Memórias de Carlos Lopes: O massagista de McEnroe, os ténis Nike e o papel da mulher
Farto de ouvir as mesmas histórias sobre si mesmo, Carlos Lopes decidiu abrir o álbum das memórias nunca antes contadas, numa biografia personalizada a propósito dos 40 anos da primeira Medalha de Ouro de Portugal em Jogos Olímpicos. Foi na madrugada de 12 de agosto de 1984, na maratona, até então uma disciplina sem tradição num país de fundistas.
O livro Carlos Lopes. Lenda nunca assim contada, da editora Visão & Contextos, teve o lançamento adiado devido à morte de José Manuel Constantino, presidente do Comité Olímpico de Portugal, e faz parte de uma série de homenagens ao primeiro Campeão Olímpico português - há outra obra, da autoria de Rogério Azevedo, sobre os recordes, que também aguarda data de apresentação.
O DN pré-publica hoje, em exclusivo, três memórias contadas na primeira pessoa ao jornalista António Simões: como a mulher Teresa foi vital na conquista da medalha, entre as zangas com Moniz Pereira, como a Nike lhe fez uns ténis personalizados, antecipando o ouro que iria conquistar com Recorde Olímpico (2.09.21 horas), e a ajuda do massagista de John McEnroe.
Simular Los Angeles entre a Malveira e a Coutada
“Grande parte da preparação para a maratona dos Jogos, fi-la entre a Malveira e a Coutada, por caminhos quase sem bermas. Não, nunca achei perigoso treinar nesse percurso, até porque tinha sempre a cobertura de um carro, com o meu cunhado e a minha mulher. O percurso era muito idêntico ao que teria em Los Angeles e, para treinar os 36 graus e os 80% de humidade que me esperavam, começava a correr às 11 e tal da manhã para acabar perto das duas tarde. Tinha a minha mulher e o meu cunhado de cinco em cinco quilómetros com os abastecimentos, os abastecimentos postos em cima do capot do carro - ou, então, mais à frente, de forma a apanhar água com a mão. Sim, treinei todas essas coisas ao pormenor, por minha iniciativa e sensibilidade, líquido que utilizava o XL1, que eu comprava e adaptava. De Torres Vedras à minha casa na Coutada eram 10 quilómetros certinhos. Era sagrado: teria de fazê-los em 29 minutos, por julgar que para ganhar Los Angeles teria de fazer os últimos 10 quilómetros em 29 minutos - e fazendo, como fiz, os últimos cinco em 14.30 foi aí que eu comecei a deitar a mão ao ouro.”
Massagista de McEnroe antecipou a vitória
“Os [ténis] que eu tinha para a maratona eram os Nike Terra TC muito levezinhos e extremamente maleáveis. Não pesavam sequer 200 gramas. Era com um par assim que eu esperava correr. Porém, a seis dias da maratona, a Nike chamou-me à sua sede, para me apresentar o massagista que trataria de mim, o massagista do John McEnroe, o tenista, que também trabalhava para a Nike. Mediu-me os índices corporais todos, da gordura à massa muscular, tudo o que tinha para medir - e ao fim da análise afirmou, sem nenhuma dúvida, que eu era o maratonista mais bem preparado para ser Campeão Olímpico. Ouvindo-o, um dos engenheiros da Nike pôs-me, logo de seguida, um papel no chão, debaixo dos meus pés, fez desenho para aqui, desenho para ali - e avisou-me: ‘Vamos fabricar-te uns sapatos novos, para tu correres a maratona!’
Na véspera da maratona levaram-me de novo à Nike para levantá-los. Tinham o símbolo em ouro, a marcar-me o destino. O massagista do John McEnroe voltou a tratar de mim durante duas horas, massajando-me da ponta dos pés à ponta dos cabelos, a tirar-me todos os nódulos que eu pudesse ter, a deixar-me em perfeição todos os músculos. Ah! Eu tinha um dedo do pé infetado. Ao atirar-lhe o desabafo: ‘Vamos lá ver se isso não me vai lixar amanhã’ - ele virou-se para mim e disse-me: ‘Não te preocupes!’ Pôs-me uma pomadinha e uma fita no dedo e... ‘Antes da prova tiras isso.’ Fazendo apenas vinte minutos com os sapatos dourados, os vinte minutos que eu fiz antes da prova - quando tirei a fita tinha o dedo completamente limpinho.
Tem piada: o que, depois, na prova, mais me custou foram os primeiros 5000 metros, por causa da massagem. Não, nunca na vida fora massajado assim, com aquela paciência, com aquela lisura. E a partir daí, dos cinco quilómetros, as pernas ficaram tão soltinhas, cada vez mais soltinhas que só me apetecia era fugir daquela malta toda. Vendo-me, pois, ali, com os cilindros do motor todos a cem por cento, lá tive de conter-me, porque na minha cabeça estava há muito a ideia de que só a partir dos 37 quilómetros é que tinha de dar-lhe o golpe.”
A entrada no estádio e cortar da meta em primeiro
“Nunca mais o esquecerei: cortei a meta e afirmei num clamor: ‘Fogooooo! Esta já ninguém ma tira!’ Aliás, não foi bem fogooooo que eu disse, foi outra palavra, palavra parecida que não posso repetir num livro! Continuei a correr, dei volta à pista a acelerar, a volta que gostaria de ter dado com Teresa, se ela tivesse conseguido chegar à minha beira a tempo. Estava assim, sem que o cansaço me tivesse estoirado porque, na verdade, não tinha sido preciso ir aos limites, não tinha sido preciso dar tudo de mim até à ponta dos cabelos - e, quando já tinha a Teresa à minha beira, ainda me saltou à ideia fazer, então, mais uma volta de honra, com ela. Não a fiz por respeito aos meus adversários.”