Futebol foi o sonho americano de Francisco Marcos, um português fanático pelo Sporting e pioneiro do 'soccer'
Francisco Marcos ainda é do tempo em que os americanos “nem sabiam se o futebol era jogado com uma bola redonda ou quadrada”. Foi ele, um português do Bombarral apaixonado pelo futebol dos Cinco Violinos e do Sporting, que sonhava ser como Carlos Gomes e Travassos, que ajudou os EUA a despertar para a modalidade rainha na Europa, a que os americanos “teimam” chamar soccer (futebol) para não o confundirem (ou ofenderem, a linha é ténue, para eles) com o futebol americano, que é completamente diferente, a começar pela bola, que é oval, e pelo facto de ser jogado com as mãos.
É um dos pioneiros do futebol nos EUA e viu o seu contributo para a evolução da modalidade no país reconhecido em maio de 2024, com a entrada no Hall of Fame do Soccer. Afinal criou campeonatos, contratou estrelas do futebol europeias, como Pelé, Eusébio, António Simões e George Best, que serviram de chamariz nos anos 70, e esteve 26 anos como presidente executivo daquela que se tornou a maior Liga de futebol dos Estados Unidos, antes da atual Major League Soccer (MLS).
Tudo começou numa feliz emigração. O pai tinha-se casado de novo, depois da morte da mãe, quando, em 1959, resolveu entrar num barco à procura do sonho americano com a nova mulher, que tinha conseguido um visto para ser cozinheira do embaixador do Brasil para as Nações Unidas. Francisco só foi em 1961, altura em que Portugal entrava na Guerra Colonial que iria durar até 1974.
Foi direto a Greenwich Village, na Baixa de Manhattan. Sabendo da sua paixão por futebol, um amigo convidou-o a ir a uma reunião da Liga de Nova Iorque e eis que ouve perguntar se algum dos presentes conhecia algum jogador de futebol que quisesse fazer parte de uma equipa de uma universidade. Foi como se estivesse sozinho na grande área à espera de fazer golo. Estava a trabalhar no Saint Clare’s Hospital para ganhar dinheiro para ir para a universidade e não podia falhar tamanha oportunidade.
Jogar futebol e ainda ganhar uma bolsa para estudar era o sonho tornado realidade. Mudou-se então para Oneonta para estudar Literatura e Línguas no Hartwick College, que já competia na I Divisão do Campeonato Universitário e que chegou a ser campeã em 1977. Francisco gosta de contar a sua história entrelaçada com a daqueles com quem se cruza e, por isso, diz que recebeu o diploma no dia em que Robert Kennedy foi assassinado. “Um dia marcante.”
Ainda estudante integrou a digressão da equipa pela Europa e chegou a jogar com o Ajax onde despertava Johan Cruijff. E se essa digressão não contemplou Portugal, tratou de ser ele a organizar a próxima, para que Lisboa fizesse parte do roteiro futebolístico. E correu tão bem que criou uma empresa só para organizar digressões de equipas americanas ao oásis do futebol europeu. Fez 75 digressões.
Com Pelé tudo mudou
Portugal já celebrara o 25 de Abril de 1974, quando o Campeonato Norte-Americano começara a atrair nomes como Pelé, Eusébio, Manuel Fernandes e Jordão, Cruijff, Beckenbauer ou George Best, e o treinador Al Miller delegou em Francisco a prospeção de bons jogadores europeus para reforçar os Philadelphia Atoms. O português sugeriu cinco jogadores ingleses, incluindo Roy Evans, que viria a ser treinador do Liverpool.
Nesse ano, os Philadelphia Atoms foram campeões da North American Soccer League (NASL), a antecessora da atual MLS, e os Tampa Bay convidam-no para ser diretor de Desenvolvimento e Operações. Ele, com as excursões, vendeu a empresa e mudou-se para Tampa. “Passados quatro anos, os Dallas Tornado ofereceram-me o dobro para ser vice-presidente para o Futebol. Lá fui para Dallas, onde contratei, entre outros, o António Simões, com quem desenvolvi uma grande amizade”, contou ao DN, acrescentando que depois foi para o Canadá, para os Calgary Boomers, mas não gostou e abandonou o projeto.
O mesmo sentido tomou de assalto os donos da NASL, que em 1984 decidiram acabar com o Campeonato de soccer. Mas Francisco não podia deixar morrer ali a sua paixão pelo futebol: “Para mim, o futebol era a única modalidade. Voltei para Dallas e, em 1986, fundei a Southwest Indoor Soccer League (SISL). Começou no Texas, Oklahoma e Novo México, com cinco equipas, que jogavam uma espécie de futebol de salão.”
A liga era amadora e os jogadores não ganhavam, mas o campeonato foi um sucesso. Francisco era dono e presidente da Liga e foi vendendo franquias — nos EUA cada clube é como se fosse uma empresa, com autorização de uma liga para operar numa cidade, por isso, todas as equipas começam com o nome da sua cidade. “Em dez anos crescemos de cinco para 74 equipas e o campeonato passou a ser nacional”, recordou Francisco, que aproveitou o curso de Literatura e Línguas, para, entre outras coisas, entrar no mundo dos media. Chegou a diretor do jornal universitário e a trabalhar na rádio universitária e num canal de televisão por cabo, mas sempre ligando com o futebol.
E aproveitou a atribuição do Mundial1994 aos EUA para alavancar a modalidade, com ajuda da população imigrante, principalmente os sul-americanos e os europeus, com as comunidades portuguesa, italiana e irlandesa. “Em 1989, lancei o campeonato de futebol de onze, mantendo o de pavilhão (futsal) no inverno. A FIFA impôs a criação de uma liga de I Divisão, hoje MLS, e a Federação de Futebol dos Estados Unidos (US Soccer), em 1992, abriu negociações para admitir uma liga profissional da II Divisão e outra da III Divisão. Conseguimos ganhar a admissão e passámos a ter estatuto de fundadores.”
Evolução do futebol feminino começou no Congresso dos EUA
Entretanto, a Umbro apresentou-lhe uma proposta para comprar a Liga da III Divisão e ele vendeu uma percentagem. Esteve ainda ligado ao início do futebol feminino. Em 1994 criou a W League, que mais tarde também vendeu à Umbro, que, por sua vez, foi adquirida pela Nike, que a vendeu e extinguiu. O campeonato foi depois retomado em 2011 e o futebol feminino evoluiu mais rapidamente do que o masculino, mas esse mérito não é do português, mas da luta de um grupo de juízes progressistas.
Em 1976, o Congresso dos Estados Unidos aprovou uma lei a que chamou a Lei de Igualdade de Oportunidades, o que “simplesmente ditou que qualquer universidade que tivesse um tipo de desporto, teria de ter equipas masculinas e femininas”. E, de repente, havia 300 ou 400 universidades obrigadas a promover o desporto no feminino e, por uma questão de recursos humanos e financeiros, as universidades aproveitavam os treinadores do futebol masculino para o feminino.
Segundo Francisco, qualquer pai ou mãe que estava a pensar sobre o futuro da sua filha em termos universitários pensava conseguir bolsas no futebol: “As primeiras atletas, sem necessariamente serem boas jogadoras de futebol, mas rapidamente começaram a alcançar os níveis de seleções como a Noruega e se tornaram uma potência mundial do futebol feminino.”
Foi a geração de Mia Hamm que começou a escalada até ao topo, mas foi a geração de Alex Morgan e Megan Rapinoe que o tornou uma potência e serviu de inspiração para o Mundo. Hoje em dia, elas são idolatradas e cobiçadas pelas marcas, mais do que o lendário Landon Donovan, capitão da seleção masculina, que fez carreira na Europa, no Everton, Bayern Munique e Bayer Leverkusen.
Mundial de Clubes num país sem cultura clubística
O principal campeonato de futebol nos EUA, a Major League Soccer é em formato fechado, propriedade da USSoccer — federação que, de 2018 a 2020, foi liderada pelo lusodescendente Carlos Cordeiro. Quando questionado sobre o modelo competitivo, sem subidas ou descidas de divisão, o português responde com uma pergunta retórica.
“O que é que estão a pensar fazer vários países à volta do mundo? A tentativa da Superliga na Europa, a Argentina há dois anos que não faz promoção à I Divisão. O México há dois anos que não tem promoção ou despromoção. Portugal tem o mesmo sistema há 100 anos e é um país muito resistente a qualquer mudança. Não temos demografia que comporte um campeonato tão extenso. Portanto, o modelo americano está a ser copiado porque os empresários que estão a comprar clubes não querem investir milhões numa equipa que pode descer e jogar num campeonato que só leva 5 ou 6 mil pessoas ao estádio. A Superliga falhou porque ia ser uma liga fechada e a resposta da UEFA foi aumentar a Liga dos Campeões fazer um modelo diferente para combater essa tendência.”
Nos EUA não há clubes ou desporto de formação, mas sim equipas de colégios e universidades, e franquias (clubes-empresa, de propriedade privada, como a NBA ou a MLS). Não será, por isso, arriscar demasiado fazer um Mundial de Clubes num país onde não há essa cultura clubística?
“Eu acharia mais arriscado em qualquer outro país, que não consuma eventos. O primeiro Mundial de seleções foi em 1932 e teve apenas 13. O Mundial2026 vai ter 48! O princípio é sempre a desconfiar, mas é preciso arriscar. Eu vou a Portugal e ainda ouço pais e mães a dizerem que não querem que as filhas joguem futebol e olhem como a seleção e o futebol feminino evoluiu em Portugal...”
Além disso, segundo Francisco Marcos, “os americanos adoram um bom espetáculo e consomem grandes eventos semanalmente”. E são 350 milhões de habitantes como potencial cliente no futuro Mundial de Futebol, que se irá realizar nos EUA, México e Canadá. O problema é serem 32 equipas e muitas delas desconhecidas do público: “Uma coisa é FC Porto, Benfica ou Real Madrid, mas sim um Urawa Reds (Japão) ou um Espérance de Tunis (Tunísia).”
Ter um Cristiano Ronaldo iria ajudar — o jogador preferiu renovar com o Al Nassr a ir ao Mundial de Clubes —, assim como ajuda ter Lionel Messi a jogar no Inter Miami e como ajudou ter David Beckham nos Los Angeles Galaxy no início dos anos 2000 ou Pelé e Eusébio nos anos 70. Até porque a MLS tem uma política de bilheteira com preços dinâmicos. “O Pelé veio para os Estados Unidos em 1975. A audiência de jogos em que o Pelé participava com o Cosmos aumentava duas/três vezes. Os jogos do Tampa, na minha altura, tinham em média 22 mil espectadores, mas quando recebíamos o Cosmo do Pelé era 62 mil. E nos EUA quando a lotação média é ultrapassada, a receita é dividida com o visitante. E esse modelo, com algumas variantes, foi adaptado para Messi.”
Francisco não concorda com o modelo da FIFA que exclui o seu Sporting ou o Liverpool do Mundial de Clubes — só contava o ranking até há dois anos e assim excluiu os leões em anos de bicampeonato histórico —, mas conta ver, pelo menos, dois jogos de FC Porto e mais dois do Benfica, que estagiou em Tampa (Florida ), onde Francisco mora.
Por isso, se muitos vão olhar para este primeiro Mundial de Clubes como um copo meio vazio, Francisco prefere ver o copo meio cheio. Porque vem aí o Mundial2026 e ele espera ver a seleção portuguesa em mais um Campeonato do Mundo. Desde 1970 que não falha um.
isaura.almeida@dn.pt