Companhias aéreas em Portugal podem poupar mais de 160 milhões em indemnizações com novas regras da UE
A discussão sobre as novas regras dos direitos dos passageiros aéreos da União Europeia (UE) ainda agora começou, mas está já envolta em celeuma. Mais de duas décadas depois da criação do regulamento CE 261/ 2004, que estabelece a legislação comunitária relativa à proteção dos cidadãos que viajam em voos operados no espaço europeu - e após uma tentativa falhada de revisão em 2013 -, o Conselho da UE aprovou, no início do mês, novas diretrizes. Uma das questões nevrálgicas respeita ao alargamento do período mínimo dos atrasos dos voos definidos para efeitos de indemnização.
Atualmente, as companhias aéreas estão obrigadas a compensar financeiramente os passageiros quando se verificam atrasos iguais ou superiores a três horas. A proposta - aprovada pela maioria dos Estados-membros, com oposição de Portugal, Espanha, Alemanha e Eslovénia -, altera este prazo único, passando a fixá-lo em quatro horas, nos voos até aos 3500 quilómetros, e em seis horas no caso das viagens de longo curso.
Estas alterações, que seguem agora para discussão e terão ainda de ser votadas no Parlamento Europeu, podem representar, no caso de Portugal, uma poupança para as companhias aéreas superior a 60%.
Olhando para os números de 2024, do total de passageiros que partiu de um aeroporto nacional, 630 mil são elegíveis para receber uma indemnização que ascende aos 252 milhões de euros, admitindo um valor médio de 400 euros por cliente. Aplicando as novas regras, e considerando apenas os atrasos superiores a quatro horas, mais de metade perderia o direito a ser compensado pelas transportadoras. Ou seja, apenas 231 mil passageiros poderiam reclamar um ressarcimento, de acordo com os dados cedidos pela AirHelp ao DN. Contas feitas, as companhias aéreas poupariam, no mínimo, 160 milhões de euros. O valor, esclarece a empresa que atua nos direitos dos passageiros, poderá ser superior se forem aplicados os restantes critérios relativos às circunstâncias extraordinárias, aos prazos de reclamação e aos valores das indemnizações contemplados na revisão.
No que respeita a este último, e à luz da legislação em vigor, os passageiros podem receber, num cenário de atraso, entre 250 euros a 600 euros consoante a distância do voo.
A posição aprovada pelos ministros de Transportes da União Europeia desce o teto máximo para os 500 euros, incrementando, por outro lado, o valor mínimo para os 300 euros. “Esta proposta é, na perspetiva do consumidor e dos passageiros um retrocesso e uma diminuição na proteção dos seus direitos. Estes valores foram fixados há 21 anos e deveriam ser atualizados à luz da inflação, o que corresponderia a um montante superior a 900 euros, mas, pelo contrário, no caso dos voos mais longos, assistimos a um decréscimo”, critica Pedro Miguel Madaleno, advogado especialista em direitos dos passageiros aéreos.
O representante da AirHelp em Portugal levanta ainda o cartão vermelho à redução dos prazos estabelecidos para a apresentação de reclamações, que atualmente são definidos pela legislação de cada Estado-membro - no caso de Portugal é de três anos.
O Conselho da UE pretende uniformizar o calendário e propõe que os passageiros disponham de seis meses a contar da data da perturbação para apresentar à companhia aérea um pedido de compensação, sendo dado um prazo de 14 dias às empresas para responder.
“É um período claramente curto. É preciso também estabelecer consequências para as companhias aéreas que não cumpram os timings. É um problema que existe atualmente: as operadoras não respondem aos pedidos que recebem. Se o passageiro não reclamar em seis meses perde o direito à indemnização e se a companhia não agir nestes 14 dias qual é a consequência? É importante definir”, sublinha.
Cobrar bagagem de mão. Regras são “absolutamente inaceitáveis”, dizem juristas
Caso as novas regras recebam luz verde do Parlamento Europeu, milhões de passageiros terão de passar a pagar pela bagagem de mão. Apenas será permitido transportar a bordo, de forma gratuita, um item pessoal que caiba debaixo do assento e cujas dimensões não excedam os 40x30x15 cm - prática já adotada por várias companhias aéreas de baixo custo. “É uma proposta extremamente restritiva. As medidas apresentadas não permitem viajar com uma mala para um fim de semana com roupa e calçado. Esta regra vai contra a decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia [que considera que não poderá ser cobrada uma taxa extra se a bagagem cumprir os critérios razoáveis de dimensão e de peso]”, recorda Pedro Miguel Madaleno.
Também para a Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor a alteração é “absolutamente inaceitável”. “A ser aprovado o novo regulamento, diria que será um marco negro na história da proteção dos passageiros e um retrocesso sem precedentes”, afirma a jurista da Deco, Rosário Tereso. A especialista afiança que “foram ultrapassadas linhas vermelhas” nos direitos dos cidadãos que viajam de avião. “Se o caminho for este, os consumidores ficariam mais bem protegidos com o regulamento introduzido há 20 anos”, defende.
Outro ponto que, na opinião dos juristas ouvidos pelo DN, fragiliza os direitos dos passageiros prende-se com o novo enquadramento proposto para as chamadas “circunstâncias extraordinárias”, ou seja, os eventos externos ao controlo da companhia aérea que podem provocar atrasos ou cancelamentos e isentam a transportadora do dever de indemnizar. A lista foi revista e substancialmente alargada, passando de três para 18 fatores classificados nesta categoria.
Companhias aéreas aplaudem revisão e maior flexibilidade
Do lado das companhias aéreas, as propostas de alteração ao Regulamento CE 261/2004 são recebidas com agrado. “As medidas caminham no sentido de um maior equilíbrio e incorporam aquela que foi a experiência dos últimos 20 anos. Estou convicto de que se a análise não for superficial, o processo resultará numa maior clarificação”, elogia António Moura Portugal.
O diretor executivo da RENA, a Associação das Companhias Aéreas em Portugal, considera que a extensão do período mínimo de atraso para quatro horas será benéfica tanto para as transportadoras como para os passageiros e defende ainda que a maioria dessas ocorrências resulta de fatores externos, nomeadamente relacionados com o controlo de tráfego aéreo. “Com base neste facto chegou-se à conclusão de que era importante permitir às companhias aéreas uma maior flexibilidade. Quanto mais tempo derem às companhias, mais fácil será encetar esforços para minimizar a situação dos passageiros”, refere.
O representante sustenta ainda que o atual regulamento pode ser “contraproducente” incitando ao cancelamento de voos. “As regras atuais podem levar a que as transportadoras nem se preocupem em transportar o passageiro para o seu destino. Têm prejuízo por terem de pagar indemnizações e se calhar nem lhes compensa. É a lógica de: já que estou a pagar, então levarei o passageiro se e quando for possível. Perdido por cem, perdido por mil”, argumenta.
Sobre a atualização dos montantes das indemnizações, António Moura Portugal considera que a revisão é irrelevante. “O passageiro não está tão preocupado em saber se lhe pagam 600 euros ou 500 euros, está preocupado em saber quando é que o levam para casa”, afirma.
O responsável da RENA entende que as novas regras deveriam ir mais longe estabelecendo uma proporcionalidade entre o valor das compensações e o preço dos bilhetes. O advogado assegura que as companhias aéreas somam prejuízos por, muitas vezes, terem de indemnizar num montante superior àquele que foi pago pela tarifa.
Por fim, assume-se a favor da nova política de bagagem, destacando a clarificação e uniformização das normas. “O passageiro tem de perceber que há um espaço limitado e um conjunto de restrições em termos de segurança. É importante esta clarificação do que se paga ou não. Se o passageiro não estiver satisfeito, felizmente há opções. Só a fazer o trajeto entre Lisboa e Madrid há, pelo menos, quatro companhias aéreas”, remata.