“Estou bem física e mentalmente. Não vou terminar sem dar mais uma alegria aos portugueses”
Nelson Évora não compete ao mais alto nível desde 2021, foi operado a um joelho em janeiro e fez 40 anos em abril. Mas ainda não está preparado para dizer adeus às pistas. Foi campeão europeu, mundial e olímpico, e esteve no II Seminário da Saúde Mental da Associação de Atletas Olímpicos de Portugal para partilhar a sua história. E falou ao DN sobre a importância de ter ajuda profissional.
Como está a saúde mental do Nelson Évora?
Está boa. Nunca esteve tão equilibrada. E tanto está boa que vim partilhar um pouco daquilo que foi a minha experiência. A vida de um atleta de alta competição é sempre uma montanha russa emocional, as coisas mais simples acabam por ser as mais complexas. Um campeão olímpico também vai ao supermercado comprar pão e leite e não precisa de ser visto como um alien ou passar a ser um alvo a abater. A saúde mental ou a falta dela deixa feridas bastante profundas. Se tivermos ajuda psicológica no momento certo, essas cicatrizes podem ser superficiais ou pelo menos não tão profundas. Em muitos momentos, com as ferramentas certas, teria menos cicatrizes hoje certamente.
Que cicatrizes são essas? E estão cicatrizadas ou ainda há algumas feridas abertas?
Não vou especificar. Está tudo bem cicatrizado. Hoje já são dramas de um atleta que conquistou tudo o que tinha para conquistar. Nem todas são profissionais, também há cicatrizes pessoais como a morte da minha mãe. Ela era a minha psicóloga. Era a ela que eu ligava antes de ir para as pistas em cada competição e ela sabia sempre o que eu precisava de ouvir. Sem a minha mãe andei meio perdido, mas com ajuda de profissionais voltei ao topo. Há 20 anos não falávamos de saúde mental. Daí o alerta de Simone Biles [ginasta norte-americana desistiu em Tóquio2020 por este problema] ser essencial. A saúde mental é tão importante como o treino e o descanso para ganhar medalhas. Se eu tivesse tido essa ferramenta - ajuda psicológica - logo no início da minha carreira, as feridas teriam sido menos profundas, mas fui-me adaptando, fui ganhando. Agradeço a todas as pessoas que fizeram parte das minhas medalhas, porque cada uma tem uma história e nada se conquista sozinho. Muitas das minhas medalhas foram ganhas em alguns dos piores momentos da minha vida. O segredo foi a comunicação com o treinador e por isso digo que também os técnicos deviam recorrer a ajuda psicológica.
É um dos cinco campeões olímpicos do País. Esse estatuto é motivador?
Olho para mim como campeão olímpico em poucos momentos. Um dos grandes segredos da minha carreira sempre foi começar do zero. Sempre comecei um projeto ou uma etapa do zero e sem me pôr sobre estatutos ou num degrau acima dos outros. Começa-se do zero em todas as competições. Como seres humanos temos que ser humildes e quem joga com estas regras normalmente consegue chegar mais longe.
E o insucesso faz parte do sucesso...
Sem dúvida, perdemos muito mais vezes do que ganhamos. Eu para ter 12 medalhas, ou 13, não sei quantas medalhas já ganhei a nível internacional, tive que cair o triplo das vezes e levantar-me. Tive muito mais frustrações. Simplesmente tive que reagir e acho que a minha carreira se espelha um pouco no cair e levantar.
A medalha olímpica no triplo salto foi há 16 anos. Sente que ainda é visto como campeão olímpico ou como o Nelson Évora à beira da reforma?
Neste momento as pessoas olham para mim mais como bailarino por causa do concurso de dança que ganhei [risos]. Acaba por ser irónico, mas é normal, é o poder da televisão. Sou atleta. Os portugueses têm memória, mas todos, incluindo eu, podemos ter memória curta, mas não tenho sentimento de ingratidão nem penso se as pessoas se lembram daquilo que fui ou conquistei. Recebi e recebo carinho dos portugueses todos os dias e isso vale mais do que todas as medalhas que ganhei.
Mas existe mágoa? Disse que a comunicação social o tratou mal...
A comunicação social tem-se baseado muito numa comunicação de massas. Muitas vezes não informa as pessoas, está simplesmente a entretê-las, e na minha opinião o trabalho da comunicação social não é entreter é informar com factos e não procurar mais likes e visualizações. Passei a ser conteúdo sensacionalista e para bem da minha saúde mental deixei de ler sobre mim.
Fazendo uma introspeção, o que faria diferente? Alguma vez pensou 'pus-me a jeito'...
Não, nunca me pus a jeito e vou dizer porquê. Posso ter sido polémico, mas apresentei factos e continuo a assumir o que eu disse, não retiro nem uma vírgula. Representei todos os portugueses. Eu não nasci em Portugal e tenho noção disso, mas estou aqui desde os seis anos, não conheço outra nação e mesmo quando em jovem fui solicitado para representar Cabo Verde disse:"não, eu sou português, não conheço outra nação.”
Refere-se ao caso das naturalizações no atletismo, quando questionou a pressa com que se naturalizou Pedro Pichardo?
Tinha prometido que não iria falar mais sobre esse tema e iria calar-me porque o tempo põe tudo no seu lugar... quando falei sobre esse tema não foi contra a pessoa e o atleta, mas contra um sistema que permitiu isso e não permite a tantos outros. Fiquei triste com toda a polémica, mas é assunto arrumado na minha cabeça.
Tem 40 anos e não compete ao mais alto nível desde 2021, mas ainda não anunciou o fim da carreira...
O corpo já me disse há algum tempo para me reformar. Já há 10 anos [risos] e entretanto acordo a pensar, bolas, dói-me o corpo todo. Não vou terminar sem dar mais uma alegria aos portugueses. Quero voltar a representar Portugal. Depois sim, já poderei descansar. Tenho pequenas lesões associadas à idade, mas ainda tenho um grande voo para fazer. Estou a treinar com o Mário Aníbal, estou bem, estou em grande forma e só preciso definir o meu regresso, que será sempre como atleta individual.
A nível pessoal , a vida do Nelson também vai dar uma grande volta...
Para melhor. Vou ser pai. Estou muito feliz. Era algo que eu também ambicionava muito. Virá no momento certo da minha vida.
isaura.almeida@dn.pt