Como Setúbal passou de terra de pescadores a destino turístico

Rodeada pelo mar e pela Serra da Arrábida, a Península de Setúbal transformou-se nas últimas décadas e tem hoje uma oferta rica em gastronomia, vinhos, cultura e património. "Não há turismo sem reabilitar a cidade", afirma a autarca Maria das Dores Meira.
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Terra-Natal de Manuel Maria Barbosa du Bocage, poeta rebelde que marcou a história da literatura portuguesa, Setúbal está desde sempre ligada à produção cultural e foi, desde cedo, testemunha de importantes acontecimentos históricos. A modéstia e pobreza de outros tempos, quando a pesca constituía a principal atividade económica do concelho, deram lugar, nas últimas décadas, a uma cidade dinâmica que se desenvolveu ao ritmo das indústrias que ali se instalaram. Hoje, a presença da produção industrial apoia o crescimento económico local através de projetos com janela aberta para o mundo. "Temos a Navigator com uma das maiores fábricas de pasta de papel do mundo ou a LISNAVE como a maior reparadora de barcos da Europa", sublinhou a presidente da autarquia, Maria das Dores Meira, durante a mesa-redonda "Conversas sobre Setúbal", emitida na TSF.

Líder do executivo municipal desde 2006, depois de quatro anos como vereadora, a responsável aponta a Península da Mitrena como epicentro económico com um contributo significativo para as contas da região. "Ali está localizado cerca de 2% do PIB, um dos maiores PIB nacionais", afirma. É uma área do concelho com um elevado potencial de desenvolvimento, em parte graças ao Porto de Setúbal. Não é, porém, a intensa atividade industrial que faz deste um município cada vez mais procurado por turistas, nacionais e estrangeiros, que ajudaram à criação de novos negócios. "Não há turismo sem reabilitar a cidade", acredita. O centro histórico cuidado e preservado, pintado por pequenos prédios tradicionais e zonas pedonais, é resultado desse esforço contínuo de reabilitação urbana que se mantém. "Não era uma cidade atrativa", recorda, detalhando que "era suja, cinzenta, desorganizada e cheia de barracões que tinham de servir as 140 fábricas de conservas que existiam em Setúbal".

Apesar do desaparecimento gradual destes complexos, a tradição piscatória é ainda visível e, aliás, um dos motivos que atrai visitantes de todos os pontos do globo. O Mercado do Livramento será, porventura, um dos espaços mais icónicos da pequena cidade, tendo sido, inclusive, distinguido pelo jornal norte-americano USA Today como um dos melhores do mundo - pela arquitetura do edifício do século XIX, mas também pela variada oferta de peixe fresco e pelo ambiente tradicional que ainda se faz sentir. "Temos ali 70 bancas de peixe", destaca Maria das Dores Meira. Em terra de peixe, e depois de um salto ao mercado, a paragem num dos muitos restaurantes da cidade é obrigatória para qualquer apreciador de iguarias, como o famoso choco frito, a sardinha, a cavala ou as ostras. Para acompanhar, não pode faltar à mesa vinho de um de dezenas de produtores de vinhos da Península de Setúbal.

Por outro lado, a beleza natural da Serra da Arrábida, famosa pelas paisagens e praias intimistas outrora quase secretas, é um dos principais argumentos turísticos da região e afirma-se como candidata a património da UNESCO. O Convento de Jesus - onde, no século XVI, foi ratificado o Tratado de Tordesilhas - ou o Forte de São Filipe são exemplos da estratégia de preservação do património local que tem vindo a ser seguida. Através da candidatura a fundos comunitários, o município conseguiu reabilitar o convento, cuja gestão foi transferida da Direção Geral do Património Cultural (DGPC) para a câmara.

Integrado na Área Metropolitana de Lisboa, o concelho beneficiou da medida que pretendeu harmonizar a oferta de transportes públicos com preços mais acessíveis aos munícipes - muitos deles trabalhadores em Lisboa, por exemplo -, que a Câmara Municipal complementou com a aposta na construção de terminais intermodais para melhorar a mobilidade dentro e fora do município. O Terminal Interface de Setúbal, que prevê um investimento superior a quatro milhões de euros com recurso a fundos europeus, pretende fazer a "ligação entre a ferrovia, a rodovia e o transporte fluvial", algo que André Martins considera "determinante" para a região. A promoção da utilização de transportes não poluentes, como as bicicletas, tem sido também uma prioridade com a construção de "uma rede significativa de ciclovias na cidade que é para continuar a evoluir", explica o presidente da Assembleia Municipal. A ideia é reduzir a poluição ambiental e alargar, progressivamente, estas vias verdes a todo o concelho.

Apesar dos benefícios da integração na Área Metropolitana de Lisboa, com um elevado índice de desenvolvimento, existem também desafios ao nível do investimento. "Não tem havido investimento público nacional significativo na Península de Setúbal", lamenta André Martins, que considera injusta a falta de acesso de Setúbal às majorações atribuídas pelos programas comunitários um obstáculo. "Pensamos que é necessário que a região seja considerada uma unidade estatística autónoma para que haja uma avaliação da sua situação [real]", defende.

Embora reconheça os efeitos negativos da crise sanitária no concelho, nomeadamente ao nível do desemprego, Maria das Dores Meira desvaloriza e garante que "neste momento [a situação] está outra vez a regularizar-se com a retoma do comércio local" e das grandes empresas. Ainda assim, aponta, o executivo investiu cerca de 5,5 milhões de euros no apoio durante a pandemia e critica o abandono pelo Estado central. "Da administração central, a única coisa que recebemos foram inquéritos para responder, não obstante a promessa do Governo de que viriam para as câmaras municipais subsídios para ajudar", refere.

As palavras são de Henrique Soares, presidente da Comissão Vitivinícola Regional da Península de Setúbal, que, em entrevista ao DN, atribui o mérito da evolução deste setor aos produtores.

Conhecida pela qualidade do moscatel, a região de vinhos da Península de Setúbal tem conquistado espaço nos mercados nacional e internacional. Que importância tem este setor?

O cluster da vinha e do vinho é, do ponto de vista económico, a mais importante atividade do setor primário e secundário no distrito de Setúbal. É um setor que dá emprego a muita gente, cria muita riqueza e que tem vindo a progredir imenso nos últimos 20 anos. O essencial desse mérito, desse esforço de investimento e da valorização das uvas e dos vinhos deve-se, naturalmente, aos vitivinicultores, à produção de uvas de excecional qualidade e à sua transformação em vinhos que estão muito adaptados não só ao gosto dos consumidores portugueses, como ao gosto dos consumidores dos principais mercados de destino de exportação de vinhos portugueses que são, também, os nossos principais mercados.

Este aumento da perceção da qualidade dos produtos tem potenciado o crescimento?

Isso tem feito com que o nosso progresso no mercado nacional e no mercado de exportação tenha sido, do ponto de vista relativo, provavelmente o mais brilhante de todas as regiões vitivinícolas portuguesas. Temos crescido ano após ano e é isso que traduz, hoje em dia, um número muito eloquente do ponto de vista da certificação do produto com as nossas duas denominações de origem, Setúbal e Palmela, Moscatel de Setúbal, Moscatel Roxo de Setúbal e também dos vinhos regionais da Península de Setúbal, que é a nossa indicação geográfica.

Hoje em dia comercializamos 80% da produção regional com estas duas denominações de origem e esta indicação geográfica, o que traduz sempre um acréscimo de valor no preço médio dos vinhos, da sua notoriedade e, portanto, no retorno económico para as adegas e para os produtores das uvas.

Além das vendas do vinho e moscatel, os produtores têm conseguido desenvolver as atividades de enoturismo?

Sim, o enoturismo tem crescido fruto desse desenvolvimento turístico em Lisboa que se estendeu a toda a Área Metropolitana de Lisboa e que também chegou aqui à península, com o epicentro em Setúbal, em Sesimbra e em Palmela. Foi mais um importante mercado que ganhámos regionalmente, que já tinha alguma implantação, mas que foi claramente acrescida e se traduziu em vendas por via do turismo. Esse foi também o maior impacto que tivemos em consequência da pandemia.

Como é que olha para o período de recuperação pós-covid? Que desafios se colocam?

Relativamente a esta saída [da pandemia] que todos esperamos que aconteça já este ano e que se consolide para o ano, o que esperamos é retomar o percurso absolutamente excecional que a região vinha fazendo. Voltar a recuperar a posição que tínhamos no canal Horeca, com a restauração e a hotelaria, um importante canal de vendas que, entretanto, se perdeu. Prosseguir a afirmação nos nossos principais mercados de destino de exportação é o grande desígnio dos próximos anos, procurando continuar a aumentar o nosso preço médio e a valorizar melhor os vinhos para também valorizar as uvas e a sua qualidade.

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