"Investir na justiça administrativa desbloqueia o país e reduz populismos"
Há novo governo, nova ministra da Justiça. É desta que haverá investimento nos tribunais administrativos e fiscais?
Agora que o elefante na sala se tornou finalmente visível para todos, o investimento forte, consistente e direcionado na justiça administrativa é um caminho sem retorno. Felizmente, é essa a intenção do governo e da senhora ministra, e ainda bem. Estamos todos de acordo em que o maior problema da justiça está na jurisdição administrativa, a parte que mais liga o cidadão ao Estado. Os portugueses estão cansados de tantas dificuldades nesta área. Investir na justiça administrativa é fundamental para desbloquear o país e, pelo caminho, reduzir populismos que se alimentam da - pior ainda, ferem a - justiça.
Corremos o risco de ver esse investimento adiado ou interrompido demasiado cedo?
A tradição tem sido discutir o fim do STA e a incorporação dos tribunais administrativos e fiscais no Supremo. Ou seja, passamos o tempo a debater o sexo dos anjos. Sabia que há mais ou menos 20 anos, de acordo com protocolo de Estado, o presidente do STA estava numa posição inferior à dos secretários de Estado? Bem sei que é uma questão formal, mas de certa forma revela uma atitude que se tem traduzido em fraco investimento na justiça administrativa. A vítima está à vista de todos: a relação entre cidadãos e Estado está muito fragilizada e isso prejudica a saúde da democracia.
Que falta à justiça administrativa?
Não há assessores ou bibliotecas para os juízes desta jurisdição, o Conselho Superior da Magistratura Administrativa e Fiscal não tem autonomia financeira, funcionários ou sequer sistema informático. O diagnóstico está feito há muito tempo.
Esse investimento, a acontecer, teria que efeitos na arbitragem do CAAD? Perderia provavelmente processos?
A arbitragem no CAAD apanhou o incêndio desta jurisdição na fase mais descontrolada e tem contribuído para que o problema seja circunscrito. Nos últimos cinco anos, até 2020, os quatro mil processos entrados na arbitragem tributária no CAAD - criado pela mão do Estado - são indissociáveis da redução de cinco mil processos de impugnação judicial pendentes nos tribunais administrativos e fiscais. Que fique claro: o CAAD não concorre com os tribunais tributários. Complementamos esse trabalho quando é necessário e com competências bem definidas e bem circunscritas. O CAAD, ao resolver os processos em quatro ou cinco meses, poupa dinheiro ao Estado sob vários pontos de vista, reduz a brutal fatura com juros - e repare que estamos a falar de milhões de euros todos os anos.
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Digo-lhe o seguinte: não temos fins lucrativos, prescindimos há vários anos de receber apoios públicos, somos financeiramente autossuficientes, os árbitros são remunerados de forma adequada e sem exageros, somos inteiramente regulados e fiscalizados, todas as nossas decisões são públicas e, claro, existiremos enquanto a justiça precisar. O investimento na justiça administrativa e fiscal é absolutamente fundamental, ponto final.
O presidente do sindicato dos magistrados judiciais faz o seguinte raciocínio: quanto mais forte a arbitragem, mais frágil é a justiça dos tribunais do Estado. Concorda?
É inerente ao movimento sindical interpretar a realidade à luz dos interesses dos associados. Não é por acaso que nunca se estabeleceu um verdadeiro pacto para a justiça. Todos os atores do sistema estão demasiado focados na sua árvore, e menos na floresta. É também importante sublinhar que, no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, os principais atores do sistema não são os juízes, são os cidadãos. Com todo o respeito pelo enorme esforço dos juízes e pelo lugar central que ocupam, temos de ter isso sempre presente. Finalmente, a utilidade do CAAD será determinada pelas circunstâncias e pelo governo, não por interpretações ideológicas ou leituras corporativas.
Mas não há dúvida de que a arbitragem está sob suspeita, designadamente a ad hoc...
Penso que na arbitragem ad hoc falta, por exemplo, clarificar a participação de advogados como árbitros - ponto de extrema sensibilidade. A questão dos custos exorbitantes dos processos arbitrais, tema referido pelo Presidente da República na abertura do ano judicial, é outro ponto-chave. No CAAD, os árbitros que tenham a profissão de advogados não podem exercer as funções de árbitro se houver um qualquer processo pendente apresentado pelo escritório de advogados a que pertençam. Ou seja, há um firme cordão sanitário entre advogados e árbitros, e temos reforçado isso mesmo.
A arbitragem ad hoc afeta a reputação da arbitragem do CAAD?
Estou convencido de que a arbitragem ad hoc tem de se tornar transparente e de obedecer a regras claras e sindicáveis. Portugal já não tolera zonas cinzentas. O CAAD partilha com a arbitragem ad hoc a ideia de uma justiça delegada, digamos, pelo Estado. Mas a nossa prática é muito diferente, aliás, é completa e radicalmente diferente da arbitragem ad hoc. O nosso compromisso com a responsabilidade pública que exercemos impõe-nos procedimentos capazes de assegurar transparência, sindicância e fiscalização. Não é obviamente um trabalho acabado, é um edifício que todos os anos procuramos fortalecer, mas que já tem bases sólidas. A arbitragem ad hoc deveria seguir este caminho. Compete, claro, ao legislador decidir o caminho.
O CAAD tem sofrido consequências por causa deste clima mais hostil em relação à arbitragem?
Após termos defendido publicamente que a arbitragem ad hoc deveria sujeitar-se às mesmas regras e procedimentos que se aplicam ao CAAD, o presidente da Associação Portuguesa de Arbitragem resolveu queixar-se desta posição ao anterior presidente da Assembleia da República. A defesa do interesse público tornou imperativo que eu tomasse esta posição. É tão-só um contributo para o debate. Por vezes, o CAAD é atirado para o mesmo saco da arbitragem ad hoc; compete-me mostrar as diferenças e continuar a fortalecer o edifício procedimental e regulamentar de modo a melhorar a nossa prática, e, assim, cumprir o serviço público que desempenhamos.