"Hoje falamos em surf e as pessoas só pensam em Nazaré e McNamara"

Almoço com João Aranha, presidente da Federação Portuguesa de Surf
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Foi da praia de Carcavelos que o escritório da Federação Portuguesa de Surf fez casa, mas para João Aranha as ondas têm mais paixão no lado de lá do Tejo. É isso e o facto de ser o restaurante de um dos muitos amigos a quem o surf o juntou que nos leva ao Café do Mar, na Costa de Caparica. Aquelas praias estão-lhe no sangue. "É um sítio fantástico. E olha-se para a água e há sempre gente." Aos 11 anos, ele próprio apanhava a camioneta de Benfica para a Praça de Espanha e depois para a Costa de prancha debaixo do braço - oferecida pelo pai uma vez cumprida a promessa de ter boas notas. Passados 38 anos, ainda se mantém atento àquele mar, ainda que os compromissos assumidos enquanto presidente da Federação Profissional de surf - que abarca ainda bodyboard, stand-up paddle, longboard, skimboard, bodysurf, kneeboard, tow in e tow out, num total de 1800 atletas federados -, lugar que ocupa desde 2013, lhe roubem muito do tempo que preferiria passar dentro de água.

"Há provas todo o ano. São cerca de 99 campeonatos de sete desportos e é um puzzle gigante para resolver. Basta a World Surf League (WSL) mudar uma prova para escangalhar o calendário todo. Este ano tem sido péssimo porque o mar não está famoso e isso obrigou-nos a adiar mais de 40 provas que teremos de realizar mais para a frente." Nada que o desanime, porém. Mesmo porque, apesar de se confessar alguém a quem a vida vai acontecendo sem realmente fazer planos - "agora que tenho um filho de 7 anos, começo a pensar que isso talvez tenha de mudar", ri-se -, assumir estas funções era um sonho antigo. "Mesmo em criança, achava que podia fazer coisas acontecer." E é a isso que agora se dedica, juntamente com as outras duas pessoas que compõem a federação, um número reduzido que traz dificuldade acrescida às funções de representação, mas que não o impede de desejar poder aumentar o número de atletas. "Só tenho federados atletas, que têm um número limitado de competições. É pena que não haja possibilidade de criar uma figura de sócio-simpático ou de lazer, mas o Estado só admite federados atletas."

Crítico dos limites impostos e da falta de apoios públicos a um desporto que tanto tem dado à economia portuguesa, é por aí que começamos a conversa, depois de escolhido o almoço - à falta de atum fresco para os bifes braseados que nos chamaram a atenção, fariam as suas vezes um polvo à lagareiro e um bitoque em doses mais do que generosas. "As regras são muito apertadas, mas os benefícios e subsídios estão longe de estar à altura, sobretudo para um desporto que é como a Pasta Medicinal Couto, anda na boca de toda a gente. Hoje o surf é uma realidade bem diferente do que era há uns 20 anos. Dantes, toda a gente levava uma bola para a praia, hoje levam a prancha. E está muito mais profissional."

Há porém problemas que se mantêm. Do Estado, a Federação recebe anualmente 140 mil euros e João garante que só com as seleções nacionais gasta 190 mil - e poupando ao máximo. O valor, definido de acordo com um racional em que pesam o número de federados, o facto de ser desporto olímpico e quantos anos tem a federação, não é só visto como insuficiente mas também como injusto. "O grosso do investimento está no WSL, que é onde está o retorno. Vender uma seleção nacional que desaparece para o outro lado do mundo não é fácil, mesmo tendo uma que é três vezes vice-campeã mundial, um feito inédito, e bicampeã europeia. E a parte do retorno do impacto no turismo que não fica nos cofres do Estado também vai toda para a WSL, o que eu já não acho tão aceitável. Neste momento, o surf é provavelmente o desporto que mais verbas traz ao turismo português: estima-se que sejam 600 milhões de euros para a indústria - a maior fatia para o turismo e o resto para as marcas de materiais, fatos, etc." E porque as coisas são mal distribuídas, garante, este ano as contas estão tão difíceis de gerir que as nossas seleções campeãs poderão não chegar a lugar nenhum. "Andamos há anos a tentar sensibilizar a tutela para serem mais flexíveis, para que olhem para o nosso esforço nos últimos quatro anos, mas de pouco tem servido." Nem o convite que levou pela primeira vez o secretário de Estado do Desporto a uma prova do WCT ou os périplos de João Aranha pela Assembleia da República têm ajudado. "Fui o primeiro a ir lá mostrar o que andamos a fazer. O problema é que hoje falamos de surf e as pessoas só pensam na Nazaré e em McNamara. E nem ele é federado nem a onda passa na Federação..." A atenção mediática desse tipo de eventos, porém, até já provoca desvios de patrocinadores dos atletas federados.

João leva já 28 anos de federado e está no segundo mandato como presidente, mas nem sempre a sua vida foi esta, como me conta enquanto nos entretemos com as imperiais, as azeitonas, pão e queijo fresco. Na verdade, uma parte importante das suas atuais funções e que foi também a sua área de licenciatura (no ISCTE), a Gestão, fica facilitada com a experiência que ganhou em missões humanitárias. Depois de ter montado com um amigo a primeira empresa de reciclagem e gestão ambiental portuguesa, durante quase dois anos, andou por zonas de emergência e de guerra com os Médicos do Mundo, enfrentou o pós-tsunami, surtos de ébola e cólera e viveu outros cenários de catástrofe. As suas funções, enquanto coordenador, passavam por montar e abrir a missão e depois geri-la. Confessa que passou momentos extremamente difíceis - lidar com a equipa e as populações, a corrupção, o perigo constante, a pobreza extrema, a morte -, em algumas alturas tornava-se frustrante, mas relata essas experiências com o entusiasmo de quem sente que fez alguma diferença no mundo. E hoje até admite que gostava de voltar a fazer algumas missões de emergência. "A verdade é que neste tipo de missões salvamos mais a nossa vida do que as daqueles que estamos a salvar."

Quando surgiu a ideia de se candidatar à Federação, estava a trabalhar na Out Jazz com um amigo. Tinham escritório no LX Factory e organizavam eventos - o que ainda continuou a fazer depois de assumir o leme, até entender que não havia como conciliar e mudar os estatutos de forma que o primeiro presidente fosse remunerado e pudesse assim dedicar-se em pleno à Federação. A sua missão é formar novos atletas e desenvolver as modalidades e as competições ao mais alto nível, além da representação internacional com as seleções. E ainda que considere "uma sorte, nestas condições, fazer uma prova WCT (Circuito Mundial Masculino) como a que conta com o apoio da Santa Casa e ter lá o Kikas", João enfrenta agora um desafio maior: chegar aos Jogos Olímpicos de Tóquio, onde o surf fará a sua estreia. Tem dito que Kikas e Teresa Bonvalot deverão conseguir carimbar o passaporte, mas nesta gaveta há ainda problemas sérios por resolver.

"É uma trapalhada, porque há um braço de ferro entre a International Surfing Association (ISA), que pôs o surf nos Jogos Olímpicos, e a WSL, que tem os atletas. Todos queremos o Kelly Slater nos Olímpicos, mas se a WSL bloquear não vai acontecer." Com a discussão a prolongar-se, Portugal está a ficar para trás na corrida ao financiamento para os Jogos. "O bolo é só um, resta saber se há fatia para o surf quando lá chegarmos..."

Independentemente das dificuldades, João nunca se arrependeu da escolha que fez e de vez em quando até vai tendo pequenas vitórias, como um projeto que estará para ser anunciado, de classificar as ondas portuguesas. "Esta por exemplo é uma praia de areia com três tipos de ondas diferentes e vamos classificar esses três corredores. Um propósito da classificação é dizer qual a prioridade de uso: competição, lazer, eventos ou comercial (escolas). Isso permite criar uma recomendação para disciplinar o uso das praias, que está uma confusão, com escolas a nascer por todo o lado. Nas nossas contas, há cerca de 600, apesar de só 200 estarem na Federação." A discrepância explica-se com a figura das empresas marítimo-turísticas, sob a qual muitas se inscrevem enquanto empresas de aluguer de pranchas, contornando burocracia e regras. Por outro lado, há escolas estrangeiras que fazem "operações-bomba" e fogem ao controlo: "Vêm de Espanha para Sagres, dão a aula e piram-se, ou chegam a Peniche, com russos e checos, e é incontrolável. Há quem diga que a federação devia ter um papel ativo nesse controlo, mas somos três... nem a praia de Carcavelos cobríamos."

Porque estamos na esplanada a dois passos do mar, pelo paredão vão passando surfistas e inevitavelmente há alguém que o conhece e cumprimenta. Acontece meia-dúzia de vezes durante o nosso almoço e João Aranha lembra que foram esses os amigos que ficaram na sua vida. "Há dias de mar maior em que nos assustamos e é melhor estar com amigos, isso aproxima-nos, como quando vamos competir fora", explica.

Somos interrompidos pelo meu polvo e o bitoque. João fala-me do que mais o anima. Como os "excelentes treinadores que já temos, como o David, o nosso selecionador, que participou na formação do Kikas, do Vasco, da maioria dos top de Portugal. E já temos uma geração de miúdos filhos de atletas. O Afonso, filho do João Antunes, é um talento incrível, o melhor júnior que temos. Os nossos talentos mais fortes estão dos 14 anos para baixo e no surf feminino há valores incríveis. A oferta de atletas é hoje tão grande que já é difícil arranjar patrocínios. Quando assumi a Federação, eu mudei o formato do circuito de esperanças: eram sete campeonatos com 80 surfistas por campeonato e era uma carga enorme quer para os miúdos quer para os pais terem de andar pelo país todo, além do que desequilibrava a formação regional. Então criámos circuitos regionais de competição para se qualificarem para as finais nacionais. Com isso passámos de 150 para 700 atletas, criámos muito sangue novo, e cada vez mais aparecem miúdos de 7 a 10 anos com grande capacidade."

De resto, Portugal está a ganhar espaço, enquanto destino de surf e João recebe cada vez mais pedidos de informação. O que não é para admirar: "Saiu agora um estudo da Bloom Consulting que diz que somos o país europeu mais procurado, à frente de França, Espanha e Canárias." E se as ondas contam muito neste campeonato, a comida, a forma de recebermos, os preços baixos e a segurança ajudam a compor a oferta. "Depois dos atentados de Paris, tivemos uma enchente de franceses, e agora começa a haver imensos brasileiros de classe alta que vêm para cá viver." Essas chegadas também têm influência no desporto. "O venezuelano Justin Mujica, que imigrou há 12 anos, tinha um nível tão incrível que revolucionou o surf; o mesmo aconteceu muitos anos antes com o Almir Salazar (Brasil). E termos o Pedro Henrique (luso-brasileiro) cá na seleção é excelente, é um ex-vice-campeão do mundo da WCT que vestiu a camisola e nos tem dado todo o apoio, e no ano passado deu-nos o terceiro lugar do mundo."

Outro ponto positivo do trabalho que tem vindo a fazer é a aproximação que tem havido a outras federações e que ajudam a abrir os horizontes e a enfrentar desafios. "Estamos agora ligados a um projeto muito giro da Católica, da Deloitte e do Instituto Português do Desporto e Juventude que é o Promentor, cujo objetivo é melhorar e potenciar as capacidades das federações, torná-las mais profissionais, ganhar mais instrumentos de trabalho e gerir melhor. Esse projeto ajuda-nos a pensar fora da caixa, aproxima-nos, ainda que continue a haver competição no que respeita a financiamento."

Com o almoço a chegar ao fim e os cafés já à nossa frente, João Aranha confessa que tem ainda uma pedra no sapato: que o skate tenha sido retirado da sua Federação para a patinagem. Mas aos 49 anos, o que realmente o tira do sério é a subjetividade das pontuações dados pelos juízes em competições em que esteja com as seleções nacionais. "Em campeonatos em que estamos com o sangue todo na guelra, passamos o dia aos berros. Às vezes perco as estribeiras, porque quando são as seleções que estão em jogo isso mexe connosco de uma forma diferente e uma injustiça para com um dos nossos atletas deixa-me doente."

Ainda não sabe o que fará quando terminar os três mandatos que espera cumprir à frente da Federação - "nunca tive um emprego por currículo" -, mas uma coisa é certa, a ligação ao mar continuará tão forte como sempre. Ou não fosse ele filho de um comandante da marinha mercante. "Em miúdo, as minhas férias eram passadas embarcado num cargueiro a caminho de Marrocos, Macau, Angola, Guiné, Senegal; e não havia GPS, era a bússola e o rádio. Às 5.00, o meu pai pegava no sextante e planeava a viagem. É uma experiência incrível que me ajudou a crescer no mar, mas o surf fez uma diferença ainda maior, porque o navio sempre tem um motor, mas quando estamos em cima da prancha temos de estar sempre à procura da melhor maré, do vento, da ondulação." Ainda hoje, não há dia em que não veja as marés antes de se deitar - "Era o que me animava quando estava nas missões, mesmo que estivesse no meio do Congo; e foi o que me fez garantir notas para entrar para a faculdade: não queria correr o risco de ser colocado numa faculdade fora de Lisboa e não poder continuar a surfar na Costa."

Curiosamente, e ainda que a mulher, meio alemã e naturopata/violinista de profissão partilhe a sua paixão, o filho não é fã. "Acredito que ele veja a prancha como o instrumento do diabo que leva o pai para fora uns três meses por ano", brinca. "Eu também treinei imensos desportos antes de me fixar no surf e também competi em natação por isso ele tem tempo para decidir o que quer."

Antes de nos despedirmos, volta ao sonho dos Jogos Olímpicos. "É incrível, é o maior evento desportivo e estar nessa família traz-nos uma projeção e respeito diferentes. Só de pensar que estamos a competir na prova em que os gregos competiram..." Por agora, é nesse projeto que está totalmente focado. "A primeira coisa que tenho de ter na cabeça é o crescimento dos atletas, a sua evolução. E que sejam capazes de levar o nome de Portugal e a nossa bandeira mais longe. Esse é o maior orgulho que se pode ter."

Café do Mar

4 imperiais
Pão e azeitonas
Queijos frescos
Pão e manteigas
Polvo à lagareiro
Bitoque grelhado
Cafés

Total: 41,90

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