A patinadora, o técnico, a demissão. Escândalo de abusos sexuais abala França

Primeira-dama Brigitte Macron recebe atleta vítima de violações enquanto menor no Palácio do Eliseu. A confissão em livro da patinadora Sarah Abitbol já provocou uma demissão entre os que alegadamente encobriram os abusos sexuais.
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"Foi a primeira vez que um homem me tocou." Quem fez esta afirmação foi a antiga patinadora Sarah Abitbol, mas não se trata de uma história sobre um amor de juventude que fica na memória, antes de comportamento impróprio por parte do seu treinador. Abitbol tem agora 44 anos e tudo se passou quando ainda era menor: "Ele começou a fazer coisas horríveis que levaram ao abuso sexual - fui violada aos 15 anos."

As reações ao assédio sexual que Sarah Abitbol revelou num livro e que colocam o técnico Gilles Beyer como violador da patinadora entre os 15 e os 17 anos fez que o Ministério Público francês anunciasse imediatamente que iria apurar o que se tinha passado e também "tentar identificar todas as outras vítimas que sofreram ofensas da mesma natureza".

Beyer, que era diretor das equipas francesas e técnico nacional, terá alegadamente abusado sexualmente da patinadora e já foi investigado por duas vezes desde o início dos anos 2000.

Após o segundo inquérito, o Beyer viu o seu contrato como consultor técnico rescindido, no entanto nunca se afastou totalmente do cargo e manteve-se na federação de patinagem, cujo presidente, Didier Gailhaguet, recusou comentar o tema no seguimento das revelações de Sarah Abitbol.

Não foram precisos mais do que uns dias para que o presidente da Federação de Esqui francesa, Didier Gailhaguet, apresentasse a sua demissão após o escândalo ter rebentado, na passada terça-feira. O que aconteceu neste sábado, com a justificação de que era preciso resignar ao seu cargo em função do "espírito de conciliação". Assim sendo, diz, "tomei a decisão de resignar com dignidade mas não amargura" após uma reunião hoje em Paris para analisar o caso.

Gailhaguet tem 66 anos e há duas décadas que dirige este desporto em França, mas as críticas aos atos do treinador Gilles Beyer levaram-no a tomar a decisão. No entanto, Gailhaguet recusou inicialmente admitir a sua saída após vários contactos da ministra do Desporto, Roxana Maracineanu, e garantiu na quarta-feira que nunca "protegido de qualquer forma Gilles Beyer". Foi mais longe ao afirmar que só soube de "90% destes incidentes há dez dias através da imprensa e de um livro".

O mesmo responsável fez questão de denunciar à comunicação social que a sua demissão também se devia à falta de apoio por parte do ministério: "A ditadura ministerial e em particular o tratamento vergonhoso e a retirada de qualquer apoio" da federação" que fez com que a ministra Maracineanu desejasse a sua demissão como "a primeira parte " do processo.

A ministra já disse que "devemos [esta investigação] às vítimas" e que iria até às últimas consequências.

Abitbol já comentou a primeira demissão deste escândalo à revista L'Obs e não foi meiga: "Toda a federação e os seus amigos devem ser objeto de uma limpeza. Os que apoiaram (o treinador) o que ele fazia ainda lá estão."

Recorde-se que Abitbol já fizera após a sua retirada da competição várias denúncias contra Beyer ao então ministro do Desporto, Jean-François Lamour, que alegadamente respondeu: "Sim, temos um arquivo sobre ele, mas vamos fechar os olhos." O ex-ministro disse ao L'Obs que não se lembrava dessa conversa.

No início da semana, Didier Gailhaguet já aceitara a existência de "erros", no entanto e apesar de a ministra do Desporto, Roxana Maracineanu ter criticado a sua conduta, esta aceitou que o treinador Beyer permanecesse próximo da federação de patinagem.

Entretanto, o advogado de Beyer disse à AFP que o seu cliente estava preparado para ser ouvido pelos responsáveis da investigação sobre os abusos sexuais às patinadoras mas não iria fazer qualquer comentário à imprensa. Beyer já admitira na semana passada ter tido relações "íntimas" e "inadequadas" com Sarah Abitbol e afirmou à AFP estar "sinceramente arrependido". Beyer manteve cargos executivos na federação até 2018.

A investigação é conhecida uma semana depois de o treinador de ténis francês Andrew Geddes ter sido condenando a 18 anos de prisão por violar quatro jogadores menores de idade.

A ex-atleta Sarah Abitbol foi dez vezes campeã e ganhou a medalha de bronze no Campeonato Mundial de 2000.

Uma biografia polémica

A autobiografia de Sarah Abitbol foi publicada no dia 30 de janeiro e entre as muitas revelações estava a de ter sido violada por Beyer repetidas vezes entre 1990 e 1992, entre os 15 e 17 anos. Beyer foi logo em seguida acusado pela mãe da patinadora Helene Godard que, ao jornal L'Equipe, também responsabilizou o treinador Jean-Roland Racle de abuso sexual da sua filha menor, além de este ter feito chantagem entre 2017 e 2018 para voltar a treinar Godard.

As acusações a Beyer e a outros treinadores não se ficam por aqui, pois além de Sarah Abitbol e Helene Godard, mais duas patinadoras apresentaram acusações semelhantes contra Beyer e outros dois treinadores. A que se seguiram novas alegações de abuso sexual por parte de menores de idade nas modalidades de natação e ténis.

As acusações da Abitbol surgiram na passada quarta-feira, dia em que o diário desportivo L'Equipe publicou uma longa investigação sobre abusos sexuais na patinagem, natação e ténis em França. Sob o título "O Fim da Omerta" [código de silêncio imposto], o L'Equipe apoiava-se nas histórias de três outras patinadoras que acusam Beyer e outros dois treinadores, Jean-Roland Racle e Michel Lotz, de abuso e violação quando eram menores. Os treinadores negaram as alegações ou recusaram comentar.

A autobiografia de Sarah Abitbol nunca refere o nome de Gilles Beyer mas sim o de um "Senhor O" porque os crimes alegadamente cometidos já perscreveram . O livro resulta de uma grande entrevista com a jornalista da revista L'Obs, Emmanuelle Anizon, e as 198 páginas têm como título Um tão longo Silêncio. Nesse relato conta como se sente ainda sob pressão dos acontecimentos entre 1990 e 1992 e garante que até hoje não foi capaz de recuperar das violações.

Uma das perguntas que faz no livro é por que razão o treinador "vive tranquilo no ringue de patinagem e eu ainda hoje sofro, aos 44 anos?" Acrescenta que os antidepressivos e ansiolíticos continuam a ser "fiéis companheiros" de alguém que "no seu íntimo não vive nem respira".

Brigitte Macron convida patinadora para o Eliseu

Brigitte Macron convidou Sarah Abitbol para se encontrarem no Palácio do Eliseu. A mulher do presidente francês revelou estar profundamente tocada pelo que aconteceu à patinadora e quis com este encontro dar relevo às atividades sobre a proteção dos menores. Brigitte, que é considerada a terceira mulher que os franceses mais apreciam, não comenta o encontro mas uma fonte próxima disse que "a questão da proteção da infância está no seu coração e que já tomou várias atitudes em função desta causa". Designadamente, acrescenta, que no meio desportivo a vítima é fruto de uma autoridade que lhe é difícil contestar.

No mesmo sentido foram algumas declarações da ministra Maracineanu a meio da semana, quando defendeu uma maior vigilância aos treinadores: "Estamos a falar de pedofilia, uma situação inadmissível na nossa sociedade. No desporto é ainda menos aceitável pois os pais confiam inteiramente os seus filhos sem se questionarem sobre esta questão. E precisam de continuar a ter confiança."

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