Miguel Poiares Pessoa Maduro foi ministro Adjunto e do Desenvolvimento Regional no Governo de Passos Coelho e é professor de Direito na Universidade Católica. Em 2015 liderou o Comité de Governação da FIFA e agora integra o projeto ClearingSport, da Play the Game, organização que promove a democracia, a transparência e a liberdade de expressão no desporto mundial. Porque é tão importante ter um Desporto íntegro e um dirigismo com ética?O que aconteceu ao Desporto e que o transformou, de uma atividade quase idílica, numa atividade que, infelizmente, nos últimos anos, tem sido envolta em variados escândalos, incluindo suspeitas ou crimes em vários domínios, resulta muito do Desporto ter passado de mera atividade de lazer ou competitiva para uma das atividades económicas mais importantes. As empresas que mais têm crescido no ranking do Financial Times têm atividades ligadas ao Desporto. Segundo um estudo europeu, o futebol pode corresponder à volta de 3,5% do PIB europeu. O Desporto continua a ser regulado por organizações privadas, de carácter associativo, como as federações, a UEFA, FIFA e o Comité Olímpico Internacional (COI) ao contrário de outras áreas económicas e de mercado, em que a regulação é sobretudo pública. Qual é a atividade económica no futebol mais lucrativa? O Mundial de futebol, a Liga dos Campeões e o Europeu de futebol, que são organizados pela FIFA e UEFA, que ao mesmo tempo são reguladores e operadores económicos neste mercado. Faltam mecanismos de controle e escrutínio de poder internos e de transparência. Isto explica porque o Desporto se tem visto envolto em tantos escândalos, e tem sido muito frequente, desde logo os de corrupção de 2015 na FIFA.Desde então tem sido uma voz ativa em matéria de Integridade... Na sequência dos escândalos que afetaram a FIFA foi criado o Comité de Governação, que tinha a função de acompanhar reformas do organismo e fazer testes de integridade, como os que existem para os bancos. E quem diz testes de integridade diz prevenção de conflitos de interesse, também ao nível da integridade dos próprios processos eleitorais. A minha experiência foi bastante tensa e curta porque o Comité tomou algumas decisões difíceis, como impedir que alguém que era e vice-primeiro-ministro da Rússia fosse presidente do Comité Organizador do Mundial2018. Tomar decisões desse calibre não foi fácil. Percebi que havia uma tensão muito grande entre um conjunto de reformas que estavam a ser adotadas e a cultura de funcionamento da organização que resistia, e resistiu muito, a essas reformas. E devo dizer que a realidade no COI é pior, porque tem menos mecanismos de controle e tem problemas seríssimos. As decisões do Comité criaram problemas a pessoas, que depois se queixavam ao presidente da FIFA, que depois vinha exprimir a sua insatisfação porque não estavam habituados a ter um comité verdadeiramente independente. Ou seja, criam-se comités independentes para dar transparência, que depois acaba por se tornar um problema para a própria instituição e acaba instrumentalizado...Essa é a questão, porque a instituição (FIFA) não está preparada para que os comités funcionem de forma independente. Os mandatos podem ser terminados politicamente e as pessoas condicionadas, portanto esse é um dos grandes problemas. E isso levou a que um conjunto de organizações não-governamentais e de especialistas internacionais trabalhem nesta proposta, com a Play the Game, que visa a criação de uma organização mundial e autónoma de combate à corrupção e seja garante de integridade no Desporto. O objetivo é que resulte de um acordo entre as autoridades públicas e entidades desportivas internacionais, assumindo finalmente que é necessário fazer alguma coisa para repor a credibilidade do Desporto.Repor a credibilidade? Estudos da Comissão Europeia e do Parlamento Europeu identificam o Desporto como uma das áreas com mais risco de branqueamento de capitais e isso tem muito a ver com a circunstância de haver fluxos financeiros muito elevados, muito rápidos. Os atletas podem ser rapidamente transferidos e os negócios passam pelo sistema de transferências pela FIFA (TMS). Não se sabe qual é a origem do dinheiro - entra no sistema e a partir daí... digamos que é lavado dessa forma. O TMS está identificado como risco e tem havido pedidos à FIFA para criar uma entidade que valide a origem e integridade do dinheiro, mas a FIFA até agora não o fez, tirando a parte da compensação da formação. Estamos a falar de 70 milhões de euros por ano, num contexto em que só as comissões de agentes foram mil milhões. Isso diz bem o que é que se passa. A União Europeia adotou finalmente o alargamento da aplicação da diretiva de branqueamento de capitais ao mundo do futebol. Não é uma ideia demasiado poética pedir “dinheiro limpo” num mercado aberto e global?Não. Há um grande número de pessoas envolvidas no Desporto que são éticas e não têm qualquer envolvimento em atividades criminais. Mas pelo caráter transnacional e por não ser facilmente controlado, monitorizado e regulado por entidades públicas, torna o Desporto particularmente apetecível para entidades e agentes criminosos. Há um estudo francês que diz que 80% das apostas desportivas ocorrem num contexto de ilegalidade e um ex-diretor da Agência Mundial Antidoping disse que 25% do dinheiro que circula no Desporto é controlado por instituições criminosas. Não sei de onde é que ele retirou esse valor, mas é impactante. Muitas das vezes estamos a falar de questões de transparência e não crime. Há bastantes pessoas a querer fazer as coisas de forma diferente e não querem estar envolvidas numa atividade criminosa.Sobre o dinheiro das apostas: é aceitável que patrocinem competições ao mesmo tempo se luta contra a viciação de resultados?A atividade mais lucrativa no domínio desportivo são as apostas, são as que estão mais disponíveis para esses financiamentos e patrocínios. E acaba por ser uma compensação, porque em boa medida os clubes e os atletas são utilizados pelas empresas de jogo online. O que é que isso nos diz? Que essa atividade exige regulação eficaz, que ponha limites. Se uma pessoa for detetada como jogando acima de um determinado nível, então que possa ser impedida de jogar para limitar os custos sociais, porque há um componente de risco aditivo muito significativo. Isso exige uma redefinição de todo o modelo de como funcionam as apostas desportivas e isso só é viável no contexto da União Europeia, que não tem sido suficientemente eficaz como tem dito a própria jurisprudência do Tribunal de Justiça. Porquê a União Europeia?A União Europeia é a única entidade com capacidade de intervir eficazmente nesta matéria. O famoso Acórdão Bosman... a questão podia ter sido colocada em qualquer ordenamento jurídico de um Estado-membro ao abrigo do direito ao trabalho, da liberdade contratual, da livre iniciativa económica e mas acabou por ser o Tribunal de Justiça a decidir. Porquê? Se um tribunal português dissesse à FIFA que não cumpria as suas regras, o que é que acontecia a seguir? A FIFA não mudava as regras, suspendia Portugal, a nossa seleção nacional, e os nossos clubes. Contudo, não pode dizer que vai excluir todos os clubes e seleções de Portugal, Espanha, França, Bélgica, Alemanha, Itália, etc. O Tribunal de Justiça é a única jurisdição, que eu conheço, cujas decisões a FIFA acata. O COI deu um passo importante, ao eleger Kirsty Coventry, uma mulher...... Foi eleito quem o anterior presidente queria que fosse e isso diz tudo dos mecanismos de controle de poder e dos sindicatos de voto. Ótimo que é uma mulher, mas continuam a ser subrepresentadas, e se formos ver o percurso dessa pessoa, é um percurso com muitas sombras. Se olhamos para a FIFA ou o COI, as eleições são quase unânimes e o controle de voto é extraordinário. Na FIFA tivemos durante 36 anos João Havelange, que foi substituído pelo seu número 2, Joseph Blatter, que ficou 17 anos e teria ficado mais se não fossem os casos de investigação judicial. Isso diz bem do grau de controle de poder que existe e da falta de rotação no poder. Em Portugal, a Lei de Bases permite a eleição com candidatos com direito a voto nas listas. Qualquer candidato a deputado também tem direito de voto. Por si não parece problemático e até é transparente. Cada lista tem pessoas que podem ser eleitas e votantes. O problema é que quando os universos eleitorais são muito pequenos, os riscos de compra de votos são muito significativos e são piores quando não são transparentes. Quando estava no Comité da FIFA identificámos vários casos de pessoas que tinham recebido quantias financeiras de candidatos a cargos, que diziam ser empréstimos. Afastámos essas pessoas. Não podemos dizer que houve corrupção, mas conflito de interesses. Portanto preocupa-me mais a definição do universo eleitoral. Olhemos para o COP. Fernando Gomes foi eleito tendo na lista presidentes de federações, como Domingos Castro. Sendo ele presidente do Atletismo, a tendência é lutar mais pela sua modalidade? Dou-lhe um exemplo de conflito de interesses ainda mais grave. Nasser Al-Khelaïfi, dono e presidente do Paris SG, está no Comité Executivo da UEFA, enquanto representante dos clubes europeus, a discutir esses direitos televisivos e é CEO de uma das empresas detentoras de direitos televisivos da Champions League... Isto é bem mais grave. .Como assistiu a toda a turbulência pública entre o presidente da Federação Portuguesa de Futebol e o presidente do Comité Olímpico? A carta de não apoio que Fernando Gomes enviou aos presidentes das federações europeias, teve impacto na não eleição do Pedro Proença. Podemos fazer essa leitura?Parece-me que é óbvio, não é? Quando o anterior presidente da Federação, que está há vários anos naquele Comité, diz a todos os que conhece ‘não votem no meu sucessor’, é óbvio que isso teve impacto.Se isso teve impacto e lesou o futebol português, não devia estar também ele sob escrutínio?Fernando Gomes devia dar uma justificação, do porquê de agir dessa forma. Não sei a natureza da relação entre os dois. Independentemente de quaisquer queixas que Fernando Gomes pudesse ou não ter, não deveria ter transferido esse eventual capital de queixas para a esfera europeia. Foi um erro e penso que é criticável. Tenho uma relação bastante cordial com os dois, mais com Pedro Proença, que tem manifestado muito interesse nestes temas e já lhe disse que apresentava algumas sugestões de como é que se poderia reforçar essa componente no futebol português.Estamos em pré-campanha, o que sugere para a próxima legislatura nesta matéria? Que modelo de regulação e supervisão?Que o Governo assuma um papel proativo na promoção de uma agenda, nesta matéria, ao nível da União Europeia, e até a criação de uma agência independente para supervisionar que a autonomia das federações desportivas é exercida de acordo com princípios de boa governação. O Estado pode também rever a Lei Quadro das federações desportivas e criar incentivos a um comportamento melhor de todos os agentes. Pode ainda criar um sistema de testes de avaliação de integridade prévia ao exercício de certos cargos. O próprio COP e a FPF poderiam pensar nisso, mas independentemente disso, o próprio Estado poderia impor, como o fez para os bancos. E ao mesmo tempo que alterasse a lei ou reformulasse o IPDJ para assumir esse papel, começar a preparar as sociedades desportivas portuguesas para a aplicação da diretiva europeia do de branqueamento dos capitais.De onde vem a ligação ao Desporto? Existe um passado de desportista?Joguei futebol quando era jovem, na Naval 1º de maio, mas não veio daí. Passaram-se muitos anos até eu ter um outro tipo de ligação ao Desporto. A determinada altura, quando eu era professor no Instituto Universitário Europeu, em Florença, pediram-me que desse a minha opinião no desenho do sistema de Financial Fair Play. Esse foi o primeiro envolvimento, mas do ponto de vista profundo foi no Comité de Governação da FIFA. Acabei por estar apenas 10 meses nesse Comité. Aceitei no pressuposto que era para aplicar as regras, mas a partir do momento em que começámos a tomar algumas decisões difíceis o presidente da FIFA teve de escolher... mas fiquei muito interessado pelos temas. Fui desafiado para cargos similares, mas sempre resisti porque entendi que não estavam reunidas as condições. Eu aprendi com aquela experiência e não excluo tentar de novo ter um papel daquele tipo ao nível do Desporto, mas só o faria com garantias muito fortes de independência. E isso não é fácil de obter.isaura.almeida@dn.pt.Poiares Maduro: “Devíamos ter uma política de impedimentos muito mais clara ao nível dos deputados”