Roberto Martínez com os benjamins do Casa Pia.
Roberto Martínez com os benjamins do Casa Pia.Gerardo Santos

Roberto Martínez. “Sabem como se chega à seleção? Primeiro é preciso ter um sonho e depois trabalhar muito”

Selecionador foi conhecer as origens da equipa nacional e a história de Cândido de Oliveira, o capitão antifascista. Técnico surpreendeu jovens casapianos e visitou o Museu do clube fundado em 1920.
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A dias de embarcar para Munique, onde Portugal vai jogar a final four da Liga das Nações, Roberto Martínez aceitou o desafio do DN para surpreender o Casa Pia e percorrer a história do clube que esteve na origem da seleção nacional, que fez o primeiro jogo em 1921, frente a Espanha, país de origem do técnico.

“Martínez, bem-vindo a Pina Manique!”, disse Vítor Franco, um dos cúmplices da iniciativa. A outra era Carla Tiago, que tratou de convocar a equipa sub-10 masculina e uma equipa com sub-13 e sub-15 feminina “para um treino especial”. Habituados a pequenas surpresas motivacionais, que contemplam treinos com jogadores da equipa principal, eles nem desconfiavam de quão especial iria ser a sessão de manhã de dia 29 de maio, o dia em que estiveram com o selecionador português.

Era dia de semana e deviam estar na escola, mas estavam a treinar, quando, por volta da 10h30 e debaixo de um sol abrasador, Roberto Martínez irrompe pelo campo, cumprimenta os técnicos João Pinto e David Carvalho e pede permissão para assistir. As jovens estranham a presença. Entre risinhos envergonhados e escondidos com mãos na cara, as jogadoras tentam continuar os exercícios, mas não dá. Não há condições. O treino para e rapidamente formam como se fossem ouvir uma palestra e quando o selecionador pergunta se gostam de jogar futebol, elas, fazem uma cara de ‘isso nem se pergunta’ e respondem ainda timidamente que “sim”.

Estava dado o pontapé de saída para o jogo de perguntas e respostas, mas ainda faltava meter a bola a rolar. “Meninas, não têm perguntas? Não vão ter outra oportunidade como esta, vão-se arrepender depois”, lembrou o jovem técnico das sub-15 do Casa Pia, que jogam na segunda divisão nacional.

O espanhol de 51 anos (13 de julho de 1973), colocou as jovens à vontade. Perguntou a uma delas, Inês Amaro, em que posição jogava e quando disse que era ala esquerda, Roberto reagiu em futebolês: “Pé trocado?” Seguiu-se uma aula técnica sobre “esse conceito tático novo” de ter alas direitos esquerdinos ou alas esquerdos destros. E até o técnico das sub-13, David Carvalho, quis saber a opinião do selecionador sobre se isso levou a uma diminuição dos cruzamentos para a zona de finalização. “Pode parecer, mas os números dizem que é igual”, segundo o selecionador português, explicando que, no futebol moderno, um ala com bola é um avançado e um ala sem bola é um defensor e, por isso, os alas do pé trocado têm mais sucesso na missão”.

A resposta captou de vez a atenção das adolescentes, que não tiveram dúvidas em apelidar o futebol como “uma paixão” e não apenas um desporto. Tal como Inês Amaro e as outras jogadoras do Casa Pia, também Inês Zacarias sonha ser chamada à seleção e quis saber o que pode fazer para lá chegar e suceder a Marcelina Chaquice, a casapiana internacional dos anos 80. “Essa é uma missão para o meu colega Francisco Neto [risos]. Gostei muito da vossa atitude no treino, fiquem tranquilas que o vosso trabalho será reconhecido pela Federação”, respondeu Martínez, para quem “o jogador perfeito não existe”. “O importante é ser excecional numa coisa e trabalhar essa coisa. Nós, na seleção, temos muitos jogadores excecionais. Um jogador mediano pode ser importante para uma equipa, mas para chegar à seleção precisa ser sempre excecional em, pelo menos, uma coisa”, defendeu o espanhol, sugerindo que elas trabalhem a sua “qualidade excecional” para, assim, estarem sempre um passo à frente das adversárias.

“Sabem quem é este senhor?”

“Meninos, sabem quem é este senhor? É o selecionador de Portugal.” A palavra do presidente costuma ser regra e a pequenada confia desconfiando até ouvir Martínez dizer: “Pensava que estavam na escola. O que é melhor, escola ou futebol?” A palavra “Futeboollllll” ecoa geral, mas a resposta de Rafael Lisboa quando diz - “futebol, não, eu prefiro escola” - sobressai e dá origem a uma discussão entre vários miúdos, enquanto outros pedem a atenção do técnico e apertos de mão. Rafael ainda tenta argumentar, mas fica desarmado pelo argumento do colega, Thomas: “Sim, mas o Ronaldo não tirou o curso, pois não.”

O selecionador bem tenta convencer os benjamins, liderados por Pedro Boletas e João Teixeira, que “ser disciplinado na escola ajuda a ser bom jogador e a interpretar os conceitos do treinador”. Mas eles querem é saber do agora e não do depois, quando forem grandes. Um deles ainda perguntou a Roberto Martínez se ia pôr o Cristianinho e Cristiano Ronaldo a jogar juntos, mas o técnico lembrou que o filho de CR7 foi chamado aos sub-15 e não à seleção principal. Numa tentativa (pouco conseguida, diga-se) de variar o jogo, o selecionador quis saber quem é o jogador da seleção preferido deles, ouvindo: “Ronaldo”, “Ronaldo”, “Ronaldo”, “Rafael Leão”, “Ronaldo”, “João Neves”, “Bernardo Silva”, “Ronaldo”, “Ronaldo”, “Ronaldo”...

“Tu também?”, pergunta surpreendido por também um dos guarda-redes ter respondido “Ronaldo”. João Sanchez Nunes diz que sim e ainda acrescenta com orgulho que também é espanhol, mostrando assim saber a nacionalidade do selecionador.

Reguilas e sem filtro, no meio da confusão ouve-se... “Já ganhou algum título com o Cristiano Ronaldo?” “Não, ainda não, foi o mister Fernando Santos. E sabem como se chega à seleção? Primeiro é preciso ter um sonho e depois trabalhar muito, mas se não acreditam que podem chegar à seleção é difícil. É preciso ouvir os treinadores, os professores”, respondeu, captando também ele a atenção dos miúdos com uma história sobre Eusébio. O silêncio de quem não faz ideia de quem se trata e a curiosidade de ouvir a resposta permite a Martínez mostrar que também ele estudou a lição. “Uma vez o Eusébio marcou quatro golos? Sabem a quem, à Coreia [5-3]. Algum de vocês já marcou um poker. Algum de vocês marcou quatro golos num jogo?” Não ficou sem resposta, Lourenço Mostovoi e os amigos têm um amigo que fez seis golos num jogo e um de pontapé-bicicleta.

Um deles quis saber de que clube ele era Martínez, que respondeu que o clube de formação era o Saragoça. Outro, procurou saber quem treinou antes de chegar à equipa das quinas. E quando sabem que foi a Bélgica começa a ecoar toda uma lista de jogadores, Kevin de Bruyne, Hazard, Lukaku... “Mister, quando é o próximo jogo de Portugal, para dizer ao meu pai para ver na televisão.” Ele responde: Dia 4, com a Alemanha, para a Liga das Nações, às 20h00, na RTP1.

Dado o recado, o mister Pedro fica com a deixa perfeita para libertar o selecionador da criançada: “Bora treinar para o mister ver.”

Cândido de Oliveira, o capitão antifascista

O dia 29 de maio vai entrar para história do Casa Pia, como o dia em que miúdos e adolescentes foram surpreendidos durante um treino por Roberto Martínez, que orienta a seleção portuguesa desde o dia 9 de janeiro de 2023. O dia também foi especial para o técnico espanhol, um apaixonado pela história do futebol. Assim que entra no museu, mostra-se genuinamente impressionado. Recebido por um mural de tributo a Cândido de Oliveira, o casapiano que foi o primeiro capitão da seleção e que hoje dá nome à Supertaça, e por um busto que exibe orgulhosamente a camisola que o clube ‘emprestou’ à seleção historicamente retratada numa fotografia, que em 1921 se estreou frente a Espanha.

Guiado pela eloquência de Hélder Tavares, o selecionador ficou a saber que a história da seleção se cruza com a do Casa Pia, fundado a 3 de julho de 1920. “Havia ainda resistência em vestir as cores da República, implantada em 1910, o verde e vermelho. E, depois de uma guerra entre Lisboa e Porto, os jogadores portuenses boicotaram a convocatória do Augusto Sabbo e ficaram só os de Lisboa. Os casapianos, Ribeiro dos Reis, António Pinho, Victor Gonçalves, José Maria Gralha, António Lopes e Cândido de Oliveira assumiram a liderança do grupo e decidiram jogar com as cores da cidade de Lisboa, o preto e branco... a cores do Casa Pia, que emprestou os equipamentos e só tiveram de mudar o logo. Coincidência ou não, foi assim que a seleção se apresentou, em Madrid, frente a Espanha do grande Zamora [a quem chamavam de El Divino]”, contou o vogal da direção, com o pelouro cultural, exibindo a camisola vintage, comemorativa do centenário do primeiro jogo da seleção.

Foi a 18 de dezembro de 1921, no pelado do Campo do Atlético: a Espanha acabou por vencer por 3-1 (golo português foi de penálti e marcado por Alberto Augusto). Um jogo histórico a vários níveis. Dessa equipa fazia parte aquele que ainda hoje é o jogador mais novo a atuar com as quinas ao peito: José Gralha, tinha 16 anos, nove meses e cinco dias e figura hoje na paredes do museu do clube.

O capitão era Cândido de Oliveira, casapiano e um dos fundadores do jornal A Bola (com Ribeiro dos Reis), que foi jornalista do DN na década de 40, treinador e selecionador, além de ativista, perseguido pela PIDE , preso no Tarrafal e só libertado no final da Segunda Guerra Mundial. Ficaria, por isso, conhecido por capitão antifascista, que hoje dá nome à Supertaça.

Durante a visita, Martínez ficou a saber que Espanha está umbilicalmente ligada não só ao nascimento da seleção portuguesa, mas à história da Revolução de Abril. Um dos jogadores da primeira equipa, era o benfiquista Vítor Gonçalves, pai de Vasco Gonçalves, um militar de Abril, que se tornou primeiro-ministro dos II, III, IV e V Governos Provisórios, no período do PREC.

Pelo caminho encontram Renato Nhaga, jovem talento da formação que já é internacional pela Guiné. Na seleção portuguesa, Silvestre Varela, foi o último dos gansos a ser convocado, em 2004, para os Sub-21.

É preciso ir buscar uma chave para abrir a uma espécie de Casa Forte, que esbanja e ostenta História e ‘estórias’ sem fim. Exemplarmente organizado e catalogado está o primeiro Relatório da União Portuguesa de Futebol, fundada a 31 de março de 1914, e que só em 1926 passou a ser Federação Portuguesa de Futebol (FPF), cujo primeiro mobiliário o clube herdou e onde o selecionador se sentou.

Os pontos de interesse são tantos para tão pouco tempo. O selecionador tem uma agenda preenchida, mas, segundo a segundo, emergem novos motivos de interesse. Uma fotografia de Ruben Amorim, que começou a carreira de treinador em Pina Manique (2018/19), um livrinho de bolso com “as primeiras leis do jogo, ainda em inglês”, ou “o primeiro ranking de futebol português, de 1894”, segundo Hélder Tavares, que ainda exibe os centenários cones-taça que geram uma animada conversa sobre “bolas quentes e frias”, ou na versão antiga, “bolas pesadas e bolas leves”.

Vítor Franco procura na parede a fotografia de Francisco Santos, o aluno do Colégio Casa Pia, que foi estudar escultura para Itália e acabou a jogar na Lazio (1907/09), antes de regressar e pensar esculpir a estátua do Marquês de Pombal, monumento da praça lisboeta inaugurada a 13 de maio de 1934 e que hoje é palco das festas dos títulos de Sporting e Benfica.

E se, para Hélder, a maior relíquia é o diploma olímpico de Paris1924 assinado por Pierre de Coubertin, que era de Mário da Silva Marques, o primeiro nadador olímpico português e um dos fundadores, para Vítor Franco, “o maior tesouro”, são as condecorações dos vários Presidentes da República pelo serviço público do Casa Pia, clube com 955 sócios a que preside há 16 anos.

Sexta-feira vai a votos para um novo mandato, com o objetivo de fazer regressar Pina Manique à I Liga. Mas não será já em 2025/26, como admitiu, “com alguma tristeza”, a Roberto Martínez, explicando que a obras de remodelação do estádio, que vão custar 14 milhões de euros, foram travadas por uma “descoberta insólita de crómio”. Um obstáculo que espera ultrapassar para que a equipa principal deixe de andar com a casa às costas. Esta época a equipa, liderada por João Pereira, jogou em Rio Maior e terminou o campeonato no 7.º lugar.

Veja o vídeo:

Roberto Martínez com os benjamins do Casa Pia.
Roberto Martínez: “Queremos ser a primeira seleção a ganhar duas Liga das Nações” (com vídeo)

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