"O capitalismo entrou há muitos anos naquilo a que chamo ecocriminalidade"
É belga, cidadão de um dos países fundadores da UE. Como vê o modelo social europeu hoje?
Deveria ser um objetivo dos europeus defendê-lo, mas não é. Podemos facilmente ver que o sistema, não só na Europa, mas em todo o mundo, está a deixar de funcionar. Se olharmos para a Europa, depois da Segunda Guerra Mundial, foi excelente o que se fez. Estávamos a construir um sistema de segurança social para termos pensões, assistência médica, educação. Avançamos para 2025 e o que se vê? Olhemos para Portugal. O serviço nacional de saúde está a quebrar. Como acontece na maioria dos países da Europa, a educação é para poucos felizardos. E a qualidade está a cair. E não há um país que tenha dinheiro para pagar as pensões no futuro. É por isso que todos os governos estão a lutar para estabelecer a pensão nos 66, 67, 68 anos. Porque sabem que as pessoas vão viver mais tempo e não haverá dinheiro. A não ser que haja imigração suficiente. Ainda temos alguma sorte na Bélgica, pois a população crescerá de 10 milhões para 13,5 milhões. Mas em Portugal vai descer de 10 para 8,5. E depois, quem trabalhará para pagar as vossas pensões? Porque serão um país de velhos.
Há falta de liderança na Europa?
Acredito que há certamente uma carência de pessoas visionárias. A Bélgica tinha Paul-Henri Spaak. Os líderes do pós-guerra tinham uma visão de onde queriam chegar com a Europa. Começaram com o carvão e o aço. E depois assinaram o Tratado de Roma. Tinham uma visão e deram passos. Onde está a visão hoje? Na Defesa, por exemplo, não sabem o que fazer. E transformaram Bruxelas num enorme monstro burocrático. Dedica-se a calcular quantos centímetros quadrados podem ter as redes dos pescadores. É com isso que toda a gente está ocupada. Não há visão. Politicamente, recuámos até ao século XIX. Leopoldo I, o nosso primeiro rei, queria comprar Cuba. Queria comprar Chipre. Esses eram os dias em que ainda se compravam territórios. O seu filho, Leopoldo II, tinha o Congo como propriedade privada. 80 vezes a Bélgica. E agora, Trump vai comprar a Gronelândia pelos minerais. E dirá a Putin que pode ficar com a Ucrânia pelos minerais. E que, “tu, China, podes ficar com Taiwan”. Há problema? Não. Ninguém se vai mexer. Tivemos um século para desenvolver o direito internacional, para ter a diplomacia em vigor, para agir com respeito pelas pessoas. E para quê?
Porque é que a Europa está a ficar atrás dos EUA na economia?
Vai-se de Idaho para a Florida e depois para Michigan. O que se fala? Inglês. O que se é? Americano. Os italianos que chegaram nas décadas de 1920 e 1930 são americanos. A última vez que estive em Nova Iorque, tive um taxista da Bulgária. E, disse-me, “sou um pobre imigrante. Mas o meu filho estudou Direito. Tem um salário de seis dígitos. Só na América isso é possível”. É o sonho americano a acontecer. Aquele búlgaro é americano. Se amanhã o convocarem para lutar pelo seu país, ele lutará pela América. E nós? Vamos lutar pela Europa? Conduzimos mil quilómetros e precisamos de saber seis ou sete idiomas. A UE tem 27 países. São 27 presidentes ou primeiro-ministros a conversar entre si. Com um que não quer o outro. Com um que prefere o czar. E o outro não. O grande erro da Europa foi a tomada de decisão unânime. Qualquer boa ideia é diluída na média dos 27.
A ideia era dar voz a países pequenos, como Portugal e a Bélgica.
Mas não está a funcionar. Por isso, é necessário repensar o que deve ser a Europa com uma nova governação. E se for preciso, simplesmente reinicia-se com cinco, seis países. E depois cria-se uma Europa A, e uma Europa B, se eles quiserem. Se continuar como hoje, não creio que haja futuro para a Europa recuperar a posição no mundo.
Referiu Trump. Faz parte da tradição americana ou é exceção?
Não sei se é excecional no mundo de hoje. Se virmos bem, temos Putin, temos Erdogan, temos Milei na Argentina. Há muita polarização a acontecer. Não preciso de ir longe. Na Bélgica, o partido de extrema-direita tem 25%. E num mundo polarizado, é mais fácil para uma pessoa como Trump tomar o poder.
O que pensa de todos estes milionários ao redor de Trump?
Bem, não é diferente da Rússia. Putin tem os seus oligarcas e agora Trump também. Não lhes chamam assim, mas é a mesma coisa. Quando Putin chegou ao poder, rodeou-se de oligarcas. Agora está a ficar mais difícil. Está a nacionalizar as empresas para que produzam para a guerra, por isso estão um bocado zangados. Isso também acontecerá com Trump. Agora rodeia-se de oligarcas, mas quando alguns deles forem contra o que Trump quer, aí começará a haver problemas. E então tornar-se-á mais autocrático.
Um dos segredos do sucesso americano é o capitalismo. O que pensa do capitalismo?
Em primeiro lugar, diria que acho que o capitalismo é uma coisa boa. Em segundo lugar, não creio que exista nada no mundo para além do capitalismo que seja funcional. Poderia referir a China, mas hoje é uma sociedade muito capitalista. Se observar a exportação de Bentleys, a China é um dos maiores compradores. Portanto, é um país capitalista com um poder centralizado. Se olharmos para a história dos últimos cem anos, o capitalismo é muito forte e fez muito bem à humanidade. Mas estamos num ponto de viragem em que vemos que o sistema está completamente quebrado. Viemos de um mundo onde os humanos e a Terra estavam próximos. Com a Revolução Industrial, o homem colocou-se fora da natureza. Era como se um ser humano não fizesse parte da Terra. Estava acima. Assim, chegámos a um ponto crítico em que estamos a explorar excessivamente a Terra e a destruí-la. Por vezes chamo ao Antropocénico o período da idiotice. Perdemos a nossa ligação completa com o planeta e a natureza. Começamos a precisar de um segundo planeta. Significa que o capitalismo entrou há muitos anos naquilo a que chamo ecocriminalidade.
O capitalismo está hoje a destruir o planeta?
A ecocriminalidade acontece porque o capitalismo está focado nos lucros de hoje. Se os lucros das empresas são obtidos com aquilo a que chamo o roubo das gerações futuras, dos nossos filhos, dos nossos netos, está-se, na verdade, a praticar uma espécie de ecocriminalidade. A mudança mental que deveria haver, que mais uma vez é um estímulo para a inovação, é como posso obter lucros enquanto regenero o planeta? Não destruir o planeta. Temos de reparar o que fizemos. Não é preciso ser um Einstein para saber que se explorarmos tanto a Terra, um dia esta chegará ao fim. Mas o que está a acontecer é falta de coragem. A maioria das empresas, se estão em bolsa, são pressionadas por uma estrutura, resultados trimestrais, relações com investidores. É como um rato numa roda. É muito mais fácil ser um rato numa roda do que ser corajoso. Porque para se ser corajosos, tem de se dizer às pessoas que terão um pouco menos de lucro. Mas a qualidade dos nossos lucros, pensando nas gerações futuras, será melhor. Mas ninguém faz esse discurso. E se virmos empresas a falar sobre sustentabilidade, é basicamente greenwashing. Quanto do lucro bruto investem realmente na regeneração do planeta? 20%, 30% ou é algo como 0,01%? Seguem a legislação porque têm de estar em conformidade com a lei. E a lei só passa pela sustentabilidade. E o que significa isso ? Se alguém perguntar à companheira como está o casamento e tiver a resposta de que é sustentável, imagino que não ficará feliz. Lucros sustentáveis, dizem as empresas. Isto significa que se pode ter o mesmo tipo de lucro todos os anos. A fazer o quê? Roubando às gerações futuras.
Há exceções.
Sim. A Patagonia é uma empresa fantástica. E qual é o slogan da Patagonia? Por favor, não compre um casaco extra. Não faça isso. Se alguma coisa está danificada e é preciso arranjar, envie. Vamos reparar. E recebe o seu blusão de volta. Mas não compre um novo. Porque ainda pode usar este casaco durante cinco anos se quiser. Portanto, essa é a mudança mental. E o que aconteceu à Patagonia? Nunca ganharam tanto dinheiro. Outro exemplo: tenho um telefone Fairphone. Pode ver. Funciona perfeitamente. Não há coltan do Leste do Congo nele. Não há sangue neste telefone. É uma guerra que já dura há 25 anos. E o que está a Europa a dizer? O que estão os EUA a dizer? Nada. Porquê? Porque o Ruanda rouba tudo e vende às multinacionais.
Reformou-se há poucos meses. Procurou aplicar estas suas ideias quando era CEO?
Comparo-me sobretudo com os padres no catolicismo. Se um padre diz, vou casar, isso não é possível. Tem que sair da Igreja. Caso contrário, não poderá casar. Trabalhei numa empresa cotada em bolsa. Tenho de respeitar essa estrutura ou então abandono essa estrutura. Mas o que tentei fazer em Portugal é mostrar que, dentro deste quadro, ainda nos podemos mexer. E foi isso que fiz durante oito anos. Alterei os limites e foi isso que fez com que a Ageas fosse vista como um ponto de viragem em Portugal quanto ao impacto social na sociedade. Na forma como fazíamos as coisas. Na forma como a nossa fundação estava a funcionar. E agora toda a gente está a vir e a ver como estamos a fazer. E o que está a acontecer também dentro da organização. Queríamos causar impacto. Cancelei imediatamente todo o bowling, todo o paintball. Cada ação de team building tinha de ter impacto social. Cada departamento tinha de ter indicadores de performance sustentáveis. E depois de dois em dois meses tínhamos uma reunião com todos os departamentos. Como estavam em relação à mudança para processos mais sustentáveis, perguntava. A minha visão era sermos a primeira seguradora verde em Portugal. Não é algo que acontece de um dia para o outro. Porque primeiro é preciso mudar a cultura. A mudança da mentalidade. Para que as pessoas entendam porque estamos a fazer isto. Depois temos que repetir. Repetir. Repetir. Repetir. E passado um tempo as pessoas estão a dizer sim.
Sentiu algum choque cultural?
Mudar uma cultura é o mais difícil em qualquer organização. Porque está enraizada na história. Quando cheguei, estou a generalizar, toda a gente estava de fato e gravata. E todos se tratavam por engenheiro ou doutor. Quando me começaram a chamar doutor, eu disse, não, não, nunca estudei Medicina. Não sou médico. Sou o Steven. As pessoas ficaram surpreendidas. E então proibi o tratamento por doutor ou engenheiro porque isso coloca as pessoas em camadas sociais. Isso não é bom numa empresa. Um CEO deve amar as pessoas. Porque as pessoas são a única coisa que se tem numa empresa. Computador, telefone, isso é dinheiro. O que faz a diferença numa empresa é uma cultura de pessoas. É a única coisa que interessa. Passados alguns meses, deixei de usar gravata. Ao fim de três meses ninguém usava gravata. Recordo-me de quando era jovem, tinha 27 anos ou algo assim, ia de mochila para o trabalho. Mas naqueles dias só se usavam pastas, talvez de falso couro. Fui chamado à comissão executiva do banco. E disseram-me que não era aceitável. Respondi que a minha inteligência não estava na mochila. Está aqui, e apontei para cabeça. Vou continuar a usar mochila. Se não gostarem, demitam-me. Esse é o princípio. Respeitar as pessoas pelo que são. Não faz sentido uma empresa onde só respeitam as pessoas por causa do título de engenheiro ou doutor. Devemos ser respeitados pela pessoa que somos. E eu vivo por esse princípio. Sempre disse aos meus filhos, hoje és o rei, amanhã não é nada. Sê muito realista. Hoje podem dizer-nos, és excelente. Amanhã, se a empresa necessitar, despede-nos. E as pessoas esquecem-se disso. Os benefícios são atribuídos a uma função. Muitos CEO cometem o erro. Voam em classe executiva. Têm um motorista. Eles são os reis. Mas não tem nada a ver com eles. É pela função. Amanhã acabou tudo. E então as pessoas permanecerão em contacto connosco pela pessoa que somos.
A Ageas em Portugal tem grande envolvimento na promoção da cultura. É um legado seu. Reflete a sua personalidade?
Claro. Tenho uma preferência pela cultura. Em segundo lugar, quando cheguei aqui percebi que quase ninguém investia em cultura e pensei, como é possível? Em terceiro lugar, como uma companhia de seguros, como uma seguradora de saúde, temos de dar muita atenção à saúde mental. As pessoas esquecem-se disso. Saúde não é só ir para a sala de operações curar o fígado. A saúde mental importa e muito. E tem muito a ver com cultura. Quando vai ao teatro, durante a peça, você está fora. Está em outro lugar. Você está no que eles estão a pôr em cena. Não pensa no trabalho. É ótimo para a saúde mental. Uma seguradora deve promover o aspeto cultural de uma sociedade.
Acaba de ter um livro seu traduzido para português. Escrever é sua forma de se abstrair?
Mais ainda ler um livro. E sim é bom para a minha saúde mental. Tentei o ioga, mas ficava muito impaciente por estar ali parado.