Guor Maker O atleta Olímpico que foi sequestrado e feito escravo aos oito anos

Maratonista teve de fugir do Sudão mergulhado numa guerra civil. 28 Pessoas da família foram mortas, incluindo oito irmãos. Pais enviaram-no para casa de um tio, pelo caminho foi sequestrado e feito escravo com oito anos. Seis anos depois consegui fugir e chegar aos EUA como refugiado.
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Os pés que hoje correm livres e contentes nas montanhas rochosas do Colorado, nos EUA, na tentativa de garantir um lugar em Tóquio2021 já tiveram de correr pela vida. Há cerca de trinta anos, Guor Maker viu o Sudão passar por uma guerra civil, que vitimou 28 pessoas da sua família. Ele sobreviveu, mas houve alturas em que "preferia ter morrido". Foi sequestrado e escravizado várias vezes antes de chegar como refugiado aos Estados Unidos ainda adolescente. Hoje é membro da Força Aérea do país que o acolheu em 2001. A história de Guor virou mesmo um filme. Runner foi lançado online na semana de véspera do Dia Mundial do Refugiado (20 de junho), depois de receber vários prémios em festivais e servir de inspiração aos quase 71 milhões de refugiados espalhados pelo mundo, segundo a ONU.

Guor nasceu a 15 de abril de 1984 em Panrieng County (Unity) durante a guerra civil sudanesa, um conflito que durou décadas e que acabou por dividir o país em dois. Pertencia à tribo Dinka, a mais orgulhosa e rica do país mais extenso de África, que foi perseguida durante décadas. Durante a guerra, oito de seus nove irmãos morreram depois de a sua aldeia ter sido queimada. Para o salvar os pais enviaram-no para morar com um de seus tios em Cartum. Ele tinha oito anos e demorou três anos a chegar ao destino. Pelo caminho foi sequestrado por um pastor que o forçou a roubar gado. Mais tarde foi levado para servir numa casa. Em vez de ordenado recebia maus tratos. Dormia amarrado a uma parede num pequeno quarto. Nessa altura passava de dono em dono. Foi depois capturado por um grupo da tribo Messiria, antes de fugir do acampamento cercado por guardas armados. Um ano depois um soldado encontrou-o a vaguear sozinho na rua e ofereceu-se para o acolher e colocar numa escola. Em vez disso, Maker foi forçado a trabalhar como escravo de novo - uma realidade vivida atualmente por 15 mil crianças sudanesas, segundo a UNICEF.

Seis anos depois conseguiu fugir e chegar a casa dos tios, mas o calvário continuou. Um dia os soldados entraram em casa de rompante e deram-lhe uma coronhada com a arma que o deixou inconsciente. Quando acordou percebeu que tinha a mandíbula partida: "A minha boca ficou fechada por dois meses e eu só podia consumir líquidos. Fugimos para o Egito depois disso e as Nações Unidas trataram meus ferimentos."

Food (comida) foi a primeira palavra em inglês que aprendeu a ver desenhos animados

Aos 16 anos e após dois anos de burocracia, a preencher papéis no Serviços de Cidadania e Imigração dos EUA no Egito, Maker e a família do tio que o acolheu, receberam finalmente permissão para entrar na América. Foi em Concord, New Hampshire que o sonho ganhou asas. Aprendeu inglês a ver desenhos animados no centro de refugiados e a primeira palavra que aprendeu foi food (comida).

As qualidades atléticas foram imediatamente detetadas. Desafiado a correr no colégio, Guor negou-se a participar em provas de atletismo por lhe lembrarem os anos mais traumáticos de sua infância, em que teve de correr para fugir de uma vida de escravidão. Mas como queria entrar na universidade acabou por aceder, depois de ganhar uma prova e receber uma bolsa para estudar química na Iowa State University. Quando chegou à universidade, em 2005, colocou um papel na parede com um objetivo: chegar a Londres 2012. "Pensei e porque não eu?", confessou o atleta, que um dia se meteu no carro para ir correr no Arizona e a meio do caminho soube que o Sudão do Sul tinha acabado de proclamar a independência, após 50 anos de guerra civil: "Fui a festejar o caminho todo. Foi um dia especial."

E num ápice os Jogos Olímpicos estavam no horizonte do jovem maratonista. Depois de um ano de treino, em 2011, conseguiu os mínimos olímpicos. Mas isso tornou-se num problema. Com estatuto de refugiado e sem ter ainda nacionalidade norte-americana, Guor recusou participar nos Jogos de Londres em 2012, pelo Sudão do Sul, que um ano antes tinha proclamado independência. O trauma estava demasiado vivo para ele voltar a ser sudanês. O caso sensibilizou os senadores estaduais de New Hampshire e Arizona, que levaram o caso ao Senado em Washington DC e pressionaram o Comité Olímpico Internacional a aceitar que ele participasse como atleta independente, sob a bandeira olímpica. O que acabou por acontecer, mas os papéis demoraram tanto que ele não chegou a tempo da cerimónia de abertura. Foi 47.º na maratona, com o tempo de 2:19:32. Ficou longe da melhor marca 2:12:55, mas isso não era o mais importante...

Quatro anos depois aceitou voltar a competir pelo país de origem, que o nomeou porta-estandarte no Rio2016. "Eu nunca esquecerei esse momento em toda a minha vida", admitiu Guor em lágrimas, lembrando que o país parou para ver a cerimónia de abertura dos Jogos em liberdade, algo que nem em sonhos ele se tinha atrevido a imaginar.

Formado em química e militar na Força Aérea, voltou ao Sudão para ver os pais

A vida começava finalmente a sorrir-lhe quando uma lesão o obrigou a deixar as longas distâncias. Agora tenta apurar-se para os 5000 ou 10 000 metros em Tóquio2021 como cidadão americano. Maker é formado em química e membro do Programa de Atletas de Elite da Força Aérea dos EUA. Juntar-se ao exército era sua maneira de agradecê-los pelas oportunidades que lhe haviam dado nos Estados Unidos: "Vim como refugiado, de mãos vazias, sem saber inglês ... Eles deram-me apoio a ajudaram a ir para a faculdade".

Maker tem agora 36 anos e vive em Colorado Springs. Em 2013 voltou ao sul do Sudão para encontrar os pais após quase duas décadas de separação. O emocionante momento ficou registado no filme. Não se conheceram. "Contar a história da minha vida e da minha jornada... sentar-me perante uma câmera e tentar explicar o que aconteceu foi a coisa mais difícil. Quando os media me fazem perguntas sobre o meu passado, isso deita-me a abaixo. Por isso tento evitar a todo custo falar recordar o passado. Eu acho que o documentário já fez o suficiente", confessou o sudanês.

Agora sonha criar uma fundação para construir um hospital e melhorar o abastecimento de água, a educação e o desporto na sua região natal: "Acredito que o desporto pode ajudar-nos a unir como país - é algo pelo qual sou muito apaixonado."

Foi a recusa do atleta representar o Sudão do Sul nos Jogos Olímpico de Londres 2012 que despertou o interesse do realizador Bill Gallagher, sediado em Pamplona (Espanha). "Quem recusa os Jogos Olímpicos?", questionou o realizador, que ficou imediatamente fascinado com a história do maratonista, que na altura se chamava Guor Marial. Mas não foi fácil acompanhá-lo. Um dia resolveram filmar uma corrida em Ottawa. Guor foi seguido por um operador de imagem numa bicicleta... que não teve pedalada para o acompanhar e por isso o tempo de prova não ficou registado.

O documentário tem como missão "remover os estereótipos negativos, que as pessoas atribuem aos refugiados", segundo o atleta, que pretende "mostrar ao mundo que os refugiados podem contribuir para o local em que são bem-vindos e fazer parte da comunidade". E a mensagem parece estar a passar. Runner já ganhou vários prémios em festivais, incluindo no Woods Woods Film Festival, no Festival Internacional de Cinema de Nápoles, no BreckFilmFest, no Fairhope Film Festival. Agora foi lançado online no Freep Film Festival - cinemas estão fechados devido à pandemia do covid-19 - numa iniciativa Detroit Free Press / TCF Bank Marathon e será também apresentado em 120 festivais, teatros, corridas e grupos de defesa de refugiados um pouco por toda a América. Parte das receitas reverte para centros de refugiados, porque Guor Marker não esquece quem foi...

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