ONG britânica acusa marcas de luxo de estarem ligadas à destruição da Amazónia
Há grandes marcas de luxo a comprar peles a empresas “com ligações à cadeia de abastecimento de ranchos ilegais de gado na parte mais desmatada da Amazónia”. A acusação é da Earthsight, ONG britânica, que esta terça-feira, dia 24 de junho, dá a conhecer a sua mais recente investigação, a que deu o nome de 'O preço oculto do luxo: O que as carteiras de designer da Europa estão a custar à floresta amazónica', e onde aponta o dedo sobretudo à marca americana Coach, mas também a outras, como Chanel, Hugo Boss ou Fendi.
A acusação é negada por grande parte das marcas. A Chanel assegura que já não compra peles no Brasil, Hugo Boss e Fendi lançam investigação própria, mas a Coach não respondeu às questões colocadas. Já a Earthsight garante que “analisou decisões judiciais, imagens de satélite, registos de embarques e fez investigações secretas” e conseguiu fazer a ligação direta da cadeia de abastecimento da Coach “a um enorme matadouro brasileiro com um histórico de compra de milhares de cabeças de gado criadas em terras ilegalmente desmatadas”, a Frigol.
Fundada em Nova Iorque em 1941, a Coach assume-se como “uma das líderes mundiais no segmentos de bolsas e acessórios premium”. Já a ONG diz que se trata da “5ª marca de moda mais popular do mundo”, que é “valorizada pelas suas 'bolsas de luxo acessível'”, com preços que variam dos 300 aos 600 euros, e que tem conquistado os mercados europeus “com uma estratégia de rebranding focada na sustentabilidade e no consumidor ético da Geração Z”. No relatório assegura que um dos fornecedores [de peles] da marca “confirmou aos nossos investigadores, disfarçados, que o couro que fornece à Coach vem do Brasil”.
“Algumas outras marcas de luxo renunciaram a todo o uso de couro brasileiro e implementaram sistemas de rastreabilidade e testes científicos para garantir que os seus produtos não estão ligados ao desmatamento. Mas a Coach não forneceu provas que sugiram que tem qualquer sistema em vigor para evitar tais riscos, e, em resultados disso, as suas cadeias de abastecimento estão em perigo de contaminação. A Coach não respondeu a vários pedidos de comentário sobre a investigação da Earthsight”, pode ler-se no relatório hoje divulgado.
Explica a ONG britânica, criada em 2007 com o propósito de “expor crimes ambientais e sociais, injustiças e as suas ligações ao consumo global”, que quase toda a perda recente da floresta amazónica no Brasil “é impulsionada pela pecuária, muitas vezes ilegal”. E que o estado mais afetado é o Pará. O Brasil, que se comprometeu a acabar com o desmatamento, não apenas na Amazónia, mas em todo o país, até 2030, organiza, este ano, a Cimeira do Clima das Nações Unidas – COP30, que decorrerá de 10 a 21 de novembro, na cidade de Belém, capital do estado do Pará, a primeira a ser realizada numa região de floresta tropical.
“Mas, durante décadas, o Pará também tem estado no centro da destruição da Amazónia. Entre 2001 e 2024, o Pará registou a maior perda florestal de todos os estados brasileiros, com 18,6 milhões de hectares desmatados - uma área quase duas vezes o tamanho de Portugal”, refere a Earthsight, explicando que 91% da desflorestação realizada na Amazónia brasileira entre agosto de 2023 e julho de 2024 foi feita sem autorização, ou seja, de forma ilegal.
Segundo a ONG, quase todo o couro exportado do Pará para a Europa vai para Itália, “grande parte do qual flui para duas empresas de curtumes na região de Veneto, a Conceria Cristina e a Faeda, onde é processado e rebatizado como couro italiano”. Assegura ainda que foi um representante da Conceria Cristina que assumiu, perante os seus investigadores, “que a Coach é um comprador regular do seu couro brasileiro”.
Chanel, Chloé, Hugo Boss, marcas do grupo LVMH como Fendi e Louis Vuitton, ou do Kering Group, como Balenciaga, Gucci e Saint Laurent, são compradores habituais de uma ou de ambas destas empresas italianas de curtumes. “Todos disseram à Earthsight que não utilizam couro brasileiro, mas a Fendi e a Hugo Boss promoveram investigações próprias”, refere a ONG, que acrescenta: “A Chanel revelou que recentemente terminou a sua relação com a Faeda após perder a confiança no seu sistema de rastreabilidade”.
A Chloé “foi a única marca que forneceu uma metodologia detalhada” do seu rastreamento do couro, assegurando que só compra peles de animais nascidos, criados e abatidos na Europa e países da bacia do Mediterrâneo.
A Faeda afirmou que “não forneceu couro brasileiro às marcas de moda” em causa porque “o couro brasileiro é de baixa qualidade e não pode ser usado para produtos de luxo”, mas acrescentou um estudo “de uma das mais importantes universidades italianas” sobre os drivers da desflorestação sublinhando que “o couro não é citado porque é um subproduto da indústria alimentar e não causa da desflorestação”. A Conceria Cristina “não respondeu aos pedidos de comentário” que recebeu.
Explica ainda o relatório da Earthsight que a Coach, Fendi, Louis Vuitton e Hugo Boss dependem da certificação de sustentabilidade do Leather Working Group, uma iniciativa colaborativa, criada em 2005, por marcas como Adidas, Clarks, Ikea, Nike, Marks & Spencer, New Balance, Timberland e PrimeAsia Leather Company, e que hoje junta mais de dois mil stakeholders em mais de 60 países.
O problema, refere, é que o LWG "não garante uma cadeia de fornecimento de pele sustentável, ética ou mesmo rastreável", na medida em que a certificação só está disponível para empresas de curtumes, fabricantes e comerciantes de pele, "não fornecendo garantias quanto aos padrões ambientais ou sociais em matadouros ou fazendas de gado".
Ou seja, embora as auditorias da LWG avaliem se a pele brasileira "pode ser rastreada até um matadouro específico, as empresas de curtumes não são obrigados a rastrear as suas cadeias de fornecimento até ao nível das fazendas", onde os animais são criados. Logo, conclui a Earthsight, "a certificação da LWG não oferece garantias de que a pele não tenha origem em terras desmatadas ou roubadas. A própria LWG admitiu, nos comentário que fez [à nossa investigação], que a sua certificação não se destina a ser interpretada dessa forma". O esquema de certificação torna-se, por isso "cego para potenciais abusos" a nível agrícola.
“Os consumidores de produtos de luxo esperam que os altos preços [que pagam] ofereçam algumas garantias de que não estão a contribuir para a desflorestação ou o roubo de terras indígenas. Esta investigação mostra que essa confiança é mal colocada. Até que as marcas de moda comecem a realizar as due diligence significativas nas suas próprias cadeias de abastecimento, não podem garantir que os seus produtos estão livres desses danos”, sublinha, citado no comunicado, o líder da equipa da Earthsight na América Latina, Rafael Pieroni.
A ONG acusa das empresas ocidentais de, nas últimas décadas, “deixarem um rasto de devastação pelos biomas do mundo e uma série de compromissos falhados para limpar as suas cadeias de abastecimento”.
Os decisores políticos acabaram por avançar com leis, embora, no caso europeu, o Regulamentação da Desflorestação da UE (EUDR), que obriga as empresas a garantir que os produtos vendidos no espaço comunitário não conduziram à desflorestação nem à degradação florestal, para defender o clima e a biodiversidade, e que já deveria estar em vigor, foi adiado para 30 de dezembro de 2025.
A Earthsight considera este adiamento “perigoso”, mas, ao mesmo tempo, admite que “as empresas já não podem alegar que não tiveram tempo suficiente para cumprir com os requisitos da regulamentação”.
Já Marie Toussaint, vice-presidente do Grupo dos Verdes/Aliança Livre Europeia, no Parlamento Europeu, e relator sombra do regulamento EUDR, considera o relatório da Earthsight como "oportuno", na medida em que "revela que até mesmo as grandes casas de moda europeias correm o risco de estar expostas à destruição da Amazónia". "À medida que a direita e a extrema direita procuram enfraquecer a regulamentação europeia contra o desmatamento, este trabalho lembra-nos, de forma vigorosa, porque esta lei é essencial para proteger os direitos humanos e os ecossistemas. Devemos implementar a regulamentação na íntegra e rapidamente, para pôr fim a esta cumplicidade silenciosa entre o consumo europeu e o desmatamento", frisa.