Casal Ventoso. Eles ainda amam o bairro que Lisboa apagou do mapa
Esta série de três reportagens publicada em fevereiro de 2019, para assinalar os 20 anos sobre a requalificação do bairro Casal Ventoso, em Lisboa, foi esta quinta-feira (10 de dezembro) galardoada com o 1.º prémio da Imprensa Escrita no Prémio de Jornalismo Direitos Humanos & Integração, uma iniciativa conjunta da Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros (SGPCM) e da Comissão Nacional da UNESCO (CNU), que visa reconhecer o trabalho desenvolvido por profissionais da comunicação social nacional em prol dos direitos humanos e das liberdades fundamentais.
Capítulo 1 de 3. Passaram 20 anos desde que os moradores do Casal Ventoso foram realojados. Para eles, no entanto, o luto continua por fazer. (texto publicado originariamente a 2 de fevereiro de 2019)
Estamos na Quinta do Cabrinha, paralela à Avenida de Ceuta, em Alcântara.
Altos edifícios de sete andares de cor desbotada ― num outro tempo pintados de vivos tons de rosa, amarelo e azul, e agora cobertos de desenhos e impropérios - tapam o céu.
Agarrada ao braço de um vizinho ou às suas muletas, Maria dos Anjos, 94 anos, percorre o bairro - um percurso sobre manchas de vinho, beatas e pastilhas elásticas cravadas no solo.
Sobre ela, vários braços pousados nos varandins das casas, erguidos sobre um pátio principal, onde no verão as mulheres lavam os seus tapetes e passadeiras, partilhando mangueiras que vão de uma ponta à outra do bairro.
Parece uma "ilha" plantada dentro de Lisboa.
Foi pensada como o recomeço que todos esperavam: o mesmo Casal Ventoso, num embrulho melhor. Mas rapidamente a esperança deu lugar a um luto por fazer. Os antigos vizinhos viram-se longe pela primeira vez. Às suas portas, pode já não se falar em droga como antigamente, mas Maria não gosta de aqui morar. Não é só pela degradação dos lotes habitacionais, é principalmente por ter sido obrigada a abandonar o bairro que a viu nascer.
Maria dos Anjos vai atravessando a vizinhança nova e cruza-se com Luana, 11 anos, sua vizinha. Para ela, só o nome do antigo bairro não é estranho. Já ouviu os pais e avós a pronunciá-lo à mesa, em sua casa: "Casal Ventoso".
"Conte-me como foi", pede à mais velha.
Maria dos Anjos responde, sem tocar em datas. A memória não é cronológica e nela não cabem números. Mas aconteceu em 1999.
Nesse ano, o "hipermercado da droga" tornar-se-ia ruínas. E embora nem todos os residentes vivessem da droga, todos pagaram o prejuízo. Adivinharam que este dia chegaria, embora não desta forma. Os planos de despejo eram uma discussão antiga.
Maria diz que ela mesma é a memória humana mais antiga do seu bairro. Mas Luana nasceria e cresceria já num outro, renovado, habitado por viúvos do antigo. No Cabrinha, a vida é como um rio que corre ao contrário, da foz para a nascente.
Foi durante o primeiro mandato de Jorge Sampaio à frente da Câmara Municipal de Lisboa (1989-93) que se decidiu o destino do bairro. A obra de demolição custou 100 milhões de euros e realojou um milhar de pessoas em três novos conjuntos habitacionais: Quinta do Cabrinha, Quinta do Loureiro e Ceuta Sul.
Os realojamentos começaram em 1999 e seguiriam até 2002. Eram, para todos os efeitos, urgentes.
Em meados da década de 1990, a autarquia tinha criado um Gabinete de Reconversão do Casal Ventoso que traçara um cenário negro. Havia 500 toxicodependentes a viver permanentemente em barracas e cinco mil outros que aqui acorriam para comprar produto.
Uns para cima, outros para baixo.
"Junto ao Centro Social era a baixa de Lisboa em hora de ponta", conta Ivone, 82, antiga residente no casal. "Até iam aos encontrões uns aos outros".
De resto, 40% das casas não tinham água canalizada e 27% não possuíam esgotos. Um décimo não tinha eletricidade, quase metade não dispunha de lugar para tomar banho ou cozinha. O Casal Ventoso era um hipermercado de droga e era um perigo para a saúde pública.
Em 1998, um ano antes do início do realojamento, imagens captadas e transmitidas na televisão pública nacional davam voz e rosto à angústia de muitos moradores do Casal Ventoso. Os noticiários enchiam-se das suas histórias, as dos que choravam a possibilidade de terem de sair do bairro.
Alguns garantiam até: "jamais abandonarei a minha casa".
Mas o inevitável acabaria mesmo por acontecer. "Quinta do Cabrinha já está habitada!", fazia manchete na primeira edição impressa do ano de 1999 do boletim da Junta de Freguesia, Notícias Alcântara.
Este bairro receberia a primeira fase de realojamento, com moradores do Casal Ventoso de baixo.
Albergou 248 famílias, num bairro modernizado, com estabelecimentos comerciais (um cabeleireiro e uma mercearia) no rés-do-chão, estruturas de apoio social, sedes de clubes, uma esquadra policial, um centro de convívio para jovens, um parque polidesportivo, uma delegação da Junta de Freguesia e o espaço físico do Projeto Alkantara, a iniciativa social de integração dos novos habitantes.
Ivone e José - "o casal maravilha", como dizem ter sido conhecidos -, de 82 e 86 anos, seriam os primeiros inquilinos a receber a chave. Naquele dia, 11 de janeiro de 1999, recordam-se, estavam rodeados de câmaras de filmar. As estações de televisão acompanhavam o momento em que o casal via, pela primeira vez, a sua nova casa, naquele 3.º andar plantado na Avenida de Ceuta.
Numa gaveta da sua sala, o casal guardou registos fotográficos daquele tempo.
José tem de tudo: boletins municipais que participam o início do Cabrinha, uma fotografia de corpo inteiro do exterior da sua casa no velho bairro, outras tantas do seu casamento com Ivone, dos tempos como jogador de futebol agarrado a taças e até as cartas que escreveu para a sua amada quando deixou o bairro pelos anos de tropa. Ivone enverga uma expressão triste sempre que olha estas fotografias.
Ali está tudo o que não volta.
"Pensei que isto fosse outra coisa". Ela suspira.
"Na altura, tudo eram rosas. Ninguém vinha desabafar 'que chatice, estar agora a mudar de casa'. Vieram ver o seu espaço, tiveram a oportunidade de explicar por que é que precisavam de uma ou duas assoalhadas ou de fazer o desdobramento para os filhos, que estavam a crescer e a casar", começa por explicar Filipe Santos, presidente do Projeto Alkantara.
"Era uma maravilha, porque se estava a entrar num mundo novo. Depois, começou a notar-se um processo de luto que não estava feito. Porque ao contrário do que aconteceu na aldeia da Luz (Alentejo), que teve uma equipa multidisciplinar que estava a acompanhar e que tornou possível criar uma aldeia igual, mas fora da zona que ficou inundada, estes tiveram um espaço completamente novo".
Anos depois do Cabrinha, o Loureiro enchia também os vários lotes e andares com os seus 395 novos moradores.
Nasceu do outro lado da avenida e já com morada numa freguesia diferente, Santo Condestável. Foi o segundo bairro a ser construído para efeitos de realojamento, uns metros abaixo de onde estava edificado o Casal Ventoso.
Aqui, há menos ruído nos pequenos pátios. O burburinho dos moradores ouve-se dentro dos vários cafés, abrigados em diferentes esquinas dos lotes habitacionais, onde se joga às cartas e se refresca o corpo com uma cerveja ou se esquenta os lábios numa chávena de café.
Mas não foi só o Cabrinha, não foi só o Loureiro. O bairro Ceuta Sul nasceria no início do milénio para dar um teto a quem ficou com a casa danificada pelo deslizamento de terras, provocado pela destruição das casas do Casal Ventoso. Abrigou 205 pessoas na freguesia da Estrela.
António Santos, 53 anos, foi um destes infortunados. O filho de Ivone e José mudar-se-ia para a Meia-Laranja, umas ruas acima, quando se casou, mas foi no Casal Ventoso que nasceu.
Compara a situação de realojamento a um "processo de Troika" e reconhece que a maioria dos moradores não está feliz com o destino que lhes calhou - mesmo que muitas famílias tenham ganhado uma simples casa de banho e condições que jamais imaginariam ter na vida, com a mudança. A verdade é que também houve quem tivesse de começar a pagar renda, quando o teto que tinham construído no morro era ilegal e gratuito.
Os laços de família, típicos de quem mora num bairro fechado, desvaneceram-se com o realojamento. Antes, todos se conheciam de nome, de família e história. É essa a herança do bairro que ruiu. Se ainda preservam os laços, ao Casal o devem.
Tabacarias, peixarias, talhos, entre outros. Quase nada vingou no Cabrinha desde o seu início. No rés-do-chão, veem-se portas de ninguém, com letreiros rasgados e desbotados, com janelas sujas de pó. Mas Dionísio Martins fugiu à regra.
Num dos lotes do Cabrinha, também no rés-do-chão, abriu portas a uma homenagem à falecida princesa britânica. No Lady Di vende-se quase tudo: leite, pão, água, biscoitos, cervejas, iogurtes. Nasceu quando o Cabrinha se tornou lugar e, mesmo que o seu dono não tenha nunca vivido no Casal Ventoso, é um enclave de memórias do bairro que já não existe.
"Esta senhora adora os pastéis de feijão", diz Dionísio, que conhece quase de cor as preferências dos seus clientes. O dono da mercearia abre o sorriso para a moradora de muletas e cabelos brancos que passa por si.
Entretanto, volta à cena Maria, a nonagenária. Vai parando para cumprimentá-los a todos e se a memória lhes assalta a conversa, esta prolonga-se.
Chega a tempo da sua aula de tai-chi. Duas vezes por semana, junta-se a tantas outras mulheres idosas para exercitar o corpo no qual o tempo deixou marcas. Com dificuldade, mas sem desistir, levanta os braços, as pernas, repete tudo umas quantas vezes e sorri.
É o Projeto Alkantara quem promove estas atividades. A manutenção dos três bairros nos quais foram realojados os moradores ficou a cargo da Gebalis, enquanto o apoio à população ficou sob responsabilidade desta iniciativa. Concorreram a fundos europeus para poder ajudar os que transitaram de um lado para o outro a ter vidas mais ativas e a permitir que os jovens teriam sucesso escolar.
"Há uns anos, entramos num programa de plantação de árvores no Casal Ventoso. Levamos os moradores até lá com os seus netos", para que pudessem partilhar com os mais novos da família a memória que já não existe fisicamente, explica Filipe Santos, presidente.
No lugar do antigo Casal, há apenas terra e árvores despidas. Sobrou uma rua, conhecida por todos como a Costa Pimenta, e um pedaço de muro, agora coberto por musgo e ervas selvagens.
Para auxiliar este processo de luto dos locais, o Projeto Alkantara criou o "Memórias do Casal Ventoso", um projeto de recolha de recordações em vídeo.
Também no Loureiro se vai tentando reanimar a vida bairrista que entretanto se perdeu. De vez em quando, carrega-se uma velha e enferrujada metade de barril de alumínio para o passeio, dá-se fogo ao carvão, prepara-se a carne e vigia-se a assadura. Os antigos moradores do Casal juntam-se para, entre uma bifana e dois dedos de conversa, recordarem o seu bairro do coração.
Vivem, por uma tarde, o que dizem ter sido rotina no lugar que ali na encosta desapareceu.
Quando visitava o antigo bairro, o autarca José Godinho era sempre acompanhado por cerca de uma centena de pessoas, entre as quais curiosos e jornalistas, conta. Para quem não procurava vender ou consumir estupefacientes, o Casal Ventoso era o segredo mais bem guardado da encosta.
Aqui poucos se atreviam a entrar.
Na altura, José era o presidente da Junta de Freguesia de Alcântara, cargo que ocupava desde 1983. As instituições municipais e o entretanto extinto Gabinete de Reconversão do Casal Ventoso seriam os responsáveis por dar início a este processo de transferência.
A ideia nasceria com a coligação de PS e PCP na Câmara Municipal de Lisboa (CML), no primeiro mandato de Jorge Sampaio. A "eliminação das barracas na cidade" era objetivo autárquico que colheu apoio no governo de Cavaco Silva.
Já não havia volta a dar: o cenário "degradante" sublinhou a unanimidade na decisão de riscar o Casal Ventoso do mapa.
José Godinho acredita que o plano de realojar as famílias naquele mesmo local, dando apenas um novo rosto àquela encosta, não era opção, depois de chegarem às mãos da Câmara Municipal de Lisboa e da Junta de Freguesia estudos que alertavam para o risco de derrocada com o efeito das obras.
Um novo bairro - agora não à parte da cidade, mas integrado nesta - foi o que ali, na avenida, os autarcas quiseram ver nascer.
Mas com a fama que o Casal Ventoso tinha adquirido ao longo dos anos, os seus moradores não eram desejados pelos que já moram abaixo da encosta. Comerciantes e locais que já ocupavam o casario daquele vale, então pouco mais que uma pequena vila operária, não ficaram satisfeitos com a nova vizinhança.
"Era preciso que não os vissem como intrusos, que os acolhessem bem. Por isso, demos algo em troca", recorda José Godinho. "Expliquei-lhes que era necessária a transferência daquelas pessoas para ali, que eram pessoas de bem, e prometi a reconversão das fachadas e, depois, do interior das suas casas". Hoje, garante, "convivem muito bem entre eles".
Goreti sabe que não havia alternativa. Usa e abusa do adjetivo: "insustentável". "Morar lá já era insustentável". A droga tornava-se cada vez mais um problema de saúde pública, por isso, concordou "em parte" com o processo de realojamento.
Goreti Rodrigues mora na Quinta do Loureiro e pertence hoje ao Conselho de Moradores dos três bairros. Tem na ponta da língua todas as queixas das muitas famílias que ali residem. Sabe que o que não agradou os moradores nesta transição foi principalmente a forma como estes foram distribuídos pelos diferentes núcleos habitacionais. Todos lamentam o mesmo: antigos vizinhos pertencem agora a freguesias distintas, os laços perderam-se e a típica vida de bairro também.
José Godinho justifica-se e diz que não era possível monitorizar todas estas ligações afetivas, garantindo que centenas de vizinhos se manteriam juntos.
Apesar das críticas dos locais, que reclamam o processo de realojamento como não tendo em conta as suas vontades e necessidades, um relatório internacional de 2015 do Centro Europeu de Monitorização das Drogas apontava algumas políticas concretizadas em Lisboa com rasgados elogios. Entre elas, a reconversão do Casal Ventoso.
Em agosto de 2018, o DN contava a história de vários moradores da Quinta do Cabrinha impedidos de sair de casa há vários anos, devido a avarias nos elevadores.
Com uma população maioritariamente idosa, a falta de elevadores funcionais é muitas vezes sinónimo de quedas nas escadas ou mesmo de anos sem conseguir abandonar a cama ou a cadeira da cozinha.
Culpam quer o vandalismo praticado por outros residentes quer a Gebalis, entidade responsável pela manutenção nos bairros municipais e que tem sob a sua alçada um total de 1193 elevadores, distribuídos por 66 bairros municipais de Lisboa.
As anomalias técnicas são um problema da ordem do dia quase desde que o Cabrinha ganhou vida. E se amanhã a empresa municipal chega para os consertar, o mais certo, segundo conta a tradição, é que a ausência de problemas só dure mais um dia. Os elevadores são antigos e a preocupação de os manter funcionais parece não ser unânime entre todos os residentes, alguns também apontados como responsáveis pelos seus danos.
Questionada na altura pelo DN, a entidade garantiu que "nenhum elevador se encontra parado por avaria decorrente de desgaste mecânico", pois se o problema estivesse contemplado nesta tipologia de avaria, o contrato obrigaria à reparação "num prazo máximo de 48 horas". Contudo, se a causa não está aqui contemplada e é mais "vultuosa em termos de custo", não se encontra "contratualmente estabelecida" e acarreta uma "queixa-crime e investigação por parte das autoridades".
Davide Amaro, atual presidente da Junta de Freguesia de Alcântara, lembrava, então, a importância de "continuar a sensibilizar a câmara, para mostrar que há aqui um problema".
Depois de concluído o realojamento dos antigos moradores do Casal Ventoso, Ivone e José sentem-se deixados ao abandono pelo município, à semelhança do que sentiam no antigo bairro e que poderá ter fomentado o desenvolvimento deste como "hipermercado e droga". Em dezembro, devido aos problemas de saúde e as dificuldades de viverem num 3.º andar sem condições físicas de deslocação, mudaram-se para um lar.
Apesar de o bairro ser novo, os problemas são antigos. Além do ambiente hostil entre residentes e entidades municipais, o tráfico e consumo de droga não desapareceram do mapa. Mesmo que em proporções menores, os moradores dizem que há andares e casas alugadas para os consumidores - apesar de o contrato habitacional de cada inquilino prever a anulação do acordo caso tal se verifique. Na Quinta do Loureiro, ocupam os átrios dos apartamentos.
Entre os moradores, comenta-se: há um medo que nasce de novo.
Leia o próximo capítulo da série "20 anos sem Casal Ventoso": "Os clubes que salvavam vidas ruíram com o bairro".