Celeste Rodrigues (1923-2018): "Amália? Somos diferentes. Tenho o meu fado, ela tinha o dela"

A fadista morreu nesta quarta-feira, aos 95 anos, em Lisboa. O DN recorda-a através das suas próprias palavras, num retrato que só se completaria vendo Celeste Rodrigues cantar e ouvindo os versos que entoava.
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Antes que se comece já a falar da irmã Amália, atente-se ao que disse ao DN a própria Celeste Rodrigues há alguns meses: "Nós somos muito parecidas em muitas coisas mas a nossa maneira de sentir é muito diferente. Eu tenho o meu fado, ela tinha o dela. O dela era muito bom, mas o meu também não é assim tão mau. Somos diferentes."

A fadista, que morreu nesta quarta-feira aos 95 anos, disse-o em abril, semanas antes do seu concerto no Tivoli, em Lisboa, ocasião em que celebrou 73 anos de carreira. E nessa última entrevista que deu ao DN dava conta das suas ganas de pôr o xaile: "Quando eu canto estou lá toda, entrego-me."

Celeste Rodrigues nasceu no Fundão a 14 de março de 1923, e a Beira Baixa ficaria na sua voz através das modas que cantaria durante toda a vida. Foi ainda criança que veio para Lisboa, onde conheceu a sua irmã Amália - "Não nos lembrávamos uma da outra, só das fotografias". Eram dez irmãos, entre os quais os pais viram morrer cinco.

Miúda, e sempre a cantar, Celeste descascou ervilhas, trabalhou numa fábrica de conservas em Alcântara e, mais tarde, numa fábrica de bolos em Santos. Tinha "7 ou 8 anos" quando ouviu fado pela primeira vez. Foi da boca dos "ceguinhos". "Com alguém a tocar acordeão ou guitarra ou concertina. E ouvia nas grafonolas", contou ao Público em 2014.

Antes disso, porém, já ouvira aquela que para ela fora a voz mais bonita de todas: a da sua mãe. "Foi a minha mãe quem despertou em nós o interesse pelo canto. A música esteve sempre em nós, desde a barriga dela. E o meu pai, sapateiro, era músico, o meu avô era músico e o meu bisavô era músico", recordou na mesma entrevista a Anabela Mota Ribeiro.

Foi criada "num bairro de estivadores e varinas", contou à Notícias Magazine há três anos, ao lado do seu bisneto Gaspar Varela, que aprendeu guitarra portuguesa para poder acompanhá-la no fado. Apesar do lugar humilde, os seus pais, afirmava, "nunca deixaram que usássemos palavrões ou gíria. Sempre falámos um português escorreito. Um dia disse à minha irmã Amália que fosse àquela parte, levei com uma malagueta na boca. Foi a primeira e a única".

Citar as frases que disse em entrevistas implica, claro, traçar um retrato que só se completaria talvez com a sua figura a cantar, ou com os versos que cantava no seu reportório. Como "Praia de outono transfigurada pela ameaça de alguém partir", que entoava em Praia de Outono, "Mas p'ra não sofrer à toa / Não dou um nome a Lisboa / E só lhe chamo saudade" em Fado Celeste, ou "E quem passar pela cabana do pescador / Há de sentir um não-sei-quê de nostalgia / E aos seus ouvidos há de chegar um rumor / Que tem do mar a estranha melancolia", em Lenda das Algas.

A sua voz foi descoberta quando cantava por brincadeira "numa roda de amigos". Começaria então a cantar na casa de fados Café Casablanca, em Lisboa, em 1945. Seguir-se-iam, nas sete décadas de carreira, casas como o Embuçado, o Café Luso, a Parreirinha de Alfama ou a Mesa de Frades, um dos seus últimos palcos. Pelo caminho, cantaria no Casino da Urca, no Rio de Janeiro, com Amália, no Teatro dos Campos Elísios, em Paris, no Queen Elizabeth Hall, em Londres, ou no Carnagie Hall, em Nova Iorque.

Em dezembro do ano passado, numa noite em Lisboa, cantou com Madonna Can'tHelpFallinginLove, de Elvis Presley. A autora de Like a Virgin referiu-se a ela como uma "lenda viva". Mas devolvamos, mais uma vez, o discurso à fadista: "Parece que estou a fazer propaganda a mim própria e eu não gosto, nunca precisei disso, não preciso de nenhuma fama, eu gosto de cantar e é isso que eu quero, cantar. Ela foi simpática em gostar da minha voz e foi só isso", disse ainda na última entrevista ao DN.

Do que era fundamental para si falava com contundência: "Eu quero é cantar. É a minha vida. Tenho impressão de que vim ao mundo para cantar."

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