Steven Braekeveldt: “A única coisa que o meu avô não deveria ter feito naquele dia era jantar com Al Capone”
Numa escala de zero a 100, quanto é e quanto não é ficção neste seu livro sobre um avô que descreve como sendo “uma má pessoa”?
Uns 50% são ficção, outros 50% têm uma base de realidade. É literatura, não é um livro de História.
Percebo que é literatura, mas então 50% é realidade e confirma que foi o seu avô quem claramente inspirou o livro.
Sim.
É fácil ficar fascinado pela figura central do livro. Conta que o seu avô até chegou a ser um oficial nazi, mas quem lê aquele livro talvez o veja, sobretudo, como um sobrevivente, um homem com uma capacidade extraordinária de se adaptar e de dar a volta às situações. Como é que descreveria este homem? Não digo o avô, e sim o herói do livro.
O herói do livro é, tipicamente, um exemplo da Humanidade. Uma pessoa tem sempre a possibilidade de escolher fazer algo de bom ou algo de mal. E no pensamento, também, de todas as pessoas, há algo para fazer o bem ou para fazer mal. E pode até fazer os dois juntos. Este herói do livro é como um exemplo da Humanidade. O herói pode fazer algo muito bom para algumas pessoas e, ao mesmo tempo, tem que ver com o que se passa no mundo, fazer muitas coisas que são más.
Mesmo quando é “má pessoa” - e vamos pensar naquela fase em que ele está na América e trabalha para a máfia -, ao mesmo tempo, faz coisas boas de filantropia, ajuda pessoas. É essa a contradição de que está a falar?
Sim, ao mesmo tempo em que ele mata pessoas, está muito preocupado em fazer algo de bom para os seus trabalhadores: construir escolas, construir um hospital, para que essas pessoas sobrevivam.
Na parte que sobressai ainda mais pela negativa, que é trabalhar para a Alemanha nazi e chegar mesmo a ser oficial nazi, mesmo aí ele consegue manter essa dualidade moral. Consegue ser bom e mau em paralelo.
Quando ele recorda a mãe, sabe que ela estava focada em fazer o bem no mundo. Era como uma médica, vivia para ajudar, apoiar física e mentalmente, as outras pessoas. Dava a mão a pessoas que tinham uma vida difícil, falava um pouco com elas, para dar coragem, motivar as pessoas. Ela era diferente. E isso é o que eu quero dizer, também, sobre o meu avô. Ele tinha uma oportunidade, tinha todos os conhecimentos para fazer exatamente o mesmo que a mãe. Mas há o encontro em Nova Iorque, não, em Chicago, nos anos 1930: esse é o momento, como eu escrevo no livro, em que a única coisa que o meu avô não deveria ter feito naquele dia era ir jantar nesse restaurante com o Al Capone. Este foi o momento, realmente, onde a sua vida foi para o mal.
Falou agora de Al Capone, ou Snorky. Há muitas figuras históricas que passam pela vida do seu avô, pelo menos no livro. Achei interessante que faça questão de nunca as explicar. Fá-las surgir normalmente. Por exemplo, usa o nome húngaro de Robert Capa. Ou seja, não quer dar qualquer pista sobre quem é. Ou o leitor percebe ou não percebe. É aqui que entra mais aquela parte da ficção?
Sim. Há 50% que é real e 50% que não. Eu creio que é o privilégio do autor saber qual é a realidade ou não. Esta pergunta é feita por muitas pessoas. Muitas pessoas vêm ter comigo ou escrevem-me para perguntar se esta coisa ou aquela é verdade ou não.
O homem que se fez esquecer
Steven Braekeveldt
Tradução de Maria Leonor Raven
Casa das Letras
352 páginas
17,90 euros
Seja verdade ou não, é credível sempre que certas figuras se tenham cruzado na vida do seu avô?
Vou explicar outra coisa sobre este livro. Pode ler-se num primeiro nível. É como uma história. Depois, há um segundo nível. Por exemplo, eu falo de Herbert Frahm, que existiu. O meu avô encontrou Herbert Frahm em Albacete. E quem é Herbert Frahm? Herbert Frahm foi um alemão que, muito antes da Segunda Guerra Mundial, era já um antinazi. E participou em muitas ações contra os nazis. E quando a Gestapo foi capturá-lo, fugiu para a Noruega. E na Noruega teve outro nome, Gustav Gustafsson. É um nome muito bonito. E entrou outra vez na Alemanha, com esse nome falso, novamente para ir contra os nazis. E quando a Gestapo vai outra vez à procura dele, escapa de novo. Em 1936, começa a Guerra Civil de Espanha. Herbert Frahm vai para Espanha. Junta-se às Brigadas Internacionais. E tem um nome novo: Willy Brandt.
Uma grande história…
Os alemães sabem quem é Willy Brandt. Eles sabem que se chamava Herbert Frahm. Eles sabem que foi antinazi. Que fugiu para a Noruega. Que integrou as Brigadas Internacionais. E votaram nele um dia para ser primeiro-ministro da Alemanha. Outro caso: quando o meu avô está na guerra em Espanha encontra uma pessoa muito alta e magra. E, depois, vai vê-lo no hospital. É Eric Artur Blair…
É outro dos nomes que não descodificou. É George Orwell...
Este é o tal segundo nível do livro. E o terceiro tem muito a ver com histórias de migrantes. Este livro está cheio de histórias de migrantes. Fala de judeus. E fala de partidos de extrema-direita, que hoje há de novo muitos na Europa. Também levanta questões como a relação entre empregadores e empregados, entre patrões e trabalhadores. Agora toda a gente fala muito de rentabilidade, rentabilidade, rentabilidade, e pouco de sustentabilidade, o que é muito importante. E, por isso, no livro está aquilo que ele faz no Canadá, como ajuda os trabalhadores, as famílias, construindo escolas e hospitais.
É a parte da vida em que o seu avô é mais socialmente empenhado.
Sim, então há diferentes níveis a descobrir depois de ler o livro.
O seu avô era um poliglota e isso não só lhe dá ferramentas de trabalho, como também o faz entrar facilmente nas outras culturas. Também é um poliglota?
Tenho duas filhas e um filho. Todos falam seis idiomas. E a minha mulher fala, escreve e lê dez idiomas. Então, nesta família eu sou o ignorante, falo poucos idiomas [risos].
A sua língua materna é aquilo que nós agora, em Portugal, dizemos ser o neerlandês, ou seja o holandês, ou, por ser a variante belga, o flamengo?
A minha língua materna é o flamengo, porque é um dialeto. Eu falo o meu dialeto flamengo a 50 quilómetros de onde nasci e já não entendem o que estou a dizer. Na escola aprendemos o holandês, é como a língua cultural.
O nacionalismo flamengo surge no livro, usado pelo nazismo. Hoje em dia fala-se muito, de novo do nacionalismo flamengo e, por vezes, é associado à extrema-direita, mas não tem de ser. É mais uma questão identitária?
Houve uma época em que só se falava francês no governo, no Exército, etc. E as pessoas que falavam flamengo não tinham futuro, não podiam entrar no Parlamento, não podiam ocupar nenhum lugar em muitos municípios. O sacerdote, o médico e o notário falavam francês e o resto falava flamengo. Então, depois da Primeira Guerra Mundial, aparece um movimento na Flandres que exige termos os mesmos direitos. E o que acontece na Segunda Guerra Mundial é que os alemães, que são muito inteligentes, veem que o flamengo é um idioma germânico e dizem à população: “Se se juntarem a nós para lutar vamos construir um país flamengo independente”. E muitas pessoas dizem: “Finalmente vamos ter nosso país flamengo independente e não vão ser as pessoas de língua francesa a governar-nos.” Na verdade, os alemães queriam somente atrair muitos flamengos para o seu Exército. Ainda hoje a Flandres representa 70% da economia da Bélgica e há uma transferência de 7 ou 8 mil milhões de euros cada ano. Os partidos nacionalistas flamengos querem esses 7 ou 8 mil milhões para investir na Flandres e não no Sul. Tenho uma opinião diferente: tem de ser usado para sermos uma comunidade. Eu não tenho problema em pagar impostos, mas o dinheiro tem de servir para ajudar todas as pessoas que têm dificuldades na vida. Que falem francês ou que sejam imigrantes, esse não é o meu problema. O problema é que somos um país com as taxas de impostos mais altas da Europa e há muito dinheiro que, em muitos lados, não serve para apoiar ninguém.
Sente-se confortável como cidadão belga?
Sim. Primeiro sou flamengo, mas também sou belga. A Bélgica é um país e deve continuar como um país, porque se vamos neste sentido de dividir e dividir, também vamos dizer que são mouros em Portugal, abaixo do Porto, e temos de criar outro país no sul [risos]. Se formos por esse caminho vamos ter na Europa tudo ainda mais difícil de funcionar. Temos de ter uma visão mais europeia. Precisamos de uma Europa muito mais forte, para ter o seu lugar no mundo. E não é a dividir, dividir, dividir que vamos criar uma Europa forte.
É um europeísta?
Sou muito europeu, sim, mas hoje não temos essas figuras com visões fortes, como Jacques Delors, como Paul-Henri Spaak, que tinham uma ideia muito clara do que vamos fazer da Europa. Hoje é mais uma instituição tomada pela burocracia, e há poucas pessoas com visão. E, também, tomar decisões com 27 pessoas juntas numa sala, por consenso, não é possível claro. Precisamos repensar tudo isto se queremos ter um lugar no mundo. Temos de repensar como funciona a União Europeia.
Quantos anos viveu em Portugal?
Vivi oito anos e meio em Portugal. E foi fácil a adaptação. Eu sempre digo que provavelmente, de toda Europa, os portugueses são os mais agradáveis. Eu vivi em Hong Kong e em Singapura e os asiáticos não querem convidar estrangeiros para a sua casa. No México, não podia encontrar nenhuma pessoa que não dissesse “mi casa es tu casa”, mas podem passar-se anos sem entrar numa casa mexicana. Dizem, mas não fazem. Em Portugal ninguém me diz, mas quando as pessoas sabem que estou em Portugal no fim de semana já me estão a convidar. Os portugueses são pessoas muito abertas a outras culturas, gostam de te convidar para jantar na sua casa e conversar. Para os estrangeiros é muito fácil integrarem-se em Portugal.
Disse que me ia responder em “portunhol”, e fala um bom “portunhol”. Isso ajudou nessa integração? Tentava falar o máximo de português nos tais oito anos e meio em que viveu na Cruz Quebrada e esteve à frente do Grupo Ageas em Portugal?
Eu falo ainda muito melhor espanhol do que português. E vou explicar porquê. Quando temos alguma idade, num momento em que estamos certos de que estamos mais perto do dia de morrer do que do em que nascemos, então o tempo é muito pouco e muito valioso. Quando estava a trabalhar chegava a casa quase todas as noites para jantar às 21.30 ou às 22.00 horas. Tinha muito pouco tempo livre. Então tive de fazer uma escolha: ou vou estudar durante um ano ou dois anos português, uma ou duas horas por dia, ou vou ler livros. Na minha idade ler um livro é mais importante do que outra vez aprender outro idioma. Agora há três ou quatro meses que não falava português, mas quando estava na empresa falava com todos e todos entendiam o meu português [risos].
Que autores lê?
Leio muito John Steinbeck, que é um escritor social e os seus livros são incríveis. Haruki Murakami é outro escritor incrível. John Irving também é fantástico. E Isaac Bashevis Singer.
Que escrevia originalmente em yiddish.
Ele tinha a possibilidade de meter a cultura e tudo dentro dos seus livros de maneira incrível.