O colapso do Banco Espírito Santo (BES) e do Grupo Espírito Santo (GES), em 2014, não só colocou as contas públicas em causa, tal era a influência daqueles negócios na economia nacional, como também destruiu laços familiares entre os Espírito Santo, tal era a confiança que os cinco ramos da família depositavam em Ricardo Salgado, então líder do BES, até menos de um ano da derrocada, que resultou em prejuízos de milhares de milhões de euros para os contribuintes e num dos maiores processos da história da justiça portuguesa..Foi esse sentimento que pintou o terceiro dia de julgamento do Caso BES, marcado pelas declarações do clã Ricciardi, que retrataram Ricardo Salgado como “o único que sabia de tudo”, que tinha colaboradores “de que se servia” e que apesar da tentativa de um dos Ricciardi o afastar, em 2013, o Banco de Portugal “assobiou para o lado”..O primeiro Ricciardi que o tribunal ouviu foi António, pouco depois das 9:30 de quinta-feira, através da reprodução do vídeo do depoimento gravado no Departamento Central de Investigação e Ação Penal do Ministério Público (MP), em outubro de 2015. António Ricciardi, que morreu em 2022 aos 102 anos de idade, era o presidente do conselho superior e do conselho de administração do GES, aquando do colapso do império da família..Em hora e meia de declarações, ouviu-se o gestor a responder demasiadas vezes que não sabia ou que não se recordava, embora a sua assinatura conste em ordens de pagamento ou transferências de verbas que o MP acredita quer serviram para pagar “luvas”. Depreende-se que o falecido gestor assinava sem ler ou sem saber do que se tratava..O próprio disse que “tinha confiança absoluta” em Salgado, até ao final de 2013. E num momento afirmou convicto: “Quem sabia de tudo era ele [Ricardo Salgado].” “Ele era o único de nós [do conselho superior] que sabia tudo e punha tudo em marcha”, adiantou..“Ricardo Salgado era um homem muito inteligente, muito bem apetrechado tecnicamente e geria tudo. Como é que ele pensava sair desta situação? Nunca lhe perguntei, é algo que não consigo compreender”, comentou num tom, aparentemente, mais introspetivo..Já José Maria Ricciardi, ex-presidente do BES Investimento, que ocupou diferentes cargos no BES e GES, foi ouvido no Juízo Central Criminal de Lisboa, durante a tarde de quinta-feira. À chegada disse aos jornalistas que pretendia “reconstruir aquilo tudo [os negócios da família entenda-se]”..Já na sala de audiências, clarificou ao tribunal, logo de início, que não era “nem amigo, nem inimigo” de Ricardo Salgado, de quem é primo direito, e de Manuel Fernando Espírito Santo, outro dos 18 arguidos, de quem é primo em terceiro grau..Explicou que entrou no conselho superior do GES em 2012, “teoricamente um lugar onde se tomavam as decisões mais importantes nas áreas financeira e não-financeiras”, onde se faziam representar os cinco ramos da família. Mas o gestor estranhou o ambiente desde o início..“Na primeira vez que cheguei ao conselho superior estavam já quase todos os membros e o meu pai [António Ricciardi], que era o presidente, informou que o conselho superior não podia começar porque Ricardo Salgado não estava. Em primeiro lugar, o meu espanto, porque Ricardo Salgado era um vogal como qualquer outro, mas tivemos de ficar todos à espera. Foi o começo de um certo desentendimento meu com Ricardo Salgado”, contou, revelando que não gostou que fosse o antigo banqueiro a ditar “o que se ia fazer”. “A partir daí começou a tomar-me de ponta, porque viu que eu não estava disposto a fazer a mesma figura dos outros”, adiantou..Sobre as contas da Espírito Santo International (ESI), cuja alegada falsificação dos números ameaçava a sobrevivência do GES, referiu que só teve provas da manipulação das contas em maio de 2014, apesar dos problemas detetados no final de 2013 nas reuniões do conselho superior..A prova, disse, consistia num documento com o teor de uma conversa entre o contabilista Francisco Machado da Cruz, outro arguido deste processo, a quem o MP responsabiliza a falsificação das contas sob ordens de Salgado, e advogados luxemburgueses. Ricciardi assegurou que enviou para o Banco de Portugal (BdP) a informação que tinha..“A narrativa até então não era de que havia falsificação, mas de que havia uma má consolidação das contas e de que tinha havido um erro do commissaire aux comptes [Francisco Machado da Cruz]”, relatou..Em dezembro de 2013, numa reunião do conselho superior do GES, já tinha exigido uma auditoria, segundo contou, relembrando como era “incompreensível” que o passivo da ESI passara “de quase 3 mil milhões de euros para quase 7 mil milhões”. Dois meses antes, afirmando-se desconfiado em relação à liderança de Salgado, contou que fez “um documento, que foi assinado por seis [de nove] membros do conselho de superior”, propondo a saída de Ricardo Salgado. “Porque fazia aquilo que lhe apetecia e sobrava-lhe tempo. E nessa altura ainda nem sabíamos o que se passava, da falsificação das contas”, realçou..Não passou de uma tentativa e quanto ao Banco de Portugal (BdP), Ricciardi, queixou-se que Carlos Costa, o governador de então, “assobiou para o lado”. “Não quis saber de nada e disse para estar quieto”, sublinhou..“[Carlos Costa] Disse que eu já tinha feito pessimamente com as declarações nos jornais e que a guerra com o primo [Ricardo Salgado] estava a perturbar o sistema financeiro. E eu disse-lhe se não achava que eu, como administrador, não devia comunicar”, afirmou..Para Ricciardi, uma atitude diferente do BdP, no fundo "mais atenção", poderia ter evitado o que aconteceu e o julgamento que decorre. E o gestor garante que, na ocasião, "não sabia 3%” daquilo que sabe hoje. "Mesmo assim, achava que a governance [de Ricardo Salgado] não era aceitável", atirou.