O menino descarado que se fez joia rara no Sporting e já marca na seleção
Matheus Nunes mudou-se do Brasil para Portugal aos 13 anos com a mãe e o padrastro português, e chegou a trabalhar numa pastelaria na Ericeira. Hoje é figura no Sporting, elogiado por Pep Guardiola, e já vai dando nas vistas na seleção portuguesa. Este trabalho foi originalmente publicado a 22 de fevereiro.
O relatório do scouting do Sporting e o depoimento do então treinador da equipa de sub-23 eram claros na recomendação da contratação de Matheus Nunes. "É um grande talento" e "vale a pena correr o risco". O risco era pagar meio milhão de euros por 50% do passe de um jogador adulto, quase sem formação ou presença em seleções, que até aos 19 anos só tinha jogado nos distritais. E tudo isto num contexto de crise profunda para os lados de Alvalade, com mudança de presidente e cinco treinadores numa época. Matheus entretanto fez-se jogador, é hoje titular absoluto no Sporting e até já foi chamado à seleção nacional por Fernando Santos, estreando-se a marcar de quinas ao peito na quinta-feira, o terceiro golo frente à Macedónia que deixou Portugal mais perto do Mundial 2022.
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A prospeção leonina "já o tinha debaixo de olho" por causa da Liga Revelação, mas quando Alexandre Santos, então treinador dos sub-23, recomendou a aquisição do médio que o tinha deslumbrado no Estoril, as observações foram intensificadas. "Tinha um perfil diferente, que valia a pena seguir. Projetava um conjunto de características raras no mercado, que podiam ser alavancadas pelo treinador da equipa principal", explicou ao DN o então diretor do scouting, José Chieira, que deixou o cargo em dezembro.
Habituado a não ter preconceitos com perfis diferentes, para ele o importante é perceber o que há de treinável no jogador para o potenciar tendo em vista o mercado. Por isso, "mesmo tendo consciência do processo formativo retardado e menos qualificado, isto na teoria, porque a realidade mostrou o contrário", Chieira e os colegas sabiam que ele "seria sempre um jogador que, com uma intervenção no momento certo, poderia atingir patamares muito interessantes".
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Havia também algumas "ameaças" sinalizadas. "A perceção dos espaços e dos momentos não era a necessária na altura, algo normal, porque a exigência que ele tinha em nível de treino e nos sub-23 era diferente do que aquilo que seria a exigência no Sporting, mas também aí vimos potencial. Se evoluísse ao nível de biomecânica, isso ajudá-lo-ia a melhorar a perceção de espaço", explicou.
Numa questão de meses, as coisas a melhorar transformaram-se em mais-valias. "Ao contratar Rúben Amorim, o Sporting encontrou o parceiro perfeito para o Matheus passar para outro patamar. O treinador percebeu tudo e encontrou maneira de o potenciar a um nível estratosférico, deu-lhe soluções e instrumentos para crescer com o jogo", elogiou o ex-diretor de scouting.
Segundo Chieira, o perfil psicológico - "nem sempre é devidamente analisado ou enquadrado nos processos de recrutamento"- mostrava grande dimensão volitiva ao nível comportamental: "O Matheus tinha uma presença grupal muito empática e positiva e revelava uma enorme disponibilidade para aprender e ouvir. Um "menino descarado" mas muito respeitador e sério em todos os ambientes e circunstâncias."
E também por isso a ascensão do jogador é uma história de encantar, com muitos capítulos ainda por escrever. Contraria todo o processo do futebol moderno, assente na formação nas academias, alguém que ouviu tantas vezes "não fica", "não serve", "não é o que procurámos" e que chegou a duvidar dele próprio. A mãe não o deixou desistir do futebol e hoje é campeão nacional pelo Sporting e "um dos melhores jogadores do mundo neste momento", segundo Pep Guardiola, que assim o elogiou após a goleada dos leões com o Manchester City (5-0).
Não, não, não, não... Simmm!
Nascido no Brasil a 17 de agosto de 1998, Matheus sonhava jogar futebol, mas aos 13 anos teve de se mudar para Portugal com a mãe e o padrasto português. Na Ericeira, trabalhou na pastelaria do padrinho, Humberto Salvador, antigo jogador do clube da Ericeira, para ajudar a família (tem três irmãos), ao mesmo tempo que jogava no Ericeirense, nos distritais da AF Lisboa.
No primeiro ano de sénior foi para o Oriental (Lisboa), para jogar o Campeonato de Portugal (terceiro escalão). As coisas até pareciam estar a correr bem, mas uma lesão na coxa obrigou-o a parar duas semanas e quando regressou... foi dispensado. Desanimado e algo envergonhado, voltou ao Ericeirense. Mas o talento era tanto que foi treinar ao Leicester durante duas semanas. O clube sagrou-se campeão da Premier League e no meio da festa não havia tempo para lhe dar atenção, e o médio voltou a Portugal. Ainda foi fazer testes ao Lille, ao Sp. Braga e ao Benfica, onde o relatório, segundo disse o padrinho ao MaisFutebol, foi: "Tem valor, mas não está preparado para a exigência de uma II Liga e da equipa B do Benfica."
O cenário mudou quando Luís Freire (agora no Rio Ave), que tinha treinado o Ericeirense, foi orientar o Estoril e pediu ao clube para olhar para um tal de Matheus Nunes. Foi assim que ele acabou nos canarinhos. Treinava com a equipa principal, mas jogava mais pelos sub-23, sob as ordens de Alexandre Santos, que em dezembro de 2019 foi convidado a orientar os sub-23 do Sporting e sugeriu a contratação do médio, segundo contou ao DN. "Disse-lhes que o Matheus Nunes era um grande talento. Se ele sem formação revela capacidades natas para interpretar o jogo, bem orientado e num clube estruturado como o Sporting explodirá."
Passados dois anos, o agora treinador do Petro de Luanda (líder em Angola) não tem dúvidas de que aquele rapaz humilde e introvertido chegará ao mais alto nível do futebol mundial. Já na altura o médio impressionava também pelo perfil morfológico: alto, longilíneo e ágil. "Não tem um ar guerreiro, mas não precisa disso. Ganha duelos com o corpo e sem meter o pé. E com poucos toques ou só com um, às vezes, consegue tirar o adversário do caminho e sair em contra-ataque, assim como faziam Iniesta e Xavi", sublinha Alexandre Santos.
"Não é fácil encontrar um médio que consiga pressionar muito bem em zonas altas e ser agressivo em zonas mais baixas. Não é fácil passar de uma situação de recuperação para uma de ataque, e ele faz isso com uma naturalidade que assusta, até mesmo nos jogos grandes. Não joga para trás e para o lado, é vertical. Acho que é por isso que o Guardiola disse aquilo. Essa verticalidade faz dele o jogador ideal para a Premier League. Muitos dos golos do Sporting surgem de passes dele ou transições", elogiou o antigo adjunto de Peseiro.
Depois de ouvir Guardiola, Alexandre Santos mandou-lhe uma mensagem a dar os parabéns por ter arrancado tamanho elogio a um dos melhores treinadores da história e ele respondeu que "preferia ter ganho o jogo". Isso, segundo o técnico, "mostra o nível de comprometimento que tem para com a equipa. O Matheus nunca teve nada dado, foi tudo conquistado, por isso valoriza as oportunidades que lhe dão. Nunca se queixa de jogar só cinco minutos, aproveita-os ao máximo".
"Vai pagar Rúben Amorim"
Tinha 20 anos quando o Sporting o contratou a troco de 500 mil euros (50% do passe), em janeiro de 2019, ficando o clube com a opção de adquirir mais 30% por mais 450 mil euros, o que fez antes do prazo. Tal como aconteceu em 1997, quando um dirigente leonino aceitou pagar cinco mil contos (25 mil euros) por Cristiano Ronaldo, então com 12 anos, também o valor pago pelo luso-brasileiro deu que falar no universo sportinguista e levou o presidente, Frederico Varandas, a defender-se dizendo, para espanto de muitos, em entrevista ao Canal 11 que "só Matheus Nunes vai pagar Rúben Amorim".
Ora, tendo em conta que o técnico custou 10 milhões de euros (mais juros), essa fasquia parece agora irrisória para aquilo que Matheus Nunes já vale - 30 milhões de euros, segundo o site Transfermarkt - ou para os 60 milhões que o Sporting espera receber pela sua joia rara no muito provável leilão durante o mercado de verão.
Matheus Nunes foi chamado pela primeira vez à seleção portuguesa por Fernando Santos para os jogos contra o Qatar (particular) e Luxemburgo (qualificação para o Mundial2022), em outubro do ano passado. E estreou-se a 9 de outubro com o Qatar.
O técnico Fernando Santos, da seleção de Portugal, anunciou nesta quinta-feira a lista de convocados para os jogos contra Catar (amistoso) e Luxemburgo (Eliminatórias para Copa de 2022) em outubro.
Na quinta-feira, entrou na segunda parte e ainda a tempo de se estrear a marcar de quinas ao peito. "Marcar foi incrível. Mas o sabor da vitória foi ainda melhor. O golo não teria o mesmo sabor se não tivéssemos vencido", disse radiante no final do jogo.
Trabalho originalmente publicado a 20 de fevereiro de 2022 e esta sexta-feira republicado.