O futebol pacificador que junta bairros sociais inimigos em nome de Rafael Leão

Jogador do AC Milan apadrinha torneio de futebol de 7 que junta o bairro onde cresceu e tem os avós, o Jamaica, e os bairro da Princesa e da Cucena. Sítios onde a bola pode ser a diferença entre um futuro ou uma vida na prisão.
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Rafael Leão é do bairro e deixa que isso o defina como pessoa sem preconceito e como exemplo a seguir. Segundo o jogador do AC Milan, a "força que sempre lhe transmitiram" marcou-lhe o caráter e deram-lhe "força para vencer". Fosse no futebol, na música (tem um álbum de rap) ou em outra atividade qualquer. Por isso quando o amigo Puma o desafiou para apadrinhar o habitual torneio de Natal do bairro da Jamaica, fê-lo sem reservas. O evento de futebol de 7 com apoio da Adidas acontece segunda-feira, no Estádio do Bravo, no Seixal, e junta jovens de alguns dos piores bairros sociais - Jamaica, Princesa e Cucena.

Quando era criança, Rafael "praticamente vivia em casa dos avós no Jamaica", um bairro social, "onde se vive com pouco" e as coisas simples são luxos de poucos. "Hoje estou bem na vida, mas sei que podia ter-me perdido em vez de me concentrar no futebol. Passei muita coisa e se não vivesse certas coisas... Agradeço ao bairro, tenho muito orgulho de dizer que sou do bairro da Jamaica e vou tentar sempre ser um exemplo do bairro e para o bairro", disse ao DN o jogador formado no Sporting que agora representa o gigante italiano AC Milan.

Garante que há muito "talento no bairro" e é preciso que alguém olhe para isso sem julgar a origem. Alguém que ajude quem não tem documentos e pode ver o futuro fugir-lhe por causa disso, como aconteceu com o amigo Puma quando foi fazer testes ao Benfica. Mas também é preciso que alguém oriente, diga "não vás por aí" e dê um calduço se for preciso. Essa pode ser a diferença entre uma vida na prisão e uma vida livre. "Ouvir os mais velhos a dizer "puto não vás por aí que eu sei como é e digo-te que não vale a pena" foi importante. Não era preciso perguntar porquê? O que aconteceu? Nós sabíamos. Ou era preso ou acabava no hospital ou morto. Saber ouvir é um bom conselho e não vale a pena alongar-me muito...", confessou o internacional português.

Rafael ouviu. Diz que nunca foi "um miúdo irrequieto" e que "sempre foi obediente" e valorizou a palavra. Mas tem amigos de infância que se fartaram de levar calduços, como o Danucas, que será o árbitro do torneio que junta bairros de má fama da zona do Seixal, o bairro da Jamaica, o bairro da Princesa e o bairro da Cucena. "É uma oportunidade para nos reunirmos numa altura muito importante para o bairro. O futebol para mim representa tudo. Permitiu-me cumprir sonhos e mudar a minha vida toda. Agora desfruto e retribuo", confessou Leão, que aos 22 anos ainda tem muitos mais sonhos e objetivos a cumprir: Ganhar uma Liga dos Campeões, continuar na seleção e continuar a jogar ao mais alto nível. Sonhar alto é o lema.

Destaquedestaque"Ouvir os mais velhos a dizer "puto não vás por aí que eu sei como é e digo-te que não vale a pena" foi importante. Nós sabíamos. Ou era preso ou acabava no hospital ou morto. Saber ouvir é um bom conselho e não vale a pena alongar-me muito..."

Aurio Emerson - Puma para os amigos - tenta "reunir a malta através do desporto". Trabalha na associação de solidariedade Criar-T , fundada em 1996 para responder a necessidades dos moradores no âmbito de apoio à infância e juventude, apoio à população adulta, apoio à família e comunidade e de outros projetos e atividades que visem o objeto social. Além de jogar e ser treinador das equipas do bairro, também é o responsável pelas equipas de futebol de rua da região de Setúbal e organizador de eventos nas horas livres. Aproveita amizades em outros bairros para unir inimigos figadais, daqueles que resolvem problemas com armas, com o futebol como desculpa.

A bola tem sido pacificadora. "Tenho muita gente a perguntar como consigo juntar o bairro da Princesa, da Cucena e da Jamaica e eu respondo: com futebol. Se estão a jogar não estão a praticar nenhum ato ilícito (risos). O Jamaica e a Princesa são bairros vizinhos com mais malta dentro devido a conflitos entre bairros. Estamos a falar de jovens que se encontravam no centro comercial e andavam aos tiros ou se encontravam em parques municipais e resolviam a coisa à facada", disse o ex-jogador.

Já houve miúdos que foram recrutados nesses torneios e por isso sabem que vale a pena. Ricardo Miranda, do Portimonense, é o mais recente exemplo. Este ano decidiu dar o nome do amigo Rafael Leão ao torneio. O jogador do AC Milan é "uma referência" no bairro e uma "estrela" para os miúdos, segundo Puma. Quando vai visitar os avós "é uma loucura idêntica a quando o Cristiano Ronaldo vai a algum lado". E a dias do evento há uma pergunta que ecoa nos ouvidos de Puma sem parar: "O Rafael vem mesmo? Vai trazer camisolas do AC Milan? Podemos falar com ele?" Ele diz que sim a tudo. Sabe que o "mano" não vai falhar. O avançado do AC Milan só não vai é poder jogar como era previsto, uma vez que recupera de uma lesão e terá de ir para o banco como treinador.

Por muito que o futebol seja unificador e pacificador há sempre alguns comportamentos desviantes a ter em conta. A segurança já foi uma preocupação e por isso Puma faz uma espécie de rastreio e passa a mensagem de que não quer pessoas com sinistros no torneio. Mas este é um processo que envolve outras pessoas de outros bairros. Pessoas que são de alguma forma líderes da comunidade. Até hoje tudo tem corrido bem. "A ideia é abrir portas, depois as pessoas decidem se querem caminhar e entrar", explicou o treinador, lembrando que o Natal é uma "data que toca muito à malta" e que "há muitas pessoas que costumam ter saídas precárias nessa altura". Um deles é o tio do jogador do AC Milan e amigo de Puma.

Puma tem uma história de vida que já deu um filme da UEFA. É um jovem imigrante angolano, que chegou a Portugal com três anos de idade e cresceu no bairro da Jamaica, onde há violência, delinquência, tráfico de droga e pobreza. Através do futebol conseguiu fugir aos problemas da droga e do crime, ao contrário dos seus sete amigos de infância, que acabaram presos.

Sonhava ser jogador e chegou a fazer treinos de captação no Benfica. Mas a falta de documentos roubou-lhe o sonho. Tornou-se num exemplo para a comunidade, após ser convocado para o Mundial de Futebol de Rua. Hoje trabalha com a associação de solidariedade Criar-T , onde ajuda pessoas carenciadas, de diferentes etnias, a desenvolverem as suas competências e atividades: "Podemos sair do bairro, mas o bairro nunca sai de nós!"

DestaquedestaqueA vida de Puma deu um filme da UEFA. Através do futebol fugiu à droga e ao crime que o seduziam no bairro da Jamaica, ao contrário dos seus sete amigos de infância, que acabaram presos, como o tio de Rafael. Hoje é um exemplo e trabalha na Criar-T.

Nani, Paulo Machado, Semedo ou João Pereira são alguns dos jogadores que cresceram em bairros problemáticos, de má fama, e fizeram do futebol a melhor e talvez única alternativa ao mundo marginal que crescia mesmo ao lado de casa. A bola salvou-os de pensar em asneiras e seguir pelo caminho mais fácil, aquele que alguns amigos percorreram, e abriu-lhes a porta do sucesso logo a seguir. Todos chegaram a um grande (Sporting, FC Porto e Benfica) e todos chegaram às seleções nacionais e com histórias para contar.

A Cova da Moura, na Pontinha, viu nascer Nani. Com oito irmãos, a infância não foi fácil. A família teve de emigrar e ele ficou com a tia e com a bola. O talento ajudou-o a chegar ao Sporting e com o primeiro contrato ajudou parte da família a regressar a Portugal. Ainda joga na MLS dos EUA. João Pereira cresceu no Casal Ventoso, onde a droga circulava nas ruas e a má fama perseguia qualquer filho de boas famílias. Começou no Domingos Sávio até José Águas o recomendar ao Benfica. O ano passado foi campeão pelo Sporting e hoje é treinador adjunto dos sub-23 leoninos. Paulo Machado nasceu e cresceu no bairro do Cerco, no Porto. A bola ajudou-o a contornar a vida do crime e levou-o até ao FC Porto. O ano passado disse adeus aos relvados. Semedo cresceu na Bela Vista, em Setúbal, um dos piores bairros do País, mas chegou ao Sporting e hoje joga no Vit. Setúbal.

O nome oficial do bairro é Vale de Chícharos, mas todos o chamam e conhecem por bairro da Jamaica. E isso não é bom. Edificado nos anos 80 do século passado, as três torres de habitação nunca foram terminadas devido à falência da construtora e foram sendo ocupadas maioritariamente por pessoas vindas das ex-colónias portuguesas à procura de um teto. E em alguns casos era e é só isso. Os prédios com tijolos à mostra, sem janelas e portas, tornaram-se imagem de marca do bairro social à margem da lei, que alojava 234 famílias.

No início de 2019, o Jamaica saltou para as notícias devido a violentos confrontos com a polícia. A atuação das autoridades foi questionada e Marcelo Rebelo de Sousa visitou o local, enquanto o primeiro-ministro António Costa confessou que só soube do bairro quando assistiu ao filme São Jorge, realizado e escrito por Marco Martins e Ricardo Adolfo, que conta a história de luta pela sobrevivência de um pugilista durante os anos de intervenção da troika em Portugal (2011-2014). O filme valeu ao ator Nuno Lopes o prémio especial de melhor ator da secção Orizzonti do Festival de Veneza.

A 21 de dezembro de 2018 começaram as demolições e os realojamentos, um investimento previsto de 15 milhões de euros - 8,5 da autarquia. A Torre 10 foi a primeira a ser demolida e as 167 pessoas que ali viviam foram realojadas em várias zonas do concelho do Seixal. As 154 famílias que vivem nas três torres que ainda ali existem deviam sair até 2022, mas o aumento do preço das casas na Margem Sul - influenciado pelos valores praticados em Lisboa e que leva muitas pessoas a tentar alternativas à habitação na capital - fez com que a Câmara do Seixal (liderada por Joaquim Santos, PCP) não conseguisse cumprir o plano. Em janeiro está previsto ir mais uma torre abaixo.

isaura.almeida@dn.pt

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