Lesados do sorteio de casas anulado em Lisboa preparam ação judicial contra câmara de Moedas
FOTO: Leonardo Negrão

Lesados do sorteio de casas anulado em Lisboa preparam ação judicial contra câmara de Moedas

Famílias a quem foram atribuídas habitações, no âmbito do Renda Acessível, entretanto revogado, querem processar executivo camarário. Candidatos relatam danos emocionais e morais.
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As famílias que foram selecionadas na semana passada para receber uma casa, no âmbito do Programa Renda Acessível (PRA), cancelado posteriormente pela Câmara de Lisboa, dizem-se lesadas pelo Executivo de Carlos Moedas e querem recorrer à via judicial. Um grupo destes cidadãos mobilizou-se para, em conjunto, conseguir juntar meios financeiros e dividir as despesas de forma a avançar com uma queixa contra a autarquia.

Um clique errado no botão de um programa automatizado foi, alegadamente, quanto bastou para espoletar a polémica. O sorteio n.º 29 do PRA estava agendado para 17 de junho, mas no final da tarde do dia anterior 133 pessoas - de um universo superior a sete mil candidaturas - foram surpreendidas com a notícia por que tanto ansiavam.

Lesados do sorteio de casas anulado em Lisboa preparam ação judicial contra câmara de Moedas
Câmara de Lisboa repetiu sorteio anulado do Programa Renda Acessível para 133 habitações

Contudo, a autarquia voltou atrás e anulou o procedimento, alegando que este “não foi realizado em ato público, dia e hora previamente anunciados, conforme os termos do disposto no Regulamento Municipal do Direito à Habitação”, reagendando o concurso para as 15h30 desta sexta-feira, 27.

“Assim que vi o e-mail a dizer que tinha sido sorteada liguei para os meus filhos e eles ficaram todos contentes. No outro dia de manhã fui logo tratar de saber que documentação precisava de entregar”, conta ao DN Elisa Oliveira. A euforia da empregada de balcão, de 66 anos, que vive com uma filha de 27 anos com deficiência, foi sol de pouca dura. No dia 17 recebeu nova comunicação a dar conta da inviabilização daquele que era um sonho e o sentimento de desânimo foi súbito.

“Há cinco anos que tento e nunca me saiu nada. Agora que me deram uma casa, anulam o concurso”, desabafa. O prédio onde vive há duas décadas foi vendido e a ordem de despejo bateu-lhe à porta. O salário de 900 euros líquidos mensais não é compatível com as rendas da capital e o futuro desenha-se de incerteza.

“Onde é que encontro uma casa que consiga pagar? Tenho medo que me metam a polícia à porta e os tarecos na rua”, partilha. Elisa Oliveira integra o núcleo de lesados que quer ver a CML responder em tribunal pelo sucedido, mas não esconde o receio de um eventual desfecho pouco favorável para estas famílias. “A CML é o Golias e nós somos o rato, não é? Vai ser difícil que eles sejam responsabilizados”, afirma.

Os danos, explicam os vários candidatos ao PRA 29, são sobretudo emocionais e morais. A Joana Sá (nome fictício), de 32 anos, foi atribuído um T2 em Marvila, onde, de imediato, projetou dias mais felizes com o filho de 9 anos. A boa nova fê-la encher os “olhos de lágrimas” por, finalmente, “poder ter um lar digno”. Atualmente enfrenta “um processo doloroso de regulação do poder parental” e, para a jovem, esta oportunidade de recomeço “era vital”.

“Saber que a minha candidatura foi sorteada deu-me esperança num futuro melhor. Por isso, ao tomar conhecimento da possibilidade de anulação deste sorteio por falhas técnicas, a sensação de frustração e impotência foi devastadora”, recorda.

O sentimento é também partilhado por Paula Moreira, de 40 anos. Governanta de um hotel, há perto de uma década, que vive com os três filhos na casa dos ex-sogros por “ser absolutamente impossível” pagar um teto em Lisboa para a dimensão do seu agregado. Depois de ter sido notificada da atribuição de um T3, acorreu a formalizar burocracias que, pensava, seriam a chave para uma nova vida. Depois, “o balde de água fria”, conta. Pediu explicações à autarquia, mas assegura que nunca chegaram.

Paula apressou-se a criar uma petição online, bem como um grupo no Facebook e outro no WhatsApp para reunir os 133 sorteados do programa de renda acessível. Foi através destas plataformas que começaram a juntar esforços para avançar contra a autarquia judicialmente.

“Existem casos dramáticos. Há uma pessoa que ligou ao senhorio a entregar a casa e agora não sabe o que fazer”, relata. Paula defende que, independentemente da realização de um novo sorteio, a câmara deve assumir responsabilidades e facultar outros imóveis a estas famílias.

“Há muitas casas fechadas em Lisboa. Nós fazemos descontos e não estamos a pedir nada à borla, vamos pagar renda. Não há soluções para quem não pode pagar. Já enviei fotos para a CML a mostrar as condições em que os meus filhos dormem. A miúda com 23 anos está a dormir com o irmão, que tem 17 anos, na sala, num sofá, e ninguém me dá uma resposta”, lamenta.

Lesados “merecem um pedido de desculpas, mas não mais do que isso”, diz diretora Municipal da Habitação

Dia 16 de junho. O prazo das candidaturas ao PRA29 terminou pelas 17h00 e, de seguida, alguns técnicos municipais avançaram com testes na plataforma Habitar Lisboa. Inadvertidamente, foi acionado um botão dando início ao sorteio, um procedimento mecanizado que não pode ser travado por mão humana após o seu arranque. O programa informou, de forma automática, os selecionados sem que fosse possível evitar esta etapa.

A explicação sobre a linha dos acontecimentos foi dada esta semana pela diretora Municipal da Habitação, na reunião pública do Executivo Camarário. Marta Sotto-Mayor afiançou que a equipa foi “célere a reagir” notificando, meia hora depois, os 7362 candidatos sobre a “falha técnica”. Contudo, só no dia seguinte é que esses e-mails chegaram aos destinatários, conforme confirmou o DN que teve acesso a várias dessas comunicações.

“Estas pessoas têm de ter as nossas desculpas, mas não mais do que isto, porque isto é uma afetação, não é ainda uma atribuição de casas”, afirmou. Marta Sotto-Mayor esclareceu que após esta etapa é ainda necessária a validação dos documentos pelos serviços e garantiu que 45% das candidaturas “caem por falsas declarações ou desistências”. A diretora Municipal reagiu também ao desapontamento das famílias. “Temos 133 pessoas a dizer ‘que pena’ e 7200 a dizer ‘boa decisão porque não foi um ato público’”, defendeu.

Na sua intervenção, justificou ainda o episódio com uma “sobrecarga enorme da equipa”. “Estamos com vários concursos a decorrer, vamos lançar mais 500 casas até ao final do ano, até porque o PRR vem aí e por isso temos mesmo de os lançar”, apontou.

O presidente da CML, Carlos Moedas, assumiu o “erro humano” que resultou na anulação do sorteio de 133 habitações. “É uma situação que não deveria ter acontecido e a minha primeira função, como presidente da câmara, é proteger, porque todas as pessoas têm o direito de errar”, assumiu. Moedas admitiu “que o erro teve consequências”, mas que estas foram corrigidas nas primeiras 24 horas.

“As pessoas que receberam o e-mail ficaram confusas porque sabem que isto é um ato público e não há aqui uma lesão de expectativas”, atestou ainda. Já a vereadora da Habitação garantiu que foi iniciado um inquérito interno, no dia 17, e que irá decorrer nos próximos 30 dias.

Filipa Roseta adiantou que da lista de ações tomadas foi adicionalmente lançado um procedimento público para contratar uma entidade externa que certifique os sorteios de atribuição de casas. Por fim, e de forma a evitar a repetição de um episódio semelhante, revelou que foi adotada uma dupla autenticação na plataforma e, agora, os sorteios carecem de duas pessoas a “carregar no botão” em vez de uma.

Oposição diz que confiança em Moedas sai beliscada

A discussão na reunião pública da CML ficou marcada pelas duras críticas da oposição e acabou por culminar com a aprovação, por unanimidade, da proposta do PS para a realização de uma auditoria externa e independente ao processo do 29.º concurso do PRA. Após sugestão do PCP, foi ainda incluída a concretização de uma auditoria informática à plataforma do concurso bem como determinada a concretização de um relatório público com o levantamento completo dos danos causados aos candidatos afetados, incluindo eventuais perdas de habitação, custos já suportados e outras consequências diretas da reversão do sorteio.

O vereador do PS Pedro Anastácio argumentou que este episódio “feriu os princípios da transparência” colocando em causa a confiança dos cidadãos.

Ao DN, no rescaldo da reunião, o vereador do Bloco de Esquerda aplaudiu a luz verde à auditoria externa. “Não pode, obviamente, ser a própria câmara a avaliar um erro que cometeu. É preciso restaurar a confiança no sistema e isso só pode ser feito através da auditoria externa”, disse. O vereador bloquista frisa ainda ser contra a realização do sorteio, que decorre hoje. “Se ainda não foi feita a auditoria, e se a oposição não conhece os resultados do inquérito interno, como é que já se pode lançar outra vez o mesmo concurso?”, questiona.

João Ferreira concorda e defende que, antes de um novo sorteio, é imperativo restaurar a credibilidade através da uma auditoria à plataforma. O vereador do PCP apela ainda à transparência dos próximos atos. “Todo este episódio colocou em causa a idoneidade do processo de atribuição de casas. Estamos a falar de um sorteio do qual depende a sorte de milhares de pessoas”, remata.

O DN pediu esclarecimentos à CML, mas não obteve resposta até ao fecho desta edição.

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