Aceitam-se lições de como ser bom pai
Aqui há uns 20 anos, o meu filho mais novo entrou para a primeira classe. Havia uma escola que parecia perfeita. Mesmo ao lado da casa onde vivíamos, num edifício muito bonito e com boas condições. Tinha um problema, era gerida pela paróquia ou por uma entidade qualquer ligada à Igreja. Ora, uma educação católica foi coisa que sempre soubemos não querer dar aos nossos filhos. No entanto, era uma escola pública - devia estar ao abrigo de uma espécie de contrato de associação ou coisa do género - e seguia, claro está, os programas do ensino público.
A professora parecia tão competente e querida, a escola a menos de 50 metros de casa... e, era o que mais faltava, não iam tentar doutrinar o rapaz (eu sei, eu sei).
Logo na primeira semana recebi uma carta da escola a pedir-me para ir falar com o diretor. Lá fui.
Nessa conversa, fui informado de que ou o meu filho frequentava as aulas de religião e moral ou saía da escola.
Expliquei ao senhor que, sendo o estabelecimento que geria financiado integralmente pelo erário público, à luz da lei e da Constituição o que ele estava a fazer era, além de miserável, ilegal. Depois de uma discussão em que o cavalheiro me explicou não só os méritos de uma educação católica e me deu a entender de uma forma bastante explícita que eu era um selvagem e eu o informei de que ia dali para o tribunal com passagem pelo Ministério da Educação e lhe chamei Torquemada da Lapa, ele percebeu que não valia a pena insistir.
O meu filho não ia às aulas de religião e moral, mas o efeito último foi de que tive mesmo de o tirar daquela escola. Os outros meninos iam todos, ele ficava sozinho no recreio e, apesar de nunca se ter queixado (sempre foi teso, o rapaz), sabíamos que ele sofria com aquilo.
Lembrei-me desta história da minha vida ao ler um ótimo artigo do Luís Aguiar-Conraria no Expresso em que falava da possibilidade de obrigarem as filhas dele a ter aulas de religião católica - sobre o assunto central disse quase tudo o que eu diria.
Tudo a propósito do caso do pai de Famalicão que proibiu os filhos de frequentar as aulas de Cidadania.
O meu primeiro impulso foi escrever umas coisas sobre assuntos que vários colunistas abordaram, mas foi quase tudo dito. Por esta altura, discutir a possibilidade de a escola ser neutral social ou politicamente é um bocadinho, digamos, tonto.
É rara a disciplina que não tenha conteúdos nos quais há escolhas guiadas por convicções políticas e escolhas de convivência social. A cadeira de Cidadania não é diferente de muitas das outras, transmite valores que temos como comuns a uma maioria significativa dos cidadãos.
Aliás, a discussão sobre a neutralidade das democracias em relação a vários aspetos da vida social é interessante. Há quem parta do princípio de que na sua essência a democracia representativa não se pode defender. Não pode, por exemplo, utilizar instrumentos de repressão a ideias ou ações que a ponham em causa. Não vou gastar espaço com esta discussão agora, sublinho apenas que, apesar de a sua fragilidade ser boa parte da sua força, a democracia tem o dever de promover os seus valores e pôr em causa os outros sistemas, e, claro, a escola é o local indicado para isso - o que que a Igreja chamaria evangelizar. E a ideia de igualdade entre sexos, orientações sexuais, cores de pele, a divulgação da saúde sexual e as demais áreas da cadeira da Cidadania é uma parte fundamental do nosso entendimento de democracia. Pois, não era com nada disto que queria gastar caracteres. Era com algo que eu, o Aguiar-Conraria e o cavalheiro de Famalicão temos de fazer: ser pai.
Coisa muito pouco dinâmica isto de ser pai. Um tipo envelhece, os filhos envelhecem connosco e as nossas dúvidas e inseguranças sobre como devemos lidar com eles é sempre igual.
Lembro-me muito bem do meu filho me perguntar qual era o mal de ir a uma aula onde ensinavam coisas sobre um senhor de que a avó gostava muito e que morreu para nos salvar, como imagino que os filhos do senhor de Famalicão se perguntem porque estão com estes problemas todos só por o pai não querer que eles vão a aulas em que se fala de umas coisas normais.
Não sou capaz de dizer o que me angustia mais no papel de pai, a coisa vai mudando. Mas aquela altura em que o que lhes queremos transmitir choca de frente com o que o mundo fora de nós lhes diz é difícil. Para mim foi e continua a ser. Quando as nossas certezas são confrontadas com as certezas dos outros e temos aqueles que mais amamos no meio.
Bem sei e já o disse muitas vezes, e ao longo dos anos, cá para os meus botões: tenho de transmitir os meus valores, as minhas convicções. Mas as minhas certezas são grandes quando as discuto com quem quer que seja e muito pequenitas quando as transmito aos meus filhos.
Também sei daquele conselho que todos ouvimos: "Mostra aos teus filhos firmeza no que defendes, não lhes passes mensagens contraditórias." Pois claro, nós contra aquilo que somos, poços de incoerências, de atos diferentes das mensagens e o nosso público são miúdos que absorvem tudo o que fazemos e o que dizemos de uma forma de que só muito mais tarde temos consciência.
Talvez devesse ter deixado o meu rapaz mais novo naquela escola da Lapa para lhe ensinar que se tem de sofrer por aquilo em que se acredita. A verdade, porém, é que ele ia sofrer era por aquilo em que eu acredito.
O mesmo que está a acontecer aos miúdos de Famalicão. Se calhar é o meu camarada minhoto que tem razão.
(esta coluna vai a banhos, voltamos a encontrar-nos no fim de agosto)