Um torneio para nacionalistas ou para cidadãos do mundo?
No futebol como na vida, podemos ser orgulhosos representantes do nosso país e, ao mesmo tempo, incuravelmente globais
Em junho de 1930, um golpe de Estado na Roménia levou ao poder o quixotesco rei Carol II. Ele voltou rapidamente a sua atenção para o primeiro Campeonato do Mundo, agendado para pouco mais de um mês depois, no Uruguai. A competição de futebol era uma oportunidade de mostrar ao mundo uma nova Roménia sob a sua administração, enquanto despertava nos romenos um sentido das suas capacidades globais. O rei Carol fez uma proposta muito tardia para a entrada do seu país no torneio e incentivou a federação de futebol nacional a reunir uma equipa.
Esta não foi uma tarefa simples. Muito antes das atuais estrelas milionárias do futebol, muitos futebolistas receavam que não valesse literalmente a pena jogar no Campeonato do Mundo. Os rigores da viagem transcontinental exigiam que eles passassem três meses no estrangeiro, uma interrupção incómoda na vida de homens que, muitas vezes, trabalhavam em fábricas ou refinarias de petróleo e temiam, com razão, que representar a Roménia lhes custasse o emprego. Assim, o rei Carol emitiu um decreto real garantindo que todos os jogadores selecionados seriam dispensados pelos seus empregadores e teriam os seus lugares garantidos quando regressassem.
Por força da vontade do rei, uma equipa maioritariamente urbana foi arrancada dos centros industriais de Bucareste e Timisoara e foi para Génova, em Itália, onde embarcaram num transatlântico e navegaram três semanas pelo Atlântico para competir em Montevideu.
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65% dos jogadores selecionados para o Campeonato do Mundo deste ano jogam profissionalmente em clubes fora dos seus países de origem
Os tempos mudaram. Nenhuma das equipas no Mundial 2018 na Rússia fará a sua preparação a correr entre os conveses de um navio. Nem os muito ricos profissionais que representam os seus países se preocupam por faltar aos turnos na linha de montagem. O entusiasmo do Rei Carol, no entanto, pelas potenciais glórias nacionais do Mundial continua palpável tanto nos grandes como nos pequenos países do futebol. Quando o Panamá se classificou pela primeira vez no ano passado (à custa dos Estados Unidos), o país entrou em festa e o seu presidente declarou feriado nacional. A Itália, quatro vezes campeã, não conseguiu a classificação depois de ter estado em todos os torneios nos últimos 60 anos, aprofundando mais ainda o clima de melancolia e frustração no país que, em março, rejeitaria os partidos do sistema.
Concurso de Estados-nação
Embora muito ampliado, o Campeonato do Mundo ainda continua a ser, na sua essência, o que era na época do rei Carol: um concurso de Estados-nação. O torneio foi concebido numa Europa do início do século XX, quando as nações (incluindo a Roménia) emergiam dos destroços de impérios, quando o evangelho da autodeterminação nacional de Woodrow Wilson se espalhou por toda parte e quando novas formas de comunicação social, incluindo a rádio, amplificaram o alcance do desporto.
Juntamente com uma bandeira e um hino, uma equipa de futebol dava a um país uma forma tangível, traçando os contornos de um povo no esforço coletivo em campo. As histórias memoráveis de cada Campeonato do Mundo são frequentemente de apoteose nacional e de calamidade nacional.
Mas se o futebol ajudou a dar significado às nações, também as transcendeu ao explorar as correntes globalizantes dos tempos mais recentes. O Campeonato do Mundo do século XXI é um paradoxo. O sucesso deste festival das nações depende muito das energias que atravessam fronteiras e afastam as pessoas das suas raízes nacionais. Isso sugere que há, na verdade, uma falsa dicotomia entre "globalismo" e "nativismo". Tanto no futebol como na vida, é perfeitamente possível sermos orgulhosos representantes do nosso país e, ao mesmo tempo, incontrolável e incuravelmente globais.
Veja-se, por exemplo, os jogadores que competirão na Rússia este ano. Nas primeiras ocorrências do Mundial, as seleções nacionais tendiam a selecionar os seus jogadores dentro das suas próprias fronteiras. Uma viagem para a prova era, em todos os aspetos, uma viagem. Com raras exceções, os jogadores passavam do familiar para o desconhecido, chegando a lugares estranhos, enfrentando jogadores desconhecidos e encontrando diferentes estilos e táticas. O torneio servia como um ponto de encontro de povos e culturas distantes.
Um treinador português gere a equipa nacional iraniana, um argentino a equipa egípcia, um holandês a equipa australiana
Já não é assim. Por um lado, o futebolista médio no Mundial é um cidadão do mundo. De acordo com o CIES Observatório do Futebol, 65% dos jogadores selecionados para o Campeonato do Mundo deste ano jogam profissionalmente em clubes fora dos seus países de origem. Não é novidade que muitos desses atletas jogam nas competições domésticas mais ricas e influentes da Europa Ocidental: a Liga inglesa, a Liga espanhola, a Bundesliga da Alemanha e a Serie A de Itália. Mas também vêm de ligas em lugares tão diferentes como o México, Turquia e China.
Um país, um estilo de jogo?
Abundam os estereótipos na descrição do desporto, como se as tendências de uma equipa de futebol pudessem expressar a alma de uma nação - a eficiência robusta dos alemães, por exemplo, ou o samba dos brasileiros. Mas à medida que as ligas domésticas se tornam mais diversificadas e os jogadores ganham exposição no exterior, a noção de que determinados países têm estilos de jogo indígenas torna-se mais difícil de sustentar.
A Inglaterra venceu o Campeonato do Mundo de 1966 em casa, jogando um tipo de futebol direto, privilegiando a coragem e a ética de trabalho em detrimento da habilidade e da astúcia. Mas esse "futebol inglês" estereotipado pode ser agora difícil de encontrar em Inglaterra, onde os principais clubes da Premier League são geridos por um conjunto cosmopolita de treinadores estrangeiros e onde os planteis estão repletos de jogadores estrangeiros. O que é verdade no futebol a nível de clubes é também visível a nível internacional. Um treinador português gere a equipa nacional iraniana, um argentino a equipa egípcia, um holandês a equipa australiana.
O torneio não é tanto uma exibição de diferentes identidades nacionais, mas antes um lembrete de como as ideias e modas táticas no futebol cruzam casualmente fronteiras. Embora o futebol se tenha espalhado globalmente antes que alguém usasse a palavra "globalização", é muito mais fácil na era dos destaques do YouTube e dos GIFs virais no Twitter estudar e, mais importante, amar a forma como os outros jogam.
O peso do fator diáspora
Muitas equipas nacionais refletem hoje décadas de emigração, a maneira como a diáspora distendeu a nação. Quatro em cada cinco países africanos, por exemplo, têm nas suas seleções jogadores nascidos em países da Europa Ocidental, como França, Bélgica e Holanda, onde beneficiaram de melhores recursos e treino. Mais de 60% da equipa marroquina nasceu fora de Marrocos, e alguns desses jogadores estão mais confortáveis a falar francês, flamengo ou holandês do que o árabe marroquino. Ao mesmo tempo, as equipas nacionais europeias incorporam as mudanças demográficas dos seus países.
Em 2014, o Mundial foi visto por mais de 3 mil milhões de pessoas na televisão (segundo os números da FIFA)
No entanto, a maior transformação é a forma como o torneio se tornou um espetáculo global televisionado, uma eventualidade que o rei Carol não poderia ter concebido em 1930. Embora o Campeonato do Mundo ocorra num país diferente a cada quatro anos, é vivenciado em todos os lugares; em 2014 foi visto por mais de 3 mil milhões de pessoas (se acreditarmos nos números da FIFA). Mais de metade dos quase cinco mil milhões de dólares da receita gerada pelo Mundial de 2014 veio da venda dos direitos de transmissão televisiva. Centenas de milhões de pessoas assistiram a todos os jogos, uma realidade muito distante da primeira transmissão televisiva do torneio em 1954, quando uma meia-final foi retirada da transmissão europeia a favor de uma feira agrícola em Copenhaga.
250 milhões a ver na China
O interesse no torneio, muitas vezes tem pouco a ver com seguir a própria equipa nacional. Muitos espectadores do Campeonato do Mundo vêm de países que raramente (ou nunca) estão envolvidos. Em 2014, quase 250 milhões de pessoas assistiram na China, 103 milhões na Indonésia, 85 milhões na Índia. Para os decanos do jogo internacional, essas populações são mercados lucrativos para licenciamento e receitas comerciais. Mas o seu amor por um torneio onde não estão representados aponta para algo completamente diferente. Fico sempre surpreendido com o facto de ruas inteiras de Calcutá, na Índia, por exemplo, ficarem enfeitadas com as cores dos amados rivais sul-americanos, a Argentina e o Brasil. O Campeonato do Mundo não é apenas um caldo de cultura para a criação de nações, para que as nações vivam sonhos e tragédias coletivas. Oferece um teatro universal, transformando identidades nacionais em sinais de anseio pelo mundo em geral.
*Kanishk Tharoor é o autor de Swimmer Among the Stars, uma coletânea de contos e o apresentador da série de rádio da BBC Museum of Lost Objects.
