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Desporto
21 janeiro 2021 às 07h00

O miúdo que quer ser melhor do que Ronaldo e Figo e campeão pelo Sporting

Na terça-feira vestiu a pele de herói ao marcar os dois golos que eliminaram o FC Porto e puseram os leões na final da Taça da Liga. Chegou à Academia em 2014. Esteve um ano sem jogar, mas o clube não desistiu dele.

Veio de Cabo Verde para jogar no Benfica, fez testes no FC Porto e acabou no Sporting. Este é um resumo da chegada de Jovane Cabral ao futebol português. As versões variam conforme quem conta, mas há uma certeza. Começou a jogar na EPIF, associação de Santiago, a segunda maior ilha de Cabo Verde, fundada em 1991 e transformada em fundação em 2011, que forma jovens futebolistas ao mesmo tempo que contribuiu para a educação cívica, física e desportiva.

Aos 22 anos, Jovane já passou por muito, mas os olhos continuam a brilhar quando vê uma bola e por vezes caem-lhe lágrimas de emoção. Foi o que aconteceu na terça-feira, quando saltou do banco para marcar dois golos ao FC Porto e apurar o Sporting para a final da Taça da Liga -a equipa estava a perder quando ele entrou em campo e deu a volta ao resultado com dois golos em oito minutos.

O trajeto teve alguns percalços e levou-o ao Sporting em 2014. Natural da cidade de Assomada (16 de junho de 1998), saiu de Cabo Verde para ir fazer testes ao Benfica. Um empresário português viu-o jogar no Grémio de Nhagar e convidou-o para viajar para Portugal. Foi preciso convencer o pai, que deu autorização e o acompanhou.

Chegado a Lisboa, foi desviado para o Porto. Foi ao centro de treinos dos dragões fazer testes, mas a avaliação demorou mais do que o que o pai esperava. Sem paciência para esperar, seguiu com Jovane para Lisboa. Tinha família na zona de Massamá e foi para lá que se dirigiu. Para não ficar sem treinar, foi fazer uns treinos ao Real. Não demorou muito a chegar à academia leonina, mas a aventura no Sporting não começou como queria.

O presidente do antigo clube, em Cabo Verde, não facilitou, e Jovane ainda teve de esperar quase um ano até ver a questão burocrática resolvida. O Sporting não desistiu. Ficou sem jogar e depois foi integrado nos juvenis B, na chamada geração de 99, apesar ser um ano mais velho. Jogou com Maximiano, Rafael Leão, Miguel Luís, Daniel Bragança, Thierry Correia e Elves Baldé. No primeiro jogo marcou logo quatro golos, numa goleada por 15-0.

Foi treinado por Pedro Gonçalves na época 2015-16. O atual selecionador de Angola, viu logo ali "um menino deslumbrado com a bola, muito humilde e com uma massa muscular acima do normal para a idade". Tinha 15 anos e acabou por ser "um elemento fundamental na conquista do título de campeão distrital no seu primeiro dérbi com o Benfica e primeiro título da carreira".

A evolução foi natural e com muito ginásio à mistura - gosta de levantar pesos. Aos 17 anos bateu o recorde de elevações nos testes da Academia. Hoje é um portento de força e explosão.

A estreia com a camisola principal do Sporting foi pela mão de Jorge Jesus, num jogo da Taça de Portugal com o Oleiros. Mas foi com José Peseiro que se destacou. O técnico já o conhecia, e pode-se dizer que foi uma espécie de amor à primeira vista. Mostrou-se, ficou no plantel principal e foi convocado para a estreia na Liga 2018-19, frente ao Moreirense (3-1). Jovane começou o jogo como suplente e saltou do banco aos 69 minutos, numa altura em que os leões estavam empatados (1-1). Entrou para o lugar de Acuña e, nem um minuto depois, arrancou pela área do Moreirense fora e sofreu a falta que permitiu a Bas Dost, na marcação do penálti, fazer o 2-1 e catapultar o Sporting para o triunfo final. Uma entrada em grande que prometia dar seguimento à tradição cabo-verdiana no Sporting, depois de Nani (ídolo de infância) e Gelson Martins.

"Só pelo Jovane valeu o protocolo Batuque", atirou Bruno de Carvalho, já depois de destituído da presidência leonina. Um logro. Jovane veio do Grémio de Nhagar em 2014 e o protocolo que ele assinou com o Batuque FC foi assinado em 2017.

Há pouco mais de dois anos tinha um contrato de formação sem cláusula de rescisão, algo que Sousa Cintra se encarregou de mudar. Com a chegada à liderança da SAD na altura conturbada da vida do clube, com a destituição de Bruno de Carvalho, o ex-presidente, que assumiu a gestão do futebol, deu ao jogador "um contrato digno de um jogador do Sporting".

Assinou até 2023 e passou a ganhar 10 mil euros por mês. Sousa Cintra queria apor uma "cláusula de rescisão de 120 milhões de euros, mas os empresários não foram na conversa e ficou nos 60 milhões". O ex-presidente soube das dificuldades familiares do jovem jogador, que tinha o pai preso, a mãe emigrada em França e vivia com a madrasta numa casa sem muitas condições num bairro social e ajudou-o "com um prémio de assinatura de 100 mil euros para ele comprar uma casa".

Ele só dizia querer ser melhor do que Ronaldo e Figo, os jogadores formados no clube - os únicos eleitos melhores do mundo - que o Sporting ostenta com orgulho nas paredes da sala de reuniões, em Alvalade.

Nessa altura, o extremo brilhava no Sporting aos 19 anos e Cabo Verde olhava para ele de olhos arregalados, mas Jovane confessava querer jogar por Portugal. O jogador pediu a nacionalidade portuguesa e renegou à equipa de Cabo Verde com alguma polémica à mistura.

Em 2018, Rui Águas, então selecionado de Cabo Verde, convocou-o para um estágio de preparação para o jogo com o Lesoto, de apuramento para a CAN 2019. Jovane não se apresentou, tendo depois comunicado a indisponibilidade para servir o país que o viu nascer. "Tenho o sonho de ser campeão no Sporting e ajudar a seleção portuguesa", justificou o jogador.

Mário Semedo, presidente da Federação cabo-verdiana, questionou a opção: "Não sei porquê a seleção portuguesa e não Cabo Verde. Se ele é cabo-verdiano, saiu daqui como jogador da seleção, porque tem de jogar por Portugal?" A polémica passou, mas Jovane continua à espera de uma chamada da seleção portuguesa.

A evolução enquanto jogador foi comprometida pelas eleições no Sporting e pela mudança de treinador. Peseiro deu lugar a Marcel Keizer e logo se percebeu que Jovane ia ficar na bancada muitas vezes. Voltou a ser opção com os interinos Leonel Pontes e Tiago Fernandes de forma intermitente, e uma lesão impediu que estivesse à disposição de Silas. Pelo meio foi detido por conduzir sem carta. O Sporting avisou que a provar-se que o título de condução apresentado pelo atleta era falso, seria "alvo de um processo disciplinar e severamente punido". Mais uma polémica que passou...

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Sem jogar, o clube colocou-o no mercado e pedia entre 10 e 15 milhões de euros. O preço assustou os interessados que todas as semanas faziam manchetes nos jornais. Mas eis que chegou Rúben Amorim a Alvalade e Jovane ganhou uma nova vida. Decisivo desde a retoma do campeonato, o camisola 77 foi a principal referência da equipa na reta final da época passada - terminou o campeonato com seis golos em 16 jogos.

Atormentado por várias lesões musculares, nesta temporada tem sido menos efusivo, mas já leva seis golos em 12 jogos e foi o responsável por o Sporting estar na final da Taça da Liga.

Com contrato até 2023 já está a negociar a renovação. O camisola 77 dos leões deve assinar até 2025 e com um considerável aumento de ordenado.

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