Tanka Sapkota: o nepalês que criou um pequeno império italiano em Portugal
Chegou a Portugal há 28 anos, quando o país ainda era muito diferente. Há 25 abriu o Come Prima, o restaurante italiano que em 2019 foi considerado um dos 70 melhores em redor do mundo, e que lhe garantiu a sustentabilidade para a expansão dos negócios no nosso país. “Tenho clientes que vêm cá desde o primeiro ano. No segundo turno do restaurante continuam a ser praticamente todos portugueses”, garante. Conversámos com Tanka Sapkota no Come Prima, precisamente, numa terça-feira de muita chuva e em jeito de balanço sobre estas duas décadas em meia. Fomos vendo a equipa a chegar, uns para a cozinha, outros para arrumar a sala, e os seus olhos atentos a controlar a dança que foi tendo lugar entre os dois andares do estabelecimento que, na zona de Santos, é já uma espécie de restaurante histórico.
Quando aterrou em Lisboa ainda lhe chamavam Giovanni – mais fácil de entender, mais italiano – e vinha da Alemanha, onde começou a trabalhar na restauração como muitos outros: a lavar pratos e a fazer tarefas menores. Foi ali que aprendeu a cozinha italiana, e foi em Lisboa que decidiu arregaçar as mangas. Ou vestir a jaleca. Atualmente, é um grupo sólido financeiramente, e nem a pandemia lhe abanou as estruturas. Apesar dos confinamentos, o grupo manteve-se acima da linha de água em 2020 e 2021, sem colocar trabalhadores em lay-off e ainda desenvolvendo uma série de ações de solidariedade social que tiveram destaque até na imprensa internacional – Tanka e a equipa distribuíram mais de 10 mil pizzas por famílias carenciadas de Lisboa, em estreita colaboração com as Juntas de Freguesia, e com fornos portáteis que garantiam a chegada de comida quente às pessoas.
Com quatro restaurantes em Lisboa – Come Prima, Forno d'Oro, Il Mercato e a Casa Nepalesa – e mais de 60 pessoas na folha salarial, vai navegando entre crises económicas, sociais e dentro do setor em que opera, abanando um pouco mas sem nunca cair.
“Os nossos restaurantes não são super baratos, mas ao mesmo tempo são pensados para a carteira portuguesa. Eu podia faturar muito mais só com turistas. Estamos quase sempre nos lugares cimeiros em plataformas como o Google ou o Trip Advisor. Mas se eu fizesse isso, se calhar não estávamos aqui a conversar, porque talvez eu faturasse mais 20% ou 30% mas o que teria era um restaurante turístico, e não este”, justifica.
“A mim e à minha mulher”, parceira também de negócios, “dá-nos muito gozo ter todos os dias a casa cheia de portugueses”.
Isto acontece, ao contrário daquilo a que se assiste em outros espaços de restauração equivalentes, porque “com a inflação praticamente toda a gente subiu os preços 20, 30 ou 40%”, nota. “Desde a pandemia, creio que os nossos preços nem sequer aumentaram em 10%. E já na crise de 2008, quando foi preciso aumentar preços, só aumentei o preço do produto, nunca mexendo no do serviço. Se, por um lado reduzo a minha margem financeira, por outro lado aumento uma margem que, para mim, não tem preço, que é o contacto diário com os portugueses, que são um povo que eu amo”.
E mesmo reduzindo a sua margem financeira, os resultados mantêm-se sólidos. Os dados compilados pela Informa DB mostram que os restaurantes do chef e empresário nepalês têm um desempenho acima da média do setor, comparando com empresas equivalentes, tanto nos indicadores de resiliência como de solvabilidade e autonomia financeiras.
Tanka mede sempre cada palavra que diz, não respondendo a qualquer uma das nossas perguntas sem, pelo menos, entre cinco a 10 segundos de reflexão. Algo que não nos pode passar despercebido numa altura em que a velocidade de tudo o que se faz parece ditar as regras dos nossos dias. “Eu vivo num país que não é o meu, que tem uma cultura que não era a minha, uma língua que não era minha. Neste momento, sinto que esta língua, esta cultura e este país são meus”, atira em jeito de justificação.
“Eu e a minha mulher concordamos que não vivemos nem trabalhamos aqui apenas pelo dinheiro”, acrescenta.
Apesar dos quatro restaurantes e de ter a responsabilidade de grande parte da gestão do grupo, Tanka continua a entrar na cozinha todos os dias. “Dá-me um grande gozo entrar na cozinha às 18h30 ou 19h, cozinhar para toda a gente e ir à mesa depois perguntar como correu o jantar”. No Come Prima, é Tanka que lidera a equipa que assegura os jantares; pelos outros restaurantes do grupo vai passando durante o dia. Todos os estabelecimentos estão entregues a familiares – um irmão, um primo e um cunhado - o que faz do empreendimento um grupo verdadeiramente familiar. Todos os espaços têm registado crescimentos sustentados.
Há três décadas a viver no país, o cozinheiro já atravessou crises económicas e políticas e esta é só mais uma. Questionado sobre que país encontrou quando aterrou em Lisboa, pela primeira vez, Tanka é perentório: o país era mais parecido com aquilo que é o Nepal, atualmente. “Os turistas que vinham para cá eram os que não tinham dinheiro para ir para outros lugares. Não havia liquidez para gastar em restaurantes”, recorda.
Aplaude as infraestruturas que entretanto foram construídas - “eu sei que os portugueses dizem mal, mas houve muitas coisas bem feitas!” - bem como a evolução que o país foi garantindo ao longo destes anos e o esforço dos seus colegas da restauração que trabalharam para as tão cobiçadas Estrelas Michelin - “mentiria se dissesse que não gostava de ter uma. Mas não é para isso que trabalho. Sei qual é o meu caminho, é só isso. E não conto desviar-me dele”.
E conta, em jeito de brincadeira, que não raras vezes já tirou da carta do Come Prima alguns dos pratos que mais saída tinham porque não acreditava neles. E, para Tanka, essa é uma linha que não faz sentido passar, mesmo que seja para ganhar prémios.
“Então, pronto, não temos estrela, mas estamos felizes e orgulhosos” doque construíram. E, além disso, “o trabalho está feito. Porque havendo restaurantes com estrela, em Portugal, as pessoas que vão a esses poderão vir ao nosso também”, nota com um sorriso.
E, mesmo sem estrela, tem arrecadado várias distinções internacionais, que colocam os seus estabelecimentos em destaque seja pelo festival de Trufa – aliás, tanto teimou que encontrou trufas em Portugal! - seja pelas pizzas ou pela qualidade geral que apresenta.
Um olhar imigrante sobre a imigração
Aprecia que a gastronomia em Portugal tenha sido elevada a outro patamar, porque isso lhe permite reforçar a qualidade e ter público, mas admite que há problemas. Entre eles, o aumento descontrolado dos alojamentos locais e a falta de regulação na imigração.
Que, recorda, é necessária para o país, mas “que precisa de mais atenção”. Aliás, para Tanka Sapkota, o papel dos reguladores, nos vários setores de atividade, é fundamental para garantir o bom funcionamento da sociedade.
“Ainda no outro dia um funcionário chamou a minha atenção para uma infiltração que tínhamos. E disse: “e se aparece aí a ASAE?”. Se aparece, é bom. É sinal que está a funcionar e nós precisamos de regulação. Absolutamente!”.
Quanto à imigração, Tanka é também perentório: “Para trabalhar aqui, é preciso ter regras. Não se pode permitir a entrada de qualquer pessoa, até porque Portugal é visto, por muitos imigrantes, como uma escala para partir para outro lugar. Ora, ninguém que quer estar num sítio por pouco tempo se preocupa em cumprir as regras. Há pessoas que entram aqui e pensam que podem fazer tudo o que querem. E isso tem de ser evitado”.
Por isso mesmo, defende, acredita que a implementação de regras concretas seria vantajoso para todos: “Nós podíamos ter outro tipo de fábricas, se tivéssemos pessoas para trabalhar nelas. Mas temos de conseguir que venham imigrantes que têm, pelo menos o 12.º ano, que têm menos de 22 anos, por exemplo, para que queiram construir uma vida aqui, e temos de lhes dar condições para trabalhar”.
“Quando eu cheguei à Europa, era difícil de mais conseguir ficar aqui a trabalhar. Nos últimos anos, são só facilidades. E eu não acho errado que se facilite, mas tem de se ter regras. E quem não cumpre as regras, tem de ser penalizado. Mas quem as cumpre, pode ter benefícios”. É assim, aliás, que funciona com as suas equipas no restaurante: dá prémios – mesmo que simbólicos – a quem aparece com ideias que ajudem a resolver problemas.
“Nós, que aqui estamos, pagamos um valor inimaginável de impostos. Não podemos admitir que não haja regras para quem quer entrar. Isto não é só para Portugal, é para toda a Europa”, defende. “Não podemos deixar isto acontecer num país que acolheu tão bem tantos imigrantes, um país que é bom, onde as pessoas são tão simpáticas. O governo devia mesmo investir nisto, nesta regulação”, repete.
Aproveita a ocasião para lamentar que, por vezes, se confudam os nepaleses - “vimos de um país tão pequeno” - com os restantes imigrantes chegados da Ásia, porque sabe que as perceções são diferentes. E pede mais responsabilidade aos atores mediáticos nessa diferenciação, remetendo para uma reportagem recente em que viu várias nacionalidades serem englobadas na mesma estatística. “Fale com patrões de nepaleses em Portugal. Não vai ter queixas”.
Solidariedade Social e Meditação
Saltou para as páginas de jornais portugueses e internacionais quando, em plena pandemia, andou por Lisboa com fornos portáteis a alimentar com pizzas quentes famílias em dificuldades. Ofereceu os produtos e o serviço, foi aplaudido por uns e muito criticado por outros - “houve quem dissesse que eu só queria o protagonismo. Mas na verdade o que eu gostava era que outros seguissem o meu exemplo. Se publicitar o meu espaço, então é outra vantagem”, admite.
Há vários anos que Tanka Sapkota está envolvido em projetos de solidariedade social, a maior parte sem qualquer divulgação pública. Fá-lo por convicção, garante e rejeita falar de quanto já poderá ter investido neles.
Mas é por aí, aliás, que vê passar o seu futuro. Por mais tempo dedicado à solidariedade e também à meditação – duas áreas que, na sua cabeça, se cruzarão. Adepto desta prática ancestral vinda do oriente, medita todos os dias e já começou a guiar a família no mesmo sentido. “Acha que se Donald Trump ou Vladimir Putin ou mesmo os nossos governantes meditassem nós estávamos a assistir a tudo isto? Não estávamos!”, assegura. “É lógico que eles nunca vão meditar. Mas deviam. Todos os líderes, sobretudo abaixo dos 40 anos deviam meditar. Porque nós, à medida que vamos ficando mais velhos, ficamos mais teimosos”, atira com um sorriso.
Meditou antes de se encontrar com a equipa do DN para esta entrevista, e assegura que foi essencial para baixar os níveis de ansiedade com que acordou. Agora, tem o objetivo de criar um grupo onde possa ensinar a meditar e a colocar a prática no centro da vida de quem estiver disposto a aprender. Reitera que não é algo ligado a qualquer religião, mas que é uma prática que considera essencial para estarmos mais ligados ao que realmente importa.
Quanto o futuro dos seus restaurantes, o tempo ditará o que vai acontecer. Para já, o empresário está dedicado a continuar a servir boa comida aos clientes que, ao longo deste quarto de século, escolheram um nepalês para cozinhar as suas refeições italianas.