Jogador do Benfica torna-se médico a 200%. Longe da família no combate ao coronavírus
Os últimos anos da vida de Hugo Gaspar, 37 anos, foram passados numa grande azáfama entre o consultório médico na Unidade de Saúde Familiar Travessa da Saúde, do Agrupamento de Centros de Saúde Loures-Odivelas, e os treinos e os jogos de voleibol na equipa do Benfica, de que é capitão. Hugo é médico de família e, neste momento, com o desporto parado e com a pandemia de covid-19 a caminho do pico, já não despe a bata branca - "agora sou apenas médico, médico a 200%". A partir desta segunda-feira, ficou mais exposto na linha da frente do combate ao novo coronavírus e optou por estar longe da família. Uma imposição que colocou a si mesmo devido aos maiores riscos que vai passar a correr no local onde trabalha.
"A partir desta semana vou deixar de estar com a minha família. É uma decisão minha para os proteger. Mas diria que é seguida por 80% dos meus colegas, sejam médicos, enfermeiros ou profissionais de saúde, porque os riscos são muitos e não queremos colocar a saúde das pessoas mais próximas em risco. Esta pandemia vai implicar longas ausências familiares. Estou a contar não estar com a minha família nas próximas três ou quatro semanas", disse ao DN o médico e atleta do Benfica. "Hoje, as tecnologias permitem que estejamos em contacto mesmo à distância. Mas para quem tem dois filhos pequenos [um de 3 e outro de 7 anos], como é o meu caso, não é a mesma coisa", acrescentou.
Até hoje, Hugo foi dando as consultas normais na Unidade de Saúde Familiar Travessa da Saúde e não lidou com qualquer caso relacionado com o novo coronavírus. Uma realidade, porém, que vai ser alterada a partir desta semana: "Tudo o que estava centralizado em três, quatro hospitais, agora também vai passar para os centros de saúde. Os centros de saúde já se organizaram para acolher cada vez mais casos suspeitos de covid-19, porque estão a aumentar, e os hospitais estão a ficar sem capacidade de resposta. Vamos criar centros específicos, as ADC, que vão receber a população com suspeitas de infeção. Vamos estar na primeira linha. À medida que a situação se complicar, certamente existirá uma requisição ainda maior de médicos e de pessoal de saúde."
Hugo, tal como vários colegas da Unidade de Saúde Familiar Travessa da Saúde, foram das primeiras pessoas em Portugal a cumprir um período de quarentena. Tudo porque duas médicas da unidade onde trabalham foram infetadas com o covid-19. "Estivemos os 14 dias em quarentena, mas já terminámos. Foi logo no início, fomos dos primeiros. As duas médicas que contraíram o vírus foram dos primeiros casos em Portugal. Parece que não, mas já passaram três semanas. Há três semanas que estamos nesta luta", recorda.
O atleta do Benfica diz que neste momento, face ao que se está a viver a nível global, "o desporto é uma coisa completamente secundária". "A preocupação de todos é tentar conter esta epidemia, caso contrário as baixas poderão ser grandes. As pessoas pensam que não chega, mas pode chegar à porta de cada um." E foi precisamente a isso que foi assistindo no desporto em geral, com a suspensão de todas as competições, inclusivamente daquele que pratica, o voleibol.
"Ninguém estava à espera de que isto chegasse à porta de sua casa. E as federações foram cancelando os seus campeonatos à medida que os países iam sendo atingidos. Com um caso positivo aqui, outro ali... Habitualmente, só reagimos quando os problemas estão à porta de nossa casa ou quando os sentimos na pele. E foi isso que aconteceu no desporto. Agora estamos a falar de indústrias que envolvem muito dinheiro e, como se sabe, as questões económicas, mesmo em situações desta emergência, têm peso. São coisas complicadas de gerir. Há muita gente dependente dos milhões que envolvem o desporto", reagiu.
O mesmo se aplica à sociedade em geral. Hugo Gaspar não quer fazer reparos sobre se as medidas tomadas pelo governo português foram aplicadas tarde. Mas tem uma certeza: "Nenhum país estava preparado para uma epidemia destas dimensões. Nenhum país pensou que chegasse com a força com que isto chegou. Nós, felizmente ou não, tudo depende de como isto vai evoluir, fomos um dos países atingidos mais tardiamente. Agora, se devíamos ter feito mais alguma coisa antes, é uma discussão relativa. Eu, do meu ponto de vista, começo a compreender o porquê de a China, o Japão, a Coreia do Sul e Macau terem sido tão ditadores e com regras tão pesadas nas medidas que tomaram. Parece que estão a ser eficazes."
Hugo tem também acompanhado com particular atenção a situação dramática em Itália, com o número de mortos a disparar de dia para dia. A questão italiana também lhe é particularmente sensível, porque jogou em Itália, no Sisley Treviso, equipa na qual se sagrou campeão nacional italiano e disputou a Liga dos Campeões.
"Não tenho falado com ninguém diretamente, mas acompanho com muita preocupação a situação através da comunicação social. É dramático e questiono como foi possível atingir aquela população com taxas de mortalidade muito acima do que aconteceu noutros países. A Itália reagiu tarde e tornou-se mais suscetível, a faixa etária atingida é mais velha, enquanto aqui em Portugal é entre os 30 e os 60 anos. Nós poderemos vir a ter um problema idêntico, porque somos dos países europeus com a população mais envelhecida. Se a fatia etária dos 65 anos começar a ser atingida...", aponta.
Hugo Gaspar diz que neste momento todas as ajudas são poucas. Mas confessa ficar sensibilizado quando vê o mundo do desporto a ajudar nesta luta, inclusivamente o clube que representa, o Benfica, que, além de ventiladores para unidades hospitalares, doou um milhão de euros: "É muito importante que quem tenha capacidade financeira ajude. Todos os portugueses, sócios e adeptos ou não do Benfica, têm de sentir-se lisonjeados pela ajuda disponibilizada pelo Benfica e outras entidades. O Benfica é talvez a maior instituição em Portugal e estes projetos e iniciativas são de louvar e temos de dar os parabéns."
Nas semanas que esteve em isolamento em casa na companhia da mulher e dos dois filhos, Hugo não descurou a forma física. "Dedicámos pelo menos uma hora diária ao exercício físico. No meu caso, por ser atleta, tenho mesmo de ter cuidado", referiu, garantindo que, apesar de não ter sido muito exposto a casos de covid-19, tomou sempre precauções: "Já tinha bastantes cuidados em casa, sobretudo manter o máximo de cuidados de higiene e seguir todas as recomendações. Isto chegou a um momento em que qualquer pessoa que possamos atender pode estar infetada. Enquanto até agora os casos estavam bastante controlados em certos pontos do país, com uma linha epidemiológica seguida, agora isso deixou de existir."
Hugo Gaspar teve de escolher há uns anos entre o desporto e a medicina. Quando estava no terceiro ano da faculdade, teve a possibilidade de ir para Itália (na época 2004-05), representar o Treviso. Mas, quando lhe colocaram à frente um contrato de vários anos, questionou se podia manter-se fora do país, mas disseram-lhe que poderia perder a vaga na universidade: "Tive medo e abdiquei da carreira internacional. Coloquei a medicina à frente do voleibol. Na altura, falou mais alto garantir um futuro como médico, e não tenho dúvidas de que foi a decisão certa."
Regressou a Portugal para representar a equipa de voleibol do Vitória de Guimarães, onde esteve quatro temporadas e ganhou um título de campeão nacional, voltando a ter a oportunidade de disputar a Liga dos Campeões. Depois esteve um ano no Castêlo da Maia e, já com o curso de Medicina tirado, assinou pelo Benfica, clube que defende desde a temporada 2010-11 e pelo qual já somou uma mão-cheia de títulos. Uma vida em cheio, que sempre conseguiu conciliar com mais ou menos esforço, já que dedicou 40 a 48 horas semanais à medicina, com os treinos várias vezes por semana, quase sempre à noite.
Agora, com o desporto em segundo plano, Hugo está completamente consciente da responsabilidade civil que tem sobre os ombros devido à sua profissão de médico. Aliás, há poucos dias fez questão de deixar uma mensagem no site oficial do Benfica. "Neste momento, do que mais precisamos é de consciência cívica, de como nos comportar perante esta ameaça. Também eu estarei na linha da frente, a ajudar todos aqueles que precisem, muitas vezes com aquele receio de que em casa tenho a minha família à espera da minha chegada são e salvo. Gostaria de mandar uma mensagem positiva de força e união, e com a certeza que tudo passará e que em breve estaremos todos juntos a festejar as nossas vitórias. E um dos festejos será contra esta epidemia, que sem dúvida nenhuma vamos vencer."