Inquérito do IPSO revela que 62% dos funcionários com contrato a termo foram informados pelo BCE da renovação do vínculo próximo do fim do contrato ou no último minuto.
Inquérito do IPSO revela que 62% dos funcionários com contrato a termo foram informados pelo BCE da renovação do vínculo próximo do fim do contrato ou no último minuto.D.R.

BCE tem mais de dois mil trabalhadores precários. Vulnerabilidade a stress e assédio sexual aumenta

Banco liderado por Christine Lagarde tem mais de duas mil pessoas em situação laboral precária. Só estagiários são mais de 500. Sindicato alerta que a vulnerabilidade ao assédio sexual aumentou.
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Trabalhar no Banco Central Europeu (BCE) é a ambição de muitos jovens altamente qualificados. Bons salários, compromisso com o projeto europeu, uma carreira num ambiente internacional. Mas a realidade em Frankfurt, cidade alemã onde o organismo liderado por Christine Lagarde está sediado, não é tão prazerosa. Dos 5156 funcionários do BCE, 2109, ou 41%, são temporários, como publicado no relatório e contas de 2023 (o próximo só será divulgado a 28 de abril). Poder-se-á somar ainda cerca de mil pessoas que, embora trabalhem permanentemente no banco central – no helpdesk informático, como seguranças, empregadas de limpeza ou na cantina – são contratados por empresas terceiras (o designado outsourcing), diz Carlos Bowles, representante da Comissão de Trabalhadores e vice-presidente do IPSO, o sindicato do BCE.

A precariedade contratual no banco central, onde coexistem diferentes tipos de contratos laborais, está a elevar os níveis de stress dos funcionários. Um inquérito do IPSO realizado em março último, a que o Diário de Notícias teve acesso em exclusivo, revela que 89% dos trabalhadores com contratos de curta duração (8% do total), sentem-se inseguros ou muito inseguros face seu posto de trabalho, percentagem superior em 45 pontos percentuais (pp) à registada 10 anos antes num questionário realizado pelo BCE. No caso dos profissionais com contratos a termo certo não convertível (6% dos empregados), o sentimento de insegurança atinge 82%, mais 23 pp que há uma década. E entre os que têm contrato a termo convertível (9%) há 32% que se manifestaram inseguros, um aumento de 16 pp. O inquérito teve por base 1425 respostas, num universo que integrou todos os funcionários.

Este ambiente tornou-se uma fonte de stress para os trabalhadores: 98% dos funcionários com contratos a curto prazo admite que a sua situação laboral é motivo de stress; 92% no caso dos contratados a termo certo não convertível; e 63% naqueles que estão em situação de contrato a termo convertível. Entre os trabalhadores temporários, há que destacar a existência de mais de 500 estagiários (10% do total de trabalhadores). Segundo Carlos Bowles, a maioria "trabalha em tarefas permanentes", sendo que "a Direção Geral de Estatística não seria capaz de funcionar sem eles". Estes jovens estão também sujeitos a outras pressões.

De acordo com Bowles, a vulnerabilidade ao assédio sexual no BCE aumentou e é particularmente relevante entre os estagiários. Isso sucede porque, após o estágio de um ano, "é possível obter um contrato de curta duração, que é um 'emprego real' com um 'salário real' do BCE". Esse contrato é "concedido de forma discricionária - não há campanha de recrutamento, o chefe de divisão pode simplesmente dar ou não, não está ligado ao desempenho". O responsável revela que algumas mulheres já o procuraram "para se queixarem que sofreram assédio sexual por parte dos seus chefes, ou expressões mais subtis de interesse sexual que tiveram dificuldade em rejeitar". Este problema "também afeta colegas com contratos temporários e, por vezes, também homens", afirma.

O inquérito de março do IPSO revela ainda que 62% dos funcionários com contrato a termo foram informados pelo BCE da renovação do vínculo próximo do fim do contrato ou no último minuto.

O regime

O BCE tem um regime de contratos de trabalho bastante diferente do que existe, por exemplo, em Portugal. Um processo normal é um jovem ingressar no BCE como estagiário (depois de um processo de candidatura). Após um ano de estágio, pode assinar contratos de curta duração, que não podem exceder 12 meses no total. Posteriormente, passa a nova fase de recrutamento para garantir um contrato a termo não convertível, que pode ser renovado até ao máximo de seis anos, ou um permanente convertível, que permite renovações até ao limite de três anos. O habitual é somar estas duas etapas, ou seja, a jornada pode durar onze anos até à assinatura de um contrato sem termo.

E pode ainda ser maior. O regime contratual do BCE permite que um funcionário possa assinar um contrato de curta duração até um ano e, depois, fazer um cooling-off (período de incompatibilidade) de três meses para poder assinar novo contrato. O mesmo sucede com os contratos não convertíveis, ou seja, atingindo o limite de seis anos, o colaborador tem de se retirar da esfera do BCE por três meses. O relatório do banco central referente a 2023 diz que a taxa de rotatividade é de 1,4%, mas o IPSO estima que ronde os 20% ao ano.

Um funcionário permanente, que pediu anonimato, confirmou ao DN que muitos estagiários "estão dispostos a assinar contratos de curta duração e a sujeitar-se à pausa de três meses para ficarem no BCE". Como afirma, "são situações que se podem prolongar durante anos". É "um processo excessivo, afeta a estabilidade dessas pessoas e também a gestão das equipas", diz. São "seis meses a formar e quando termina o contrato vai embora. Pode voltar ao fim de três meses, mas também pode ir para outra equipa, que tenha orçamento. É questionável a eficiência" deste sistema, considera este quadro do BCE.

A mesma fonte reconhece que o banco "dá oportunidade aos jovens de estagiar, de partilhar os valores europeus", mas defende a necessidade de "um projeto claro de acompanhamento dos estagiários e das oportunidades de longo prazo". Segundo diz, "há equipas com 30% de funcionários com contratos de curta duração, são 50% em algumas". Com alguma ironia, conta que deixou de participar em prendas de despedida, porque mais tarde regressam. E lembra que há os trabalhos regulares que são entregues a terceiros. "Conheci uma pessoa que esteve dez anos a trabalhar para o BCE através de uma empresa externa".

Esta instabilidade também afeta as mulheres que engravidam e os funcionários que ficam doentes. Como explica Bowles, "entram em licença e o contrato expira na sua ausência. No momento da concessão de novo contrato, não podem executar o trabalho, pelo que é entregue a outra pessoa". E sublinha: "Já vi mais do que uma mãe perder o emprego no BCE por estar grávida". Por isso, há muitas mulheres a esperar por um contrato permanente para iniciar a gravidez. "Como temos uma força de trabalho muito qualificada, que já passou muitos anos a estudar, e demora muito tempo a aceder a um contrato permanente, muitas colegas começam a ter conflitos de tempo com o seu 'relógio biológico'", frisa.

Contactado, o BCE confirmou que os contratos de curta duração só podem ser prolongados até uma duração máxima de um ano, sendo que o prazo mínimo são três meses. Segundo fonte oficial, "o BCE pode fazer um novo contrato de curta duração com alguém que já esteve empregado nessas condições, mas não trabalhou para o BCE (período de incompatibilidade) durante pelo menos um terço da duração do seu contrato anterior, incluindo as prorrogações".

Segundo o BCE, os contratos de curta duração são utilizados para satisfazer necessidades temporárias face a ausências de funcionários permanentes, em casos como licença de maternidade e paternidade, licença não remunerada por motivos pessoais ou médica de longa duração, entre outras. "Garantem a utilização eficiente do dinheiro público, ao mesmo tempo que oferecem oportunidades de trabalho valiosas aos cidadãos da área do euro", justifica.

No caso de existir uma vaga para um contrato permanente, o BCE abre uma campanha de recrutamento para todos os cidadãos da União Europeia que cumpram os requisitos de elegibilidade "num procedimento baseado no mérito, a fim de oferecer um contrato convertível a termo certo, sujeito a tornar-se permanente após três ou cinco anos, mediante um desempenho satisfatório e a continuidade da necessidade do negócio", acrescentou o banco liderado por Christine Lagarde. O DN questionou também sobre o sentimento de instabilidade dos trabalhadores temporários, assim como das denúncias de assédio sexual, mas não obteve resposta até ao fecho deste edição.

O outsourcing

Assim como o BCE, também a Comissão Europeia recorre a empresas de outsourcing para a execução de determinados serviços. Não é uma prática ilegal, embora a desresponsabilize dos trabalhadores que executam essas tarefas. A Comissão Europeia confirmou ao DN que, "tal como outras organizações, também recorre a agências de trabalho temporário" para substituir um funcionário, por exemplo, durante a licença de maternidade, e também para responder a picos de trabalho. Conforme avança, essas pessoas "não têm contrato com a Comissão: são contratadas por agências temporárias".

A instituição liderada por Ursula von der Leyen também esclareceu que a duração máxima destas atribuições é definida pela legislação nacional aplicável e pode variar em cada Estado-membro. Em Bruxelas, o limite legal máximo é de seis meses e uma pausa de um mês é obrigatória antes do trabalhador poder assumir outra tarefa. No final de março, a Comissão tinha 251 trabalhadores temporários, o que representa 0,7% do total de funcionários.

Também sob anonimato, uma antiga funcionária da Randstad contou ao DN que exerceu durante 10 anos funções num dos organismos da Comissão Europeia, a maioria dos quais para responder a excessos de trabalho. "Foi uma década dentro do mesmo organismo e trabalhei em três áreas diferentes", conta. O vínculo laboral era com a Randstad, o salário era pago pela empresa de recrutamento, mas o local de trabalho, assim como as funções exercidas, diziam respeito à Comissão.

O contrato mais longo foi de cinco meses, depois foram sucedendo os de curta duração, sempre com a carência de um mês. "Ficamos com projetos de futuro suspensos e mesmo os de curto prazo são difíceis: não se consegue abrir uma conta bancária, há dificuldades em arrendar uma casa...". E sublinha: "Não é forma de tratar os trabalhadores. Temos as mesmas responsabilidades que os funcionários permanentes – até somos mais responsáveis e conscienciosos, porque estamos no fio da navalha –, mas ganhamos metade e não pertencemos à Comissão". 

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