Morreu Rogério "Pipi", lenda do Benfica pré-Eusébio

Rogério Lantres de Carvalho, mais conhecido por "Pipi" devido à boa aparência, tinha completado 97 anos neste sábado. Foi um dos heróis da primeira conquista internacional do Benfica, a Taça Latina, em 1950.
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Rogério ainda era do tempo em que os jogadores trabalhavam. Do tempo em que ainda não havia imagens para registar e eternizar o momento. Era o jogador do Benfica mais antigo até partir este domingo aos 97 anos. Deixou um legado de golos e boas recordações. Em treze anos de águia ao peito (1942-1954), marcou 205 golos em 310 jogos pelas águias, venceu três campeonatos e seis taças. Vestiu ainda a camisola do Botafogo (Brasil) e do Oriental, além da camisola das quinas por 15 vezes (dois golos). Foi a primeira grande estrela dos encarnados antes de Eusébio.

Rogério Lantres de Carvalho era um rapaz franzino, de tal maneira que quando chegou ao Benfica, Gaspar Pinto o batizou de "agulha". A alcunha não pegou e seria Francisco Albino a dar-lhe o nome porque ficará conhecido para a eternidade, Pipi - como eram conhecidos os rapazes da moda, que vestiam casacos cintados, colarinhos grandes, golas altas. "Eu era um jogador muito elegante, gostava de vestir bem e, um dia, um alfaiate famoso convidou-me a posar, ofereceu-me um fato de gala e um sobretudo e chamou um fotógrafo de arte. Fui, para espanto meu, primeira página da revista Flama, como se fosse um artista de... Hollywood. E como estava todo pipi", contou numa entrevista. Assim era Rogério, o Pipi, o goleador elegante e aprumado que tinha quase tantos anos como o Benfica.

O início pelo mão de Peyroteo

Nasceu em Chelas, a 7 de dezembro de 1922. O pai havia sido fundador do Chelas (mais tarde Oriental) e por isso tanto ele como o irmão, França, deram os primeiros toque na bola no Chelas. Os tempos eram outros e só fez a quarta classe. Depois começou a trabalhar no Grémio das Carnes, onde também trabalhava Fernando Peyroteo. Foi o ex-leão que, sabendo que jogava no Chelas, lhe perguntou se não queria jogar num jogo de solteiros contra casados da fábrica.

Rogério mostrou algum talento com a bola nos pés e encantou Peyroteo de tal forma que ele o quis levar para o Sporting, segundo contou o benfiquista numa entrevista. Ainda foi treinar ao Sporting, mas ele "preferia os vermelhos" e recusou "a proposta de 25 notas" para jogar pelos leões. Sabendo disso o Benfica ofereceu-lhe "um conto de réis" e assim se tornou um jogador encarnado.

Estreou-se num jogo frente ao Belenenses, nas Salésias, como extremo-direito. Não gostava. Só mais tarde passou para o lado esquerdo do ataque e assim nasceu um goleador de eleição em part-time, visto que ele jogava e trabalhava. A primeira época no Benfica foi inesquecível ao lado de alguns dos seus ídolos, como Albino, Gaspar Pinto e Francisco Ferreira. Conquistou logo a primeira e histórica dobradinha, vencendo o campeonato e a Taça de Portugal na época 42-43.

Seguiu-se um longo período de abstinência de títulos para os encarnados por culpa de um titulo do Belenenses e três consecutivos do Sporting. As hostes benfiquistas ficaram perturbadas e deram origem a uma verdadeira revolução para os lados da Luz. Pipi decidiu então abandonar o clube e ir para o Botafogo, a troco de 350 contos. Corria o ano de 1947. Foi o primeiro futebolista português a ser contratado para jogar no Brasil: "Recebia cerca de 18 contos por mês. Pude mesmo comprar um automóvel, no regresso, que era, então, o sonho de qualquer jogador de futebol." Não se deu bem. Já casado e à espera de um filho quis que ele nascesse em Portugal e como não queria deixar a mulher sozinha voltou a Lisboa. Oito meses depois estava de regresso ao Benfica por imposição da DGD, apesar do interesse do FC Porto.

Na época de 1949-50 foi campeão nacional e conquistou a Taça Latina num jogo com o Bordéus (2-1, após dois prolongamentos). "Quando o jogo acabou ficou tudo... louco. Só sei que entre empurrões, voando sobre os ombros dos benfiquistas em grande histeria, cheguei à tribuna. O presidente da República pôs-me a taça nas mãos. Ainda hoje não consigo descrever o que senti", contou, sem saber como foi ele a receber a taça e não o capitão (Moreira).

Otto Glória abriu-lhe a porta de saída

Essa época ficaria ainda marcada por um jogo particular... frente ao Torino (Itália) , que acabaria em tragédia. Rogério foi o autor do último golo do Benfica na vitória por 4-3 sobre os italianos a 3 de maio de 1949. No regresso a casa o avião da Alitalia embateu numa torre da Basílica de Superga, e caiu matando todos os tripulantes.

Pouco depois abandonou o emprego no Grémio das Carnes para se dedicar, exclusivamente, ao futebol, mas acabou por ir trabalhar para a Auto Boavista - emprego que manteria pela vida fora. Quando, em 1954, Otto Glória chegou ao Benfica e recusou jogadores empregados, ele, já com 32 anos, achou que "desempregar-se seria loucura" e acabou por sair magoado. "Um dia o presidente chegou lá e disse que íamos ser o primeiro clube profissional no País e que íamos ser pagos e treinar todos os dias. Eu perguntei quanto é que estavam a pensar pagar e quando ele disse dois contos e meio de reis disse que me ia embora, então eu ganhava 10 a 15 contos na carne e queriam que me despedisse para jogar futebol por menos? Obriguei o Benfica a fazer-me uma festa de despedida", contou ao DN em 2011.

Saiu da Luz e foi para o Oriental, onde o irmão, Armínio França, era diretor. Não quis ordenado, mas impôs como condição de não jogar a extremo e de só treinar quando lhe apetecesse. Foi campeão nacional da II Divisão. Depois, despediu-se do futebol e dedicou-se à venda de automóveis. Terminou a carreira com 217 golos em 355 jogos.

O rei da Taça de Portugal

Ainda hoje Rogério é o rei dos goleadores da final da Taça de Portugal, prova em que marcou 51 golos em 47 jogos. Esteve em cinco finais, venceu todas e apontou 15 golos. Mas há uma que lhe ficou na memória. "Impressionante foi aquela final em que o Benfica ganhou ao Sporting por 5-4 e eu marquei três golos, o último dos quais a 15 segundos do fim", contou em tempos Rogério Pipi que desmaiar após marcar o golo que valeu a Taça.

Mas há outra final, a de 1944, no Campo das Salésias, que o Benfica venceu o Estoril por 8-0, com cinco golos de "Pipi". Histórica seria, também, a final da Taça de 1953, em que o Benfica bateu o FC Porto por 5-0. Foi Rogério quem abriu o marcador e recebeu por isso um relógio de ouro. Não o quis. Ofereceu-o à direção do Benfica, para que o leiloasse para ajudar a financiar as obras do antigo Estádio da Luz.

A "profunda tristeza" de Luís Filipe Vieira

No site oficial dos encarnados, o presidente Luís Filipe Vieira expressou a sua "profunda tristeza" pelo falecimento de "um dos maiores símbolos" do Benfica. "Uma das glórias que ficarão para sempre na nossa história e na memória de quem, durante as décadas de 1940 e 1950, teve o privilégio de assistir às exibições de sonho daquele que é um dos nossos maiores goleadores de sempre", acrescentou o presidente do Benfica.

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