que por motivos religiosos são contra a interrupção da gravidez temos de colocar a questão se vale a pena fazerem um teste pré-natal, mesmo nos casos em que há doenças familiares. Se faz o teste e fica a saber que há o risco de ter a doença e não faz nada para o evitar, vale a pena fazer o teste?
Quer dizer que não se pode usar sempre a genética, mesmo quando está ao nosso dispor...
Também há o outro lado. Há muitas mulheres que vieram ter connosco porque têm alto risco de desenvolver uma doença genética e que engravidaram sem querer. Antes de saberem os resultados dizem que não vão correr riscos e que querem interromper a gravidez, mas depois os resultados do teste pré-natal revelam que o feto não tem a mutação para essa doença. Assim, estamos a salvar vidas, mais do que a provocar interrupções...
Quando há um relatório complicado é preciso saber dar essa formação às pessoas...
Os técnicos têm de estar preparados para dar essa informação. Aqui no Brasil esse treino é dado. Não é fácil para as pessoas lidarem com a informação que recebem.
As pessoas confundem o que é genético com o que é hereditário?
Confundem. Quando dizemos às pessoa que o filho tem uma doença genética elas respondem logo que não há casos na família. Mas a genética é tudo o que afeta o nosso material, património genético, que pode ser herdado ou não. Então, há que explicar às pessoas que aquela doença é genética e que pode ter ou não risco de repetição. O processo de aconselhamento genético é um processo em que temos de informar as pessoas da melhor maneira possível sobre: o que é a doença, o que pode ser feito em relação a ela, se existe risco de repetição, como se pode prevenir, quais são as técnicas a usar, etc. Outra coisa que é muito importante explicar, é que apesar de usarmos a expressão aconselhamento genético, ou cientista não aconselha, informa. As decisões são sempre das pessoas. No nosso laboratório temos um serviço com psicanalistas que ajudam famílias de pacientes com doenças neurodegenerativas e que precisam de acompanhamento psicanalítico. Isso é muito importante para essas pessoas lidarem com a informação que recebem.
Hoje em dia já a possibilidade de se escolher o sexo dos filhos e de como os queremos. Se isto for colocado ao dispor de todos, a sociedade não corre um risco muito elevado?
Defendo que a genética não deveria ser usada para a determinação de sexo dos filhos. Nos EUA é proibido, no Brasil sei que há pessoas que o fazem, apesar de a lei não permitir. Mas já se fizeram investigações muito interessantes em Inglaterra e na Alemanha que nos mostram que se tal pudesse acontecer não haveria grandes distorções. Por exemplo, estes estudos consistiram em fazer questionários a casais destes países que estavam em idade de ter filhos a perguntar: se pudessem escolher o sexo do filho o que preferiam? Um grupo disse preferir menino, outro menina e um outro disse que tanto fazia. Quando começaram a trabalhar os dados do questionário o resultado foi meio a meio no sentido de que sim escolhiam ou de que não. Ou seja, nestes se tal se pudesse fazer não haveria distorções como as que temos visto na Índia ou na China. A questão não é a de poder escolher a cor do cabelo ou a dos olhos. A questão que é se nós podemos fazer os filhos de acordo com a nossa vontade? Você faz uma mutação para ter um filho desportista e depois ele quer é ser músico. A questão é: qual é a expectativa que os pais podem ter em relação a essas crianças?
A genética também não pode ser usada desta maneira?
Não. Discuto muito isso. Não podemos fazer os filhos de acordo com a nossa vontade, de acordo com as nossas expectativas. Os filhos são seres independentes de nós.
Defende também a existência de bancos públicos de sangue e a sua confidencialidade?
Defendo. Houve uma moda aqui no Brasil em que os pais guardavam o sangue do cordão umbilical em bancos privados por que havia a garantia de que, se no futuro a criança viesse a ter um cancro ou leucemia, ele teria o seu sangue guardado. Mas sou totalmente contra isto porque se uma criança tiver uma leucemia já se sabe que não se deve usar o sangue do próprio cordão por ele incluir já essa predisposição. Se o sangue do cordão for guardado em bancos públicos, como o que existe na Europa, o Eurocord, onde há uma grande quantidade de amostras e no caso de haver alguém com uma doença hematológica há uma chance grande de encontrar um dador compatível. Nos bancos privados, o material é só para essa pessoa. Mas para aumentar a capacidade dos bancos públicos é preciso haver investimento dos governos na saúde. No Brasil temos muito pouco, infelizmente.
No livro também fala dos bebés salvadores. Têm os pais o direito de conceber uma vida para salvar outra?
Nos casos em que os pais fizeram isso muitos, se não quase todos, disseram que em vez de perder um filho ganharam dois. O primeiro caso que aconteceu nos EUA. Os pais tinham uma menina de quatro anos que precisava de um transplante e os médicos diziam que não sabiam se era ético ou não. Acabaram por avançar e a menina salvou-se. As pessoas têm filhos por tantos motivos, por causa de heranças, para salvar um casamento, então o que há de errado querer ter um filho para salvar outro filho? Um dia perguntaram-me como é que eu me sentiria se soubesse que fui concebida para salvar um irmão? Respondi: "Não sei o que as outras pessoas pensam, mas eu acharia super bom." O mundo está cheio de gente que nasce, vive e morre sem fazer nada de útil. Pelo menos, eu saberia que tinha feito uma coisa importante...salvei uma vida.