Indústria sem pedalada para ritmo da procura de bicicletas

Há falta de bicicletas no mercado. O problema já dura há mais de um ano e é consequência do aumento inesperado da procura, muito por causa da pandemia. A indústria cresceu e aumentou a oferta, mas o ritmo da produção não chega para as encomendas. E a escassez de matérias-primas deverá em breve refletir-se nos preços

Todos os dias, João Arriaga vê clientes saírem porta fora de mãos a abanar. Procuram uma bicicleta e, apesar de haver umas dezenas em exposição na loja, o proprietário da Biclas do Rio, em Lisboa, não tem o que vender. "Todos os dias mandamos clientes embora porque não há bicicletas. Não há. Nem conseguimos ter previsão de quando é que elas vão chegar", lamenta este antigo informático que tem esta loja na zona de Belém. Anda a vender mais que nunca, mas a escassez de produto limita o negócio. "Não nos podemos queixar, mas podíamos faturar muito mais", concorda Hugo Jacinto, da Bike Zone de Lisboa. "Se tivesse 50 bicicletas por dia vendia 50 bicicletas por dia", diz.

Há mais de um ano que é assim. A procura por bicicletas aumentou, mas as lojas não têm produto, apesar de Portugal ser o maior produtor de bicicletas da União Europeia. E é assim em todo o mundo. "A escassez é geral", assegura Gil Nadais, secretário-geral da Abimota, Associação Nacional das Indústrias de Duas Rodas, Ferragens, Mobiliário e Afins. "A situação é mais ou menos idêntica em todo o lado. Aliás, nós recebemos aqui clientes a dizer que andam à procura de bicicletas há 15 dias e que não encontram em lado nenhum. Portanto, já correram as lojas todas. Temos até clientes de fora que vêm aqui comprar bicicletas e levam as bicicletas para fora", conta João Arriaga. "Já vendemos para França e para Espanha", concretiza Hugo Jacinto.

Ainda assim, a loja de Lisboa da Bike Zone, registou um crescimento de 85% em 2020 face ao ano anterior em termos de faturação. A Biclas do Rio, que é vendedora exclusiva de uma marca, aponta para um crescimento na ordem dos 30% no ano passado e de cerca de 12% este ano. A Decathlon revela que a procura de artigos desportivos relacionados com as bicicletas representa, em 2021, 18% do volume de negócios.

À conta da pandemia, as pessoas redescobriram o prazer de andar na rua. "Estamos certos de que muitos portugueses não praticavam desporto e começaram a fazê-lo neste último ano", analisa a Decathlon. "Os portugueses - e julgo que a Europa em geral - descobriram a bicicleta, descobriram que há vida fora de casa, que há vida fora dos sofás, fora das redes sociais, descobriram o ar livre. Então, uma das formas de fazer exercício de uma forma solitária, mantendo a distância de segurança, é de facto a bicicleta. Isso fez com que a procura aumentasse exponencialmente. Nenhuma fábrica conseguiu antecipar isto e aumentar a capacidade de produção para fazer face a isto", analisa o proprietário da Biclas do Rio. "São fábricas de elevada tecnologia e não passam de um momento para o outro a produzir o dobro daquilo que produziam anteriormente", explica o responsável da Abimota, garantindo que se aumentou a produção mundial, mas não o necessário para dar resposta às necessidades que foram criadas.

Indústria em crescimento

"Nunca se produziu tanta bicicleta em Portugal como agora", garante Gil Nadais. Em 2019, produziram-se em território nacional 2,7 milhões de bicicletas, tendo o nosso país sido o maior produtor da União Europeia. Ainda não há dados oficiais relativos a 2020, mas "não obstante a pandemia, em que estivemos dois meses parados, aumentámos em 5% as exportações que foram realizadas", antecipa o responsável da Abimota. "Representa um grande esforço do setor, mas também mostra a sua vitalidade e o seu crescimento, em novos componentes e novas unidades de montagem e reforço de empresas de montagem de bicicletas", diz. Só a Decathlon, que se apresenta como o maior produtor de bicicletas em Portugal, produziu em 2020 mais de 1,5 milhões de unidades em território nacional, representando mais de 40% das vendidas na Europa nas lojas da marca.

O problema é que nem Portugal nem a Europa são completamente autónomos na produção de bicicletas. Apesar de termos neste setor "fábricas tecnologicamente muito evoluídas, únicas na Europa e no mundo ou no mundo não asiático", há componentes fabricados exclusivamente na Ásia. Começar essa produção cá exige automação e "a automação exige dinheiro e tempo", alerta Gil Nadais. Seria necessário adaptar os processos, "porque alguns métodos de lá já não são muito bem vistos cá, temos uma produção muito mais ecológica", e com recurso a menos mão de obra, visto que o custo da mão de obra ao nível da Europa tornaria o preço dessas peças incomportável.

Crescimento das elétricas

Em teoria, o mercado nacional tem bicicletas para todos os gostos, idades e bolsas. "Temos bicicletas desde 200 euros até 11 mil", diz João Arriaga, da Biclas do Rio. Mas, nos últimos tempos, a mais procurada é a elétrica. "O mercado das elétricas está a crescer sem sombra de dúvida", concorda Hugo Jacinto. "Estou agora a entregar uma de sete mil euros", diz.

A Abimota acredita que nos próximos anos o grande boom no mercado das bicicletas será nas elétricas. "A bicicleta elétrica está a ganhar muito caminho, no centro da Europa e mesmo em Portugal. Porque o mundo está muito mais plano. Não há subidas. Só há planos e descidas. Porque quando aparece uma subida dá-se um bocadinho mais de motor e continuamos praticamente sem fazer esforço", diz Gil Nadais, alertando que neste tipo de viaturas é sempre preciso pedalar, "o motor só apoia o pedalar".

O setor da mobilidade suave está a dar os primeiros passos, acredita o responsável da Abimota. "Estamos convencidos de que isto vai ser uma grande aposta não só da Europa mas também do mundo e que os espaços urbanos, pela descarbonização, por modos de vida mais saudável, pelo distânciamento social inclusivamente que trouxe a pandemia, vai levar a que haja uma cada vez maior utilização de bicicletas e veículos similares", diz.

Ciclovias e apoios à aquisição

As bicicletas citadinas, sejam elas convencionais ou elétricas, mas sobretudo estas últimas, também estão no top de vendas. E porquê? João Arriaga não tem dúvidas: "Por causa dos apoios da Câmara [de Lisboa] e do Fundo Ambiental e porque as pessoas começaram a fazer mais vida de bicicleta depois do primeiro confinamento". As pessoas perceberam, em muitos casos, que até podiam ir trabalhar de bicicleta, "criaram esse hábito e não deixaram de o ter".

"A mobilidade está a sofrer grandes alterações, a mobilidade nas cidades vai sofrer grandes alterações, os hábitos de vida das pessoas estão a mudar também e tudo isto, que começou antes da pandemia, teve um enorme incremento com a pandemia", constata Gil Nadais, apontando as iniciativas da autarquia lisboeta, nomeadamente a construção de ciclovias e a comparticipação na compra de bicicletas, como um bom exemplo.

"No ano passado para o apoio da Câmara Municipal de Lisboa vendemos entre 33 a 35 bicicletas, de 3 de junho a 30 de novembro", constata o responsável da Biclas do Rio. Uma pequena amostra do universo abrangido pela primeira edição do programa de apoio à aquisição de bicicletas da autarquia, que tinha uma verba de três milhões de euros e que, segundo dados apresentados no site oficial, cobriu 90% das candidaturas, ou seja, 3.304, o que se traduziu na comparticipação do valor de compra de 2.157 bicicletas convencionais, 1.136 elétricas, uma adaptada elétrica e 11 elétricas de carga. Está atualmente a decorrer a segunda edição do programa, com uma dotação de 340 mil euros.

A este apoio, em alguns casos, pode juntar-se um outro, de âmbito nacional, o Fundo Ambiental, cujas verbas para este ano já atingiram o limite no que às bicicletas diz respeito. "Isso obviamente veio ajudar, porque há casos em que se podem juntar os dois subsídios. Os dois juntos podem chegar a 700 euros se for uma bicicleta elétrica e já é uma ajuda considerável", avalia João Arriaga.

Segunda mão e aluguer são alternativas

Face à escassez de bicicletas, registam-se "fenómenos" curiosos. "É o cliente que chega aqui com uma bicicleta muito ferrugenta, que está no sotão há 15 anos, e diz que a quer pôr a trabalhar para dar umas voltinhas", ri-se o proprietário da Biclas do Rio. Nem sempre compensa: "Há casos em que dizemos que não vale a pena estar a pagar 70, 80 ou 90 euros porque a bicicleta não vale isso". Mas a oficina tem sido uma mais-valia, concorda Hugo Jacinto, da Bike Zone.

Na Decathlon, os serviços de aluguer e de venda em segunda mão são alternativas. "O ciclismo foi o desporto que mais cresceu no aluguer", admite a marca, cuja estratégia responde às necessidades dos clientes que não são praticantes habituais. "Com o aluguer, damos sentido aos clientes que pretendem apenas praticar nas férias e gostam de alugar uma prancha para usar em família por exemplo. Em resumo, o aluguer veio dar resposta a uma parte dos nossos clientes que nunca comprariam uma bicicleta mas até praticam uma parte do ano", acrescenta.

Já o programa Segunda Vida veio dar resposta, através do Trocathlon, à procura que hoje existe de bicicletas usadas. "Não só na vertente de quem compra mas sobretudo de quem tem para vender e pretende um parceiro para o ajudar", garante a Decathlon, que trata de todo o processo de venda e transação.

No OLX as bicicletas foram o segundo item mais pesquisado em maio. "A compra de bicicletas tende a ser uma prática sazonal e a procura aumenta sempre no segundo e terceiro trimestres do ano. Por exemplo, no ano passado, em maio, em plena pandemia, registámos um forte aumento na procura por bicicletas sobretudo porque as pessoas queriam manter-se ativas e praticar exercício físico ao ar livre", diz Alexandra Santos, Marketing Lead da plataforma de compra e venda online. Já este ano, "percebemos um aumento de 60% na procura por bicicletas em março, quando comparado ao mês anterior", avança. Contas feitas, no ano passado, registou-se um aumento médio de 12% da procura de bicicletas no OLX. Este ano houve quase 60% de aumento da procura até maio, com a região de Lisboa na frente.

Tal como a procura, também a oferta é influenciada pela sazonalidade, segundo a responsável de marketing do OLX. "Notámos um aumento nos novos anúncios este ano, após a pandemia, e imediatamente antes do início do período em que o clima começa a melhorar na ordem dos 10%", constata Alexandra Santos, especificando que março foi o mês em que se verificou maior oferta de bicicletas na plataforma, mais 10% face ao mês anterior.

Prevê-se aumento dos preços

A tendência de aumento da procura é para manter, acredita-se. Mas também a escassez de oferta. "Vai continuar na mesma. Só se prevê uma estabilização em 2023", diz Hugo Jacinto, da Bike Zone. "Não acredito que as fábricas - não as das bicicletas, as dos componentes em si - consigam de um ano para o outro recuperar tudo o que está para trás. 2022 vai ser um ano complicado", concorda João Arriaga, da Biclas do Rio.

O representante da indústria não consegue prever quando terminará este problema de escassez. "E isto não tem só a ver com bicicletas. A situação no que se refere a matérias primas está muito instável. Posso dizer que neste momento o alumínio subiu mais de 50%, há escassez, há escassez de polímeros, portanto matérias plásticas, há escassez de aços, os preços estão a disparar. Há aqui uma escassez que ninguém sabe explicar muito bem e que faz retrair algum crescimento que possa haver. Portanto, dizer que tudo vai estar de acordo com as necessidades do mercado daqui a um ano é fazer uma futurologia que eu penso que não é possível de forma alguma arriscar neste momento", explica Gil Nadais, responsável da Abimota.

Uma coisa parece certa: os preços deverão aumentar. "A indústria já está a sentir quando compra matérias primas. Há matérias primas que duplicaram o preço. Os consumidores ainda não estão a sentir mas vão lá chegar. E isto não é só no setor das duas rodas. É geral", alerta.

sofia.fonseca@vdigital.pt

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