Erdogan ou a bravura turca de tentar a paz
A Turquia é, para já, o mais parecido que se pode falar de um país mediador entre Moscovo e Kiev. Depois de, no início de março, os ministros dos Negócios Estrangeiros da Rússia e da Ucrânia se terem reunido em Antalya, à margem de uma habitual conferência internacional que tem essa cidade como palco, esta semana, as delegações dos dois países em guerra reuniram-se formalmente em Istambul. E o presidente turco fez questão não só de cumprimentar os negociadores russos e ucranianos, como de os motivar, com palavras fortes, para a necessidade de pôr o mais rapidamente possível fim ao conflito que dura desde 24 de fevereiro.
O atual protagonismo turco na crise que opõe Ocidente e Moscovo é muito por mérito de Recep Erdogan, um dos raros líderes que pode competir com o russo Vladimir Putin em termos de experiência como governante. Também há aqui demérito, diga-se, de outros potenciais mediadores, como a China, mas isso só realça a bravura do presidente turco perante as precauções táticas de outros políticos. Sim, há muito a ganhar em surgir aos olhos da opinião pública mundial como o potencial fazedor da paz, mas também há riscos se o resultado da mediação for nulo, a guerra na Ucrânia continuar e a tensão entre os Estados Unidos e seus aliados com a Rússia escalar ainda mais.
Desde que assumiu o poder em Ancara, em 2003, como primeiro-ministro (e desde 2014 como presidente), Erdogan tem apostado numa diplomacia interventiva, e se esta chegou a ser batizada de neo-otomana, por desde a Primavera Árabe ter procurado influenciar o destino político dos países árabes do antigo império dos sultões turcos, também se diga que antes disso foi com este líder que as negociações de adesão da Turquia à União Europeia formalmente se iniciaram, após décadas de impasse. Igualmente a pertença à NATO não impediu nestes últimos anos os turcos de terem vários entendimentos com os russos, desde o fornecimento de um sistema de mísseis até à gestão de interesses na guerra civil síria, apesar de apoiarem campos opostos. Contradições, dirão os mais críticos de Erdogan, flexibilidade, argumentarão os que apreciam o instinto político do presidente turco, que conta com o hábil Mevlut Cavusoglu como ministro dos Negócios Estrangeiros desde 2015.
A flexibilidade turca passa, por exemplo, por não alinhar nas sanções à Rússia (continua a receber turistas, a importar gás e a ter parceria com a Rosatom para construir uma central nuclear), ao mesmo tempo que vende drones militares à Ucrânia. Abertamente, Cavusoglu já declarou que uma saída pacífica passa por encontrar uma solução que permita tanto a Putin como ao homólogo ucraniano salvar a face. Imagina-se que Putin terá mais margem de manobra negocial, no terreno e em Moscovo, do que Volodymyr Zelensky, que encarna a resistência, e esta não rima com cedência, nem aos olhos do povo ucraniano, nem na elite que dá ordens em Kiev.
Erdogan, apesar dos tais riscos de estar a alimentar exageradas expectativas de trazer a paz ao vizinho do Mar Negro, viu bem o momento internacional como uma oportunidade para a Turquia marcar posição em várias frentes. Ainda antes de a guerra começar na Ucrânia, já os voos entre a Turquia e a Arménia tinham começado, num sinal de aproximação entre Ancara e Erevan, e um possível passo para normalizar relações, mesmo sem esquecer os massacres de há um século pelo agonizante Império Otomano. Entretanto, o presidente israelita visitou Ancara, algo inédito há mais de uma década, o que confirma o desejo de Erdogan de melhorar as relações com o Estado Judaico, tradicionalmente amigáveis até um barco de ativistas turcos pró-Palestina ter sido abordado a tiro quando tentava chegar a Gaza. Mas o mais relevante foi mesmo a recomendação de Erdogan à União Europeia (que nos últimos anos quase só olhou para a Turquia como uma barreira para conter refugiados sírios) para dar nova atenção à candidatura turca, ainda mais depois do recente pedido de adesão da Ucrânia.