O português fugido à Guerra do Ultramar que veste a seleção francesa desde 1988
No dia da final do Euro2016, há um português (e não é Griezmann) com o coração dividido. Trata-se de Diamantino Faria, o roupeiro da seleção francesa, que entrou para a federação francesa em 1984 e passou a tratar dos equipamentos gauleses desde 1988.
- Em 1964, depois de fazer 18 anos, o jovem Diamantino de Faria, da aldeia da Boa Vista (Leiria), teve "medo" que o mandassem para a Guerra do Ultramar e rumou para França. "Fugi ao serviço militar, como a maior parte dos portugueses na altura. Comecei a trabalhar nas obras, como pedreiro e pintor. Depois a Federação Francesa de Futebol (FFF) comprou um terreno ao meu patrão, em Clarefontaine, para construir o centro de treinos, e eu fui vendido com o terreno [risos]. Fiquei de gardien (vigilante) do terreno até 1986, quando a seleção se mudou para lá", contou ao DN num português quase sem sotaque e só com um ou outro voilà (isso).
Nessa altura ainda não havia roupeiros, só "pessoas que tratavam da roupa". E essas eram Manu, como o tratam os franceses, e a mulher. Até então era um dos treinadores adjuntos que fazia esse trabalho. Mas quando em setembro de 1988 Michel Platini foi nomeado selecionador, Diamantino passou a viajar com a seleção: "Aí é que passei a ser um roupeiro profissional. E até hoje só errei um jogo... em 28 anos."
Trabalhar com Platini "era fácil, uma pessoa muito respeitadora". Platini, entretanto, chegou a presidente da UEFA, cargo que deixou em 2015 envolvido no escândalo de corrupção da FIFA. "Uma situação difícil de compreender para quem o conhece como eu", referiu Diamantino ao DN, explicando que na altura em que o francês esteve na seleção não gostava nada de papéis. Nas digressões "era comum ele sair do quarto sem levar nada".
Era o português que ia fazer a ronda para levar cadernos com as táticas, papéis e o dinheiro do cofre. Por isso parece-lhe "impossível" que Platini seja culpado de corrupção. "Acho sinceramente que ele está a ser vítima da situação, mas foi condenado e tem de cumprir, mas ainda é novo e acredito que pode voltar ", defendeu.
Manu sente-se reconhecido."Se não me tratassem bem e eu não fosse bom no que faço já não estava cá. Há 28 anos que cá estou e nunca tive um problema com um jogador ou elemento do staff", desabafou orgulhoso. E já trabalhou com Platini, Domenech, Laurent Blanc e Deschamps, entre outros selecionadores, "cada um com o seu feitio".
Campeão da Europa e do Mundo
Em 28 anos viveu muitas alegrias (foi campeão do Mundo em 1998 e da Europa em 2000) e algumas tristezas. A melhor recordação é simples: "O Mundial98". A pior? Uma noite em 1993, quando a França perdeu com a Bulgária e falhou a presença no Mundial94, nos EUA. "Vivê-lo de dentro, foi muito difícil", admitiu sem esquecer a "frustração" no Euro2004... em Portugal.
Em 2013 tentou reformar-se. Meteu os papéis e já tinha um substituto bem ensinado para deixar o cargo após o Mundial 2014, mas Didier Deschamps pediu para Diamantino ficar mais dois anos, até ao Euro2016. E já anda "a chatear" para ficar para o Mundial 2018: "Mas já chega, tenho 70 anos, quero gozar a reforma e brincar com os netos!""
Isto dos equipamentos não tem segredos, "mas também não é só lavar", é "estar sempre presente", segundo Diamantino. "É começar às 7.00 ou 8.00 da manhã e acabar à meia-noite." É tratar da roupa antes e depois dos treinos, antes e depois dos jogos, durante os estágios, passeios e viagens: "É um trabalho de muita responsabilidade. Os jogadores vestem uma nação e a minha função é preparar tudo para que a vistam da melhor forma possível."
Os jogadores não são esquisitos com os equipamentos, "desde que esteja tudo como deve de ser". Com o passar dos anos a roupa ficou "mais fácil de tratar, já não custa tanto a lavar", mas, em contrapartida, há mais coisas a tratar, pois, "já não são só uns calções, uma camisola e umas meias".
E quem diz roupa diz qualquer coisa. Certo dia um jogador perguntou-lhe se tinha pasta de dentes, outro se tinha gomas (pastilhas) elásticas. E ele passou a "ter um pouco de tudo". A diferença é que nos primeiros tempos viajava "apenas com um pequeno saco" e agora precisa "de um camião!".
Deschamps, Zidane e Henry
Em quase 30 anos de trabalho, o português ganhou muitas amizades entre as centenas de internacionais franceses com quem conviveu. Diamantino prefere tratar "o último como o primeiro". Mas sabe perfeitamente que já lhe passaram pelas mãos grandes jogadores, "os melhores da história do futebol francês". Desde Platini ao atual selecionador, Didier Deschamps, passando pelos "miúdos" Zinedine Zidane e Thierry Henry, que viu chegar e partir. Tratam-no por "paizão", aquele que "ri o tempo todo".
Com uma memória infalível, lembra-se "perfeitamente" da estreia do atual treinador do Real Madrid na seleção, por exemplo. "Quando entrou estávamos a perder 2-0, ele fez dois golos e acabamos empatados com a República Checa(2-2)".
Já Henry cresceu em Clairefontaine e ganhou amizade com Manu e a mulher. Antes dos jogos pedia ao roupeiro para ver e tocar nos uniformes. Um ritual que lhe pediu para repetir na despedida. "Pediu que preparasse as 23 camisolas com o número 12, o número dele na seleção, e lhe passasse uma a uma, enquanto ele as distribuía aos jogadores com uma mensagem personalizada. Quando a deu ao Pogba, disse-lhe: "o número de penteados que já te vi"", contou.
Didier Deschamps também é especial, ao ponto de o fazer adiar a reforma: "É uma excelente pessoa, de bom trato humano, é um rapaz que conheci com 17 anos, um dos primeiros a confiar-me o equipamento. Antes os jogadores levavam para casa e ele começou a deixar para eu tratar..."
Adrien, Griezmann e outros
Diamantino cruzou-se algumas vezes com a seleção portuguesa em campo, mas poucos sabiam que era português. "O Luís Figo tinha conhecimento porque o Zidane lhe disse [risos]. Depois no Europeu de 2000 e no Mundial 2006 o staff português já sabia e todos me cumprimentaram antes do jogo... depois tenho impressão de que já não iam querer saber se eu era português ou não", brincou Diamantino, aludindo às derrotas de má memória para a seleção nacional, frente aos franceses. Já para não falar no Euro84!
Foi ainda como vigilante de Clairefontaine que assistiu ao génio de Chalana e companhia nesse Europeu: "Estávamos a ver que Portugal ia ser campeão da Europa nesse ano. Estávamos para abrir as garrafas de champanhe... quer dizer abriram-se na mesma."
Depois de ver a seleção portuguesa brilhar no França84, Manu acredita que a equipa vai repetir o bom desempenho no Euro2016, até porque tem "Ronaldo, um jogador especial, um dos melhores do mundo", que os franceses tratam "com muita delicadeza e atenção".
O homem que trata dos equipamentos da seleção francesa acredita também no potencial da França. "Temos uma equipa boa, um grupo bom, para ir longe. A jogar em casa, com o nosso público", disse, entre desabafos de saudades de Ribéry, "o brincalhão de serviço."
Para Manu, ainda hoje "é difícil lidar com o coração", quando há um França-Portugal: "Bom, se tivermos um Portugal-França na final do Euro2016 não há problema nenhum [risos]. Vou ficar feliz de qualquer maneira."
Com o coração dividido entre França e Portugal, Diamantino percebe "o que levou" Anthony Lopes, Rafhael Guerreiro e Adrien Silva, todos com pai português e mãe francesa, a optar pela equipa das quinas. "E vai haver mais", pois, segundo o roupeiro, "são raras as equipas francesas que não têm um jogador português".
E "não há dúvida de que Ronaldo leva muitos jogadores a optar por Portugal", atirou, antes de referir os dois vingadores da honra francesa: Griezmann, do Atlético Madrid, e Kevin Gameiro, do Sevilha.
Preso na Guarda por amor
Quando fugiu para França deixou a noiva em Portugal. E como a prometida disse que não ia para França se não a viesse buscar, resolveu arriscar regressar em 1968. Mas havia uma ordem de prisão, por ter desertado, e foi apanhado, juntamente com um amigo, na zona da Guarda, e logo preso. "Fiquei uma noite na cadeia. Mas o meu colega já sabia que isso podia acontecer e trazia dinheiro. Pagámos para sair e no dia a seguir já não voltámos à aldeia, atravessámos logo a fronteira e voltámos a França", contou, lembrando que "foi uma grande prova de amor" àquela que seria a sua mulher.
Depois ficou até à Revolução dos Cravos sem voltar a Portugal. Mas em 1976 fez questão de regularizar o serviço militar, "pagando a taxa militar" para ficar livre e voltar a casa todos os anos. Vem 15 dias por ano passar férias, mas não pensa viver na aldeia de origem depois da reforma. As duas filhas - uma que é massagista da seleção feminina sub-19 de França e a outra bancária - e os netos fazem-no ficar por Clarefontaine, apesar das saudades do leitão da Boa Vista, "melhor do que o da Bairrada".
(reportagem originalmente publicada a 5 de junho)